Hoje percorri parte da cidade. Havia nela uma estranha
combinação de tristeza e calor, como se uma coisa e outra se intensificassem
mutuamente. Nas ruas, muita gente cobria essa tristeza com máscaras, muitas
delas com cores que escapavam ao padrão cirúrgico. Os corpos incapazes de
ocultações passavam devagar, esmagados pela atmosfera, fechados sobre si mesmos,
como se o ar envolvente fosse pestilento. Prédios em ruínas, casario que o
tempo submeteu ao seu juízo impiedoso. Tudo isto gera uma cultura de nostalgias,
cheia de pequenos mitos, tentativas frustes de reencantar aquilo que só foi
encantado pela inocência do olhar infantil ou pela ingenuidade dos primeiros
amores. Chegado a casa, pensei que deveria evitar estas deambulações. Ir aonde
tenho de ir, olhar o menos possível para a realidade e voltar pelo mais curto
caminho que houver. Agosto encerra hoje a sua actividade. Está cansado e deixou
cair a sua fadiga sobre tudo o que existe. Não é fácil viver num país que tem
quase novecentos anos, que já viu coisas demais, que se saturou de Agostos tórridos,
que sabe que qualquer inflamação acabará por passar, mesmo que os
anti-inflamatórios não sejam grande coisa. É um país lento. Na passada
segunda-feira, fiz duas encomendas. Uma em empresa portuguesa e outra numa
sediada em Espanha. A enviada pelos nossos vizinhos já a recebi há vários dias,
a outra talvez seja hoje que chegue. E tudo isto me maravilha, pois há uma
sabedoria que fora daqui não existe e não se percebe. Há muito, muito tempo,
numa loja de ferragens de uma outra cidade de província, no início da tarde, talvez
porque eu tivesse dado sinais de alguma impaciência, a pessoa que me iria
atender esclareceu-me sobre a essência da pátria: não tenha pressa, que eu só
saio daqui quando forem sete horas.
segunda-feira, 31 de agosto de 2020
domingo, 30 de agosto de 2020
Uma gota no oceano
É tão breve o tempo de suspensão entre o prazer e a
realidade que acabo por não saber o que fazer com este domingo. Talvez por
antecipar que estão a chegar os dias do ruído, descobri um álbum do Coro da
Rádio da Letónia com o magnífico título O Fruto do Silêncio. É composto
por sete peças de outros tantos compositores letões. De todos apenas conhecia Pēteris
Vasks, cuja peça dá título ao álbum. É uma experiência desconcertante escutar
música produzida por compositores dos países bálticos. Há neles uma
profundidade espiritual, de coloração religiosa, que praticamente desapareceu
da música erudita ocidental. A composição de Martins Vilums denomina-se O
Tempo Cintila, a de Ēriks Ešenvalds, Uma Gota no Oceano. E isto diz
tudo o que, neste momento de suspensão, posso dizer de mim, miserável narrador
sem narrativa. Enquanto o tempo cintila, fruto do silêncio, não passo de uma
gota no oceano, ou nem isso.
sábado, 29 de agosto de 2020
Vida de provinciano
O meu idílio com a balança não apenas se mantém, como se
intensifica. Hoje, primeiro dia pós-férias, confidenciou-me que eu tinha menos
dois quilos do que antes de as começar. Olhei-a embevecido, jurei-lhe amor
eterno, que teria sempre muito cuidado quando a pisasse. Enquanto me desfazia
nesta conversa pateta, como o são todas as conversas de amor, pensava com alívio
que iria evitar o olhar reprovador do médico, o qual, como todos os médicos,
fazem da saúde do paciente um exercício de virtude moral, à qual, muitos deles,
se julgam no dever de se furtar. Hoje a empresa de jardinagem que tem por
hábito, aos sábados de manhã, vir cortar a relva nas pracetas circundantes
esqueceu-se da sua cruzada contra a preguiça e a eventual lascívia matinal dos
moradores. Foi, porém, substituída por um cão da vizinhança que, talvez
espantado por não ouvir os corta-relvas, decidiu ladrar até me acordar. A isto
se resume a vida de um provinciano, pensei. Pendências com médicos, férias
acabadas, preocupações com barulhos vindos do exterior. O que me está a valer é
o romance do Tomás de Noronha, passado na capital, que ainda era do Império, em
ambientes sublimes, onde há condessas e marquesas. Fiquei rendido quando, ao
referir-se à técnica de selecção social de uma certa marquesa, escreveu: Quem
lhe orientava o protocolo era a sua filha, uma trintona nevrotica,
destrambelhada, que sabia como ninguém disfarçar o estonteante desejo de se
franquear sob a apparencia artificial de ser dificil. Basta o estonteante
desejo de se franquear para que a leitura não seja pura perda. Se o tempo
fosse feminino, pensei então e sem ligação com o que pensara antes, seria uma
górgona, que avançaria com o seu olhar petrificante e a cabeça envolta em serpentes.
Sendo masculino, dá-se aparências menos teatrais, e em vez de nos transformar
em pedra, desfaz-nos e às nossas vis pretensões em pó. A manhã vai alta,
calo-me, para que o alarme de um carro possa ecoar no fundo do meu ser.
sexta-feira, 28 de agosto de 2020
A gestão do dia
O dia nasceu sombrio, e eu hesito em avaliar o fenómeno. Vestiu-se
de luto pelo meu último dia de férias? Decidiu poupar-me aos transtornos
físicos – e metafísicos, já agora – da canícula? Sinto no centro do peito uma
estranha opressão vinda do futuro, mas entretenho-me com a gestão do dia. Um
amigo enviou-me um conto publicado pela mulher, vou lê-lo. Outra pergunta-me se
quero ir jantar com eles, o clã familiar. O padre Lodovico quer saber quando
vou a Lisboa. Uma transportadora deixa-me à porta uma encomenda com o triciclo
que comprei para o meu neto. Anoto que, quando for à capital, não posso esquecer-me
de levar os hoverboards das netas. Continuo com a minha investigação
sobre quem terá sido o T. Noronha que escreveu Volupia que Salva. Graças
ao cruzamento dos catálogos de duas bibliotecas municipais cheguei a uma tese
verosímil. Trata-se de D. Tomás de Noronha (1870-1934), autor de umas memórias
com o título De capa e Batina sobre a estúrdia coimbrã do seu tempo. O
fidalgo cursou letras e, depois, teologia, tendo-se formado em ambas. Para
teólogo não estava mal. Consta que, juntamente com um tal Pad-Zé e um Vicente
Arnoso, foi um dos grandes animadores, em Coimbra, da boémia estudantil. Também
escreveu, entre outras coisas sem relevo, um livro de versos com o título Tempos
Perdidos. Talvez um sinal de arrependimento. Acabados os cursos foi para o Oriente,
para exercer como professor de inglês e alemão no Liceu Nova Goa. A fidalguia
já andava, naqueles tempos, pelas ruas da amargura. Na biografia que descobri –
um texto hagiográfico da personagem – não consta a referência ao romance que
narra os amores de Octavia e Valeria, mas verifiquei que é publicado pela mesma
editora – a J. Rodrigues & Cª, sediada no 186 da Rua do Ouro, em Lisboa –
que dá à estampa, como se dizia, as tais memórias de estudante. Posso ainda
informar que em 1906, ao voltar das Índias, foi recebido e louvado pelo rei D.
Carlos e pela rainha D. Amélia, devido a uma iniciativa sobre a Assistência
Escolar aos indígenas (a palavra não é minha). Uma coisa é certa, contínuo a
ser um repositório de informações inúteis, mas a verdade é que, com a idade, a
fronteira entre o útil e o inútil se diluiu. Vou fechar as persianas que o sol
voltou a ameaçar.
quinta-feira, 27 de agosto de 2020
A volúpia das coincidências
Um aviso ao eventual leitor: estou sem assunto. Como não
sofro da angústia da página em branco, talvez escreva sobre o magno problema
das coincidências. Entre uma pilha de livros comprados, há uns anos, em segunda
mão, ou terceira, sabe-se lá, encontro um romance com o título Volupia que
Salva, obra de um tal T. Noronha. Quem é o autor ou por que razão possuo o romance
não faço qualquer ideia. O livro chegou-me encadernado, em bom estado para a
idade avançada. Folheio-o e deparo-me logo à entrada com duas citações de Safo
e uma de Anacreonte. Leio as primeiras páginas e fico a saber que a Octavia
Rodrigues Saavedra e a Valeria Prado têm um caso. Vejo que o livro tem quase
cem anos e tento descobrir quem é o autor. Com esforço sou informado que o T.
significa Tomás, portanto Tomás Noronha. Faço uma pesquisa por este nome e
descubro que um conhecido locutor de televisão e escritor afamado tem como
herói das aventuras com que ilumina o universo um Tomás Noronha. Bem, não será
esse. Uma outra pesquisa diz-me que no século XVII houve um escritor, fiel
escudeiro de D. Sebastião, com esse nome. Tanta fidelidade a D. Sebastião não
lhe permitiria por certo tratar do affaire – estou mesmo velho – da
Octavia e da Valeria, ainda por cima mulheres modernas. Coincidências, penso,
mas quem no início do segundo quartel do século XX teria a ousadia de escrever
um romance sobre os delíquios amorosos da Octavia e da Valeria? O que é
espantoso, por falar em coincidências, é a seguinte informação, inscrita na
última página impressa, que nos diz: Este livro acabou de se imprimir no dia
28 de Maio de 1926. No dia em que Portugal entrava naquele período em que
qualquer volúpia, fosse de que cor fosse, deveria ser banida, e caso tivesse mesmo que ser, então que passasse à clandestinidade ou se desse no
recôndito do leito matrimonial, com as excepções que todos sabemos,
publicava-se um romance que proclamava a volúpia como salvação, talvez da alma,
mas não posso assegurar. Independentemente de todas estas dramáticas
coincidências, há uma coisa que me agrada em Tomás Noronha. Escreve crystal,
condessa de Nellas, d’uma, etc. Portanto, um autêntico insurgente
contra a pouco voluptuosa simplificação ortográfica de 1911. Um monárquico libertino.
quarta-feira, 26 de agosto de 2020
A bailarina alemã
Depois da minha tarefa matinal de abrir e fechar persianas
para conter os raios enviados pelos cacarejos do Sol, um exercício militar que
executo com afinco, a primeira coisa com que me deparei, ao sentar-me à
secretária e dar um giro pelos sites abertos no browser, foi com
uma fotografia de uma bailarina alemã. Segundo a investigação que fiz, ela
teria, no momento em que foi fotografada, no ano de 1910, dezoito anos.
Tinha uma daquelas belezas que deixam o espírito perplexo e tomado por uma
profunda dúvida. É um ser enviado do céu ou uma agente dos poderes infernais?
Só uma mente ingénua – e ser ingénuo depois dos quarenta não é ingenuidade, mas
burrice, como não se cansava de repetir há muitos anos uma amiga – poderia conceber
a tortuosa ideia de que o belo e o bem são a mesma coisa. Independentemente daquela
bailarina ter descido do céu para nossa salvação ou subido do inferno para a
nossa perdição, a verdade é que uma beleza como a dela não merece o castigo que
o passar dos anos impõe. Quando uma mulher é bela, a sua beleza, no momento em
que atinge o zénite, deveria ser preservada dos efeitos do tempo, mesmo que
vivesse cem anos. Chegada a hora da morte, seria arrebatada da vida ainda esplendorosa.
Entre os vários homúnculos que habitam na caverna da minha consciência, há um
com propensões igualitárias que, mal formulei o meu pensamento sobre o destino
das mulheres belas, começa uma cantilena onde me acusa de injustiça, de ser um
agente da discriminação, um racista estético. E por que razão os homens ou as
outras mulheres, as que não receberam a graça da tua bailarinazinha, não
deveriam ter a mesma sorte, interrogou-me. Não são todos iguais perante a lei
ou, se quiseres, não são todos filhos de Deus, continuou ele. Respondi-lhe que
não me interessava discutir as consequências da revolução francesa nem enredar-me
em estéreis discussões teológicas. Que fosse para o fundo da caverna e se mantivesse
invisível e inaudível. E, para o calar de vez, acrescentei que a verdadeira
justiça é tratar como excepção aquilo que é excepcional. Ele lá se recolheu a
murmurar slogans igualitários, enquanto eu dava uma última vista de
olhos pela bailarina alemã e passava para o site da meteorologia.
terça-feira, 25 de agosto de 2020
Redução vocabular
São poucos os dias que Agosto ainda tem, antes que a sua
folha morta caia da árvore do calendário. Por vezes, a retórica que uso dá-me
vómitos. Dedilho-os, aos dias, como se não soubera contar e franzo o sobrolho.
Por vezes, escrevo de noite recados para que faça alguma coisa quando a próxima
manhã chegar, com a luz que for a dela. Raramente, olho para eles. Chega-me um
vídeo do meu neto. Há duas palavras que ele domina na perfeição. Não e pára.
Parecem-me óptimas e as mais adequadas ao tempo que vivemos. Também, caso
pudesse ou tivesse coragem para tanto, resumiria o meu vocabulário ao advérbio
não e ao verbo parar. A primeira utilidade seria a que deixaria de escrever
estes textos, as outras, e não seriam poucas, revelar-se-iam com o tempo. Há
uns anos, um amigo contou-me que uma pessoa da sua família foi encurtando,
pouco-a-pouco, o vocabulário que usava, até que chegou o momento em que se
recusou a pronunciar qualquer palavra. Ouvia os clientes do seu estabelecimento,
mas nunca usava a voz para lhes dizer fosse o que fosse. Gestos de mãos,
expressões de rosto, meneios corporais. Os clientes habituaram-se, não o
abandonaram, e talvez um ou outro lhe tenha seguido o exemplo. Como dizia esse
meu amigo, os bons exemplos devem frutificar. Por agora, seria menos radical, usaria
ainda o advérbio não e o verbo parar. Voltar-me-ia para este Agosto prestes a
render-se a Setembro e dir-lhe-ia: Não. Pára! Ele responder-me-ia na mesma moeda:
Não paro. É o que faz a falta de assunto numa tarde de Agosto.
segunda-feira, 24 de agosto de 2020
Um sonho cinematográfico
Em 1955, o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson visitou
Portugal e fez um conjunto de fotografias que tem tido ao longo dos anos uma enorme
fortuna. Hoje deparei-me com uma delas, extraordinária como as demais. Nos
Jerónimos, junto a uma coluna, um confessionário minimalista, apenas um tabique
de madeira, certamente com uma abertura velada por um gradeado que permitia
falar e escutar e, ao mesmo tempo, manter secreta, ou quase, a identidade das
confessadas. Sob essa abertura havia de ambos os lados apoios para os braços. Sentado
de pernas abertas, o sacerdote, de cabelos brancos e trajado com a respectiva
batina, escutava a longa confidência de uma mulher ajoelhada, vestida de preto até
aos pés, véu negro sobre a cabeça. Olho a fotografia demoradamente e imagino o
que poderia fazer a partir dela caso fosse realizador de cinema. Filmaria a
mulher a levantar-se do confessionário, haveria por certo um zoom que
permitisse apreender a elegância dela e acabasse por se centrar na beleza do
rosto, acompanhá-la-ia no trajecto em direcção a um altar para cumprir a
penitência, enquanto mostrava, em fundo, o sacerdote a erguer-se da cadeira e
espreitar a mulher, tomado por uma curiosidade invencível. Nesse momento, ela voltava-se
sorridente para ele que, ao sentir os olhos dela nos dele, estremecia e deixava
aflorar um esgar de terror no rosto. A mulher que confessara, descobria então,
era a sua própria morte. Portugal, naqueles tempos, era um país escuro, muito
escuro, pensei, enquanto ouvia o correr da água que alguém num andar próximo
deixava cair sobre umas plantas exaustas pelo calor. Uma sirene lembrou-me que
deveria ir almoçar, pois o cinema não é coisa que me diga respeito.
domingo, 23 de agosto de 2020
Uma aventura ao domingo de manhã
Uma corrente de ar, uma porta que se fecha e não se abre, alguma
coisa se terá desconsertado no trinco que o desligou do puxador. De súbito uma
pessoa vê-se metida num sarilho. Preso num quarto, sem ninguém em casa nos
próximos dias que, do outro lado da porta, a pudesse abrir ou pedir auxílio,
sem telemóvel, com a vizinhança em registo de férias, sem qualquer ferramenta
para enfrentar o delíquio da fechadura, sem talento para a mecânica, sem ter
sequer tomado o pequeno almoço, sem poder sair por uma janela, pois não será
agradável saltar de um quinto andar, e, talvez o pior, sem óculos. Foi assim
que começou a meu dia. Como saí do imbróglio, ainda estou para perceber. Consegui
tirar um parafuso com as mãos e depois de manipular o puxador para trás e para
a frente, completamente ao acaso, ele lá se ligou ao trinco e, milagre, vejo-me
fora do quarto. A realidade está cheia de surpresas, foi o que pensei quando me
sentei a tomar o pequeno almoço, aliviado por estar livre, sem ter de recorrer
a medidas drásticas de partir a porta ou coisa que o valha. É em momentos
destes que considero que deveria ter treinado mais as minhas competências mecânicas,
que são tendencialmente nulas. Lembro-me bem do martírio que foi, aquando do
exame da quarta classe, ter de apresentar um trabalho manual. Era uma
construção de um moinho que se tinha de recortar de uma cartolina e depois
montar, fazendo dobras e colagens. Já o corte foi um suplício. Quando chegou à
altura de colar, a coisa ficou negra. Colava de um lado, descolava de outro. Queixo-me
à professora de que não era capaz de colar, ele pede-me para ver a cola. A cola
é muito boa, diz-me, e dá-me de imediato três estalos na cara. Literalmente. O
problema só podia ser meu. Era meu. Como consegui acabar aquilo não faço ideia.
Deve ter sido como hoje consegui sair do quarto onde o destino me quis encerrar.
Ao acaso. O que me vale é que hoje em dia as professoras já não batem nos
alunos.
sábado, 22 de agosto de 2020
Inimigos de sábado
Quando acordei, eram oito horas, nem queria crer que hoje é
sábado. Uma fúria sonora entrava-me pelo quarto, vinda da praceta em baixo. A
empresa responsável pelos espaços públicos acha que o dia adequado para cortar relva
é o sábado. Talvez as lâminas deslizem melhor, as folhas estejam mais aptas
para o corte ou, uma hipótese, considere imoral as pessoas, no início do
fim-de-semana, prolongarem o sono pela manhã. Não é que me levante mais tarde,
mas acordar ao som da metralha dos corta-relvas não faz parte do melhor dos
mundos possíveis. Levantado, comecei a barricar-me dentro de casa, fechando todas
as janelas por onde outro inimigo, o sol, possa entrar. O combate com o astro,
pensei enquanto descia as persianas, ainda não saiu da idade média. Há que
construir muralhas e evitar que o inimigo possa passar por elas. Entretanto, o
afã ruidoso suspendeu o massacre dos inocentes moradores, mas a manhã
apresta-se para pôr fim à sua curta existência. Oiço vozes na rua, talvez
pessoas na esplanada, enquanto me envolvo no manto sombrio da escuridão. Não
tarda terei de ir à rua. Reparo que o word me assinala uma incorrecção
gramatical, mas o domínio da gramática é uma competência que o word
ainda está longe de ter adquirido com sucesso. Talvez um efeito da pandemia. Necessitará
de aulas de recuperação, suponho.
sexta-feira, 21 de agosto de 2020
De volta ao habitat natural
Retornei ao meu habitat natural. A cidade parece
estar exactamente como a deixei. O calor, de momento, não será tão avassalador,
os carros deslizam na Sá Carneiro como antes da pandemia e, nos passeios, os transeuntes,
com ou sem máscara, procuram as sombras que as copas das árvores projectam no
chão. Há em tudo isto uma reminiscência mourisca, pensei, uma espécie de
pertença climática àquele mundo que se inicia no norte de África. O computador
informa-me que o adobe acrobat reader foi actualizado com êxito,
eu fico agradecido pela melhoria do programa, mas não consigo evitar um ataque surdo
de inveja. Também eu poderia ser actualizado com êxito, mas não. Cada
actualização que sofro é para pior e quanto mais êxito elas têm pior fico. O hardware
está caduco, um modelo descontinuado há muito, sopra-me alguém que vive dentro
de mim e que tem por hábito dar opiniões que ninguém lhe pediu. Hoje não fui à
esplanada perto do mar ler o jornal, a mulher que em silêncio olhava o
horizonte desapareceu para sempre, resta-me pôr a vida nos carris onde estava
antes de ter saído daqui. Leio que se está perante uma aceleração do tempo
histórico. Talvez esteja já em excesso de velocidade e seria justo que a
História fosse multada, por não respeitar as regras de trânsito. As cevadilhas
da escola ao lado continuam a florir, as acácias da praceta estão pujantes,
vestidas de verde escuro, e o parque infantil permanece interdito às crianças.
Tudo isto enquanto a história acelera e o meu hardware obsoleto é
incapaz de receber um programa que o actualize e rejuvenesça. Hoje ainda não
avistei nenhum dos anjos que moram nos telhados da rua onde entardeço.
quinta-feira, 20 de agosto de 2020
Uma velha pendência
Olho para as previsões meteorológicas e calculo perdas e
ganhos, projecto cenários de dor e prazer, arquitecto estratégias de defesa,
pois as de ataque não estão disponíveis no mercado da meteorologia. O clima
tornou-se uma guerra, pensei, uma guerra em que apenas podemos implorar por
abrigo. Hoje tem chovido e parece que vai continuar durante todo o dia. Isso contenta-me,
sinal de que já me satisfaço com pouco. Recebi há pouco um email de Lodovico Settembrini,
o padre Lodo, como todos os amigos o tratam. Disse-me estar preocupado com uma
coisa que escrevi aqui sobre o príncipe Saurau. Fê-lo lembrar o Leo Naphta, e Deus
me perdoe – escreveu o padre – apesar de ter, como ele, dado em jesuíta, não
suporto a personagem e as suas malditas ideias, sopradas pelo demónio. Eu que
me cuide, escreve, pois há muito que desconfia existir em mim uma certa inclinação
para o cepticismo. É preciso ter fé, continuou, seja no for, nem precisa de ser
em Deus. Eu rio-me da velha pendência dos dois padres e penso que talvez não
devesse escrever isto, mas nem sempre consigo resistir às tentações. Talvez
seja do meu cepticismo ou da minha falta de fé, seja no que for. Oiço os
pássaros e o seu canto mistura-se com o rumor do trânsito. A vida é um exercício
de paciência, penso.
quarta-feira, 19 de agosto de 2020
Triste sorte ser cliente
Sejam públicos ou privados, os serviços neste país conspiram
contra a sanidade mental dos clientes, como se ser cliente fosse um acto
execrável, uma maldade que apenas merece, como resposta, um tratamento
ineficiente e, se for possível, punitivo. Foi isto o que me ocorreu depois de
passar parte da manhã a tentar resolver assuntos através daquelas linhas de apoio
ao cliente, um eufemismo para esconder uma má vontade acintosa e contumaz. Lembrei-me,
então, de uma impressão antiga, quando ainda não havia as grandes superfícies,
e era local o comércio que animava as terras. Havia comerciantes que pareciam
fazer um favor muito especial em atender os clientes, vender-lhes aquilo que
eles precisavam, como se a sua vida estivesse acima daquele acto miserável de
trocar mercadoria por dinheiro. As razões que movem as pessoas são sempre secretas
e, o mais das vezes, um enigma para os próprios. Agora que consegui
resolver tudo, já não tenho como recuperar a manhã perdida, e isto é o que há
de mais cruel na vida. Nada nela é recuperável. As boas horas pela sua bondade,
as más para sua correcção, tudo isso deveria poder ser recuperado. Eu sei que
estou a mentir. A vida seria muito pior, se se pudesse recuperar o tempo que se
perdeu. Os homens estariam sempre a retroceder à infância e à adolescência para
tentar consertar o que nelas sempre se desarranja, e isso seria o pior que
poderia acontecer à espécie. O calor não me faz muito bem e conduz-me sempre
por caminhos meditativos que não levam a lado nenhum. Sempre preferi ao jardim
dos caminhos que se bifurcam, les chemins qui ne mènent nulle part.
Desta preferência, porém, não há qualquer ilação a extrair, note-se. O
melhor mesmo teria sido ter-me dedicado ao comércio e transformar-me num
daqueles respeitabilíssimos comerciantes de vila de província que faziam o
especial favor de atender os seus patéticos clientes. O problema é que nunca
descobri o ramo que mais se coadunava com os meus talentos. Não por falta de
ramos, claro.
terça-feira, 18 de agosto de 2020
O terrível que há no belo
Os loendros, com as suas flores rosas e brancas, estão
exuberantes. Quem se deixar prender apenas pela extrema beleza que estes
arbustos exibem não faz ideia de quão mortais podem ser. Talvez seja isso o que
há de mais enigmático no que é belo, a sua capacidade homicida. Terá sido por
isso que, na primeira elegia de Duíno, Rilke usou o adjectivo terrível para
qualificar os anjos. Não todos, por certo, pois aqueles que vivem na minha rua
sendo belos não o são em excesso. As pessoas pensam que são pombos, mas aqueles
pombos não voam nem poisam nos telhados como pombos, mas como anjos. E se um
pombo voa como um anjo, poisa como um anjo, canta como um anjo, só pode ser um
anjo. Talvez estes anjos sejam também terrivelmente belos, mas disfarçam-se
para esconderem essa beleza e poderem assim ser suportados pelos mortais. Hoje
vi de novo a mulher que olha o horizonte. Lá estava ela na esplanada, fechada
na sua dor de olhar horizontes, a beber o café, a pôr a máscara, a sair e a
caminhar em direcção ao horizonte. Nas mesas ao lado, alguns casais deixavam
cair para o chão a tristeza que havia dentro de cada uma daquelas mulheres.
Eles liam o jornal, olhavam para o telemóvel, elas desfaziam-se num óleo desconsolado
e viscoso, que alastrava como um pântano por um chão manchado de desespero e
silêncio. Muitos casamentos são uma radiosa lástima, pensei.
segunda-feira, 17 de agosto de 2020
Atravessar o horrível
As férias não deixam de ser um tempo de encontros
inusitados. Passeava eu, como um animal perdido, fora do meu habitat
natural, quando oiço uma voz a chamar-me e a perguntar-me se não me lembrava
dela. Claro que lembro, como poderia esquecer, retorqui. Não nos vemos desde
quando, perguntou. Não sei, há mais de trinta e cinco anos, por certo. Perguntei-lhe
o que lhe acontecera. Quando acabámos a faculdade, saí para o estrangeiro e
instalei-me por lá. Um exílio, disse eu. Não propriamente. Tornei-me pintora e
esqueci o que aprendera naqueles anos, disse e riu-se. Confessei que não sabia.
Contou-me o acidente, como lhe chama, disse-me as colecções onde estava
representada, mostrou-me fotos de quadros seus. Como sabes, disse-me, a beleza
e a harmonia pouco interesse têm. Ou talvez não seja assim, disse. A arte, o
artista tem de rasgar o véu ilusório que os olhos apreendem como beleza e
mergulhar no horrível. O horrível é uma camada da realidade muito densa e
funda, diz-me ela enquanto acende um cigarro, mas não posso evitá-la. Não pinto
para decorar salas, pinto à procura da verdade, os olhos brilham-lhe. Não digo
que os meus quadros sejam a verdade, são apenas ensaios em busca da verdade. É
preciso descer mais fundo, atravessar a camada horrível e tentar chegar ao
outro lado. E o que esperas encontrar, perguntei. Não sei, sou apenas pintora,
a filosofia não me interessa. Talvez encontre a beleza, a verdadeira beleza,
mas não sei sequer se existe uma beleza verdadeira e outra falsa, talvez só exista
o que está aquém do horrível. Fiquei a pensar no tempo em que nos demos e
naquilo que o tempo lhe tinha feito, mas não tocámos nessas memórias. Falámos
de famílias, de exposições, comparámos países e oportunidades e combinámos um
novo encontro, que ambos sabemos que nunca irá acontecer. Agosto começa a
escorregar pela folha do calendário. Vejo nuvens no céu e dois cães ladram
quando passo por eles, como se eu fosse o horrível que eles têm de atravessar.
domingo, 16 de agosto de 2020
Um sapo perturbado
É nos dias de Agosto que mais vezes frequento cafés ou
esplanadas. Imagino que seja uma forma de me alienar e de esquecer toda a ambiguidade
que se oculta no coração deste mês, o mais cruel dos meses, ao contrário do que
pensava Eliot, que via essa crueldade excessiva e inultrapassável em Abril.
Nesses espaços públicos que frequento para fugir à maldade de Agosto, ponho-me
a observar a humanidade que se expõe diante dos meus olhos. É então que recordo
o príncipe Saurau e digo para mim que não há, em toda a literatura ocidental,
personagem que melhor retrate a nossa humanidade que o príncipe. Pobre e ricos,
famosos e ignorados, corajosos e cobardes, inteligentes e estúpidos, nómadas e
sedentários, qualquer que seja a categoria em que se acolha um ser humano, ele
não deixa de ser uma emanação do príncipe Saurau, uma exalação lamentável da
sua perturbante perturbação. Há qualquer coisa de errado em todos nós, em mim
como em todos os outros, um erro que se foi acumulando ao longo dos séculos.
Pensei isto quando estava na esplanada e não me apetecia ler o jornal. Thomas
Bernhard, o criador do príncipe Saurau, é um dos maiores escritores do século
XX, leio num artigo americano, mas o autor sublinha que nunca será muito lido
no mundo anglo-saxónico, habituado a uma literatura fundada numa intriga
claramente desenhada. Em Bernhard não existe nada disso, apenas a perturbação
da nossa espécie exposta de forma cruel, de uma forma encantatória. O monólogo
do príncipe, no romance Perturbação, ocupa talvez umas cem páginas, que
começando a ser lidas ou rapidamente se põem de lado, ou se fica preso nelas e
se percebe, então, que Saurau é mais que uma personagem, é um arquétipo do
homem perturbado que se manifesta em cada um. Tanto nos que são alienados, como
naqueles que são conscientes e cheios de causas, estes são ainda piores que os
outros, porque ter uma causa é fingir que não se é uma emanação de Saurau, mas
talvez seja a pior das emanações. Não devia escrever estas coisas. As pessoas
não gostam que se digam coisas como estas, pois esperam metáforas para pôr na
jarra ou uma causa que lhes realce a moralidade e as faça esquecer que vão
morrer. Só não digo que a única emanação de Saurau sou eu, porque ainda
haveriam de pensar que me acharia um príncipe, enquanto eu penso que não passo
de um sapo perturbado, uma cópia degradada da degradação de Saurau. Pelo menos foi
isso que, à socapa, ouvi dizer, quando o autor destas palavras falava de mim, o seu narrador,
com os seus amigos mais próximos.
sábado, 15 de agosto de 2020
Campeões em tudo
Desde que amistosos e laudatórios, escritos sobre o passado
têm a fortuna assegurada, dizia-me ontem um amigo que se exilou do mundo num
lugar recôndito deste país. Ninguém gosta de ver as pústulas do que passou nem
olhar para as horas em que as chagas lhe arderam. Celebram o carrossel onde
andaram, mas esquecem as patifarias que aí mesmo foram alvo. O Álvaro de Campos
é que os conhecia de ginjeira, acrescentou, enquanto soprava o fumo de mais uma
cigarrilha. Depois soletrou não sem ironia: Nunca conheci quem tivesse
levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. Somos
todos campeões de tudo, acrescentou, mas eu exilei-me derrotado e cansado. Não
tenho paciência para toda esta gente e cultivo um afastamento profiláctico da
humanidade, muito antes de haver pandemia, pois a nossa sociedade já sofria uma
pandemia muito mais generalizada e, na verdade, muito mais grave. A estupidez
estrutural, continuou o meu amigo, está enraizado e vamo-nos todos enterrar num
lodaçal de idiotice, só porque se acha graça a coisas estúpidas. O que vale,
continuou, é que a amanhã é feriado, mas ninguém faz ideia por que razão. Lamentarão
que tenha calhado num fim-de-semana e é tudo. Isto foi ontem, quando o visitei.
Hoje, porém, é sábado e feriado, e nas ruas não deixo de avistar todos os
grandes campeões da vida que nos hão-de precipitar na pior das derrotas,
pensei, mas logo me distraí ao avistar a mulher que, na esplanada, olha o
horizonte. Há nela uma derrota inscrita na solidão, como se ela, tão dotada
para todas as vitórias, tomasse a decisão de se entregar à mais vil das
derrotas e, como recurso para se manter viva, usasse a linha do horizonte para
repousar os seus olhos e o mistério que se esconde dentro deles. Hoje
celebra-se a assunção da Virgem ou, noutras paragens, a sua dormição, mas isso
é um assunto que já não dirá respeito a ninguém.
sexta-feira, 14 de agosto de 2020
Sobre hibiscos
Também eu terei de me render à ideia de que os sonhos são
uma fonte de revelação. Ando há meses para ver se me recordo do nome de um
certo tipo de arbustos de jardim. Esta noite, ao contrário do que é hábito, um
sonho conseguiu romper o denso véu que me separa o inconsciente do consciente,
e fui lembrado de que esse arbusto se chama hibisco, um dos mais comuns. O que me
perturba, todavia, é outra coisa. Após a revelação do nome, seguiu-se entre
duas partes que presumo serem eu uma discussão ortográfica sobre se hibisco se
escreve com um h inicial ou um i. Não sei qual das partes saiu
vencedora da contenda, mas que uma delas tenha pensado que hibisco se inicia
com um i, isso deixa-me desgostoso com a existência, em mim, de um poço
obscuro que me dispõe ao erro. Enquanto contemplo os hibiscos floridos, penso
que não é normal alguém sonhar com discussões ortográficas, encenar uma disputa
como se escreve uma palavra, cuja grafia, em estado de vigília, nunca ofereceu
dúvidas. Fora eu dado à psicanálise e teria, em torno dos hibiscos, do
esquecimento do nome e da disputa ortográfica, matéria para muitas sessões. Não
o sendo, só espero que o corrector ortográfico, no dia em que escrever ibiscos,
me faça o favor de corrigir para hibiscos. O mais estranho de tudo isto
é que a jardinagem nunca gerou em mim um grama de curiosidade. As sextas-feiras
de Agosto não me parecem propícias para encontrar assunto que interesse a quem
quer que seja.
quinta-feira, 13 de agosto de 2020
Um calor de ananases
Oiço uma milonga e a tarde abre-se como um enorme
poço de nostalgia. Os portugueses, pensei, têm uma grande fixação pela música
brasileira, mas há uma profundidade de sentimento naquela que nasce na
Argentina que me parece inultrapassável. Talvez o fado se lhe equipare, mas não
estou certo disso. Lembrei-me disto porque ontem estiveram cá uns amigos da
geração intermédia. Um deles tocava violão, mas apesar de argentino apenas se
interessava pela Bossa Nova, a qual estudava com um afinco profissional. Ao
longe, uma outra música se intromete na Milonga del Solitario, a célebre
Mrs. Robinson, de Simon & Garfunkel. Será outra nostalgia, pensei. Uma
notícia informa-me que a bandeira vermelha para indicar praia cheia já foi
hasteada quase 2 500 vezes. A minha consciência sorriu plena de orgulho. Em
nenhuma dessas vezes a lotação esgotada se deveu à minha presença. Gosto de tal
maneira da areia da praia que evito pisá-la. Nunca se deve pôr os pés em cima
daquilo que amamos. Estas graçolas secas dão a medida do meu talento. Agosto
caminha para a meia idade, não tarda estará velho. Depois, virá o mês em que a
realidade reclama a pesada corveia, cheia de projectos, objectivos, cheia de humanidade
e um rosário de abjecções e coisas sem sentido. Estará um tempo de escachar, de
rachar, de derreter os untos, de ananases. De todas estas expressões ao gosto
popular, em uso no tempo do Eça, a que mais me agrada é a de ananases. Um calor
de ananases. Um dia ainda vou investigar a origem da expressão, mas é possível
que já não exista ninguém que tenha assistido ao seu nascimento. A milonga acabou
há muito, agora oiço uma zamba, Luna Tucumana, e uma
melancolia suave escorre sobre o dia.
quarta-feira, 12 de agosto de 2020
Descrições
O sol brilha estrangulado por um cordão de nuvens, deixando
cair fiapos de calor sobre o lençol encardido do mundo, depois o cordão
adensa-se, o sol sem ar para respirar esconde-se e um vento suave toca a ramagem
dos arbustos. Nos vasos, aspidistras, buganvílias e costelas-de-adão reclamam
água, enquanto se ouve o troar gorgolejante e contínuo dos corta-relvas. Nas
ruas, transeuntes descuidados passam vagarosos e os poucos carros seguem em
velocidade moderada, como se toda a azáfama tivesse sido suspensa pela sombra
que Agosto projecta no calendário. Podia ficar horas e horas a descrever o mundo, mas depois recordei-me que, durante a noite, acordei e, insone, retomei a
leitura de um romance de Thomas Bernhard. Há nele uma enorme capacidade para
descrever o mundo humano, um mundo perturbante que se esconde na Estíria, gente
de uma humanidade rude, violenta, imoral. O leitor do sul da Europa, habituado
ao destrato que o Norte tem por hábito fazer dele, descobre-se, não sem espanto,
como superiormente civilizado. Não é impunemente que se é herdeiro dos romanos –
pensa-se, então – e que se vive em terras onde as vides crescem para
transbordar em vinhos quentes, complexos, vinhos que mobilizam exércitos de metáforas
e sinestesias para serem descritos, ou, melhor, para que deles nos possamos
aproximar através da linguagem, depois da visão, do odor e do sabor se terem
confrontados com sensações para as quais a língua ainda não encontrou o som
exacto. Houve uma altura que Bernhard proibiu a publicação dos seus livros na
Áustria natal, tão insuportáveis lhe pareciam os austríacos. Os pinheiros que
avisto daqui, pinheiros mansos, abobadados, mostram as folhas novas num tom
verde tocado ao de leve pelo amarelo, enquanto na ramagem mais velha o verde das
agulhas é inundado pela cinza, que as escurece, como se prenunciasse o luto
pela sua futura transformação em caruma, hoje em dia inútil. No livro de
Bernhard, o príncipe de Sarau enche páginas e páginas com a descrição da
primeira entrevista que faz aos candidatos para um cargo relevante na sua
imensa propriedade, um homem sem capacidade para o trabalho, um homem enfermiço
e que nada sabe dos assuntos que teria de tratar. A escrita é de tal maneira
envolvente que me prolongou a insónia por mais tempo que devia. Eolo recolheu,
com o seu sopro, o cordão de nuvens e o sol brilha sobre o arvoredo. Um pássaro
poisa no ramo de um cedro e deixa-se baloiçar, e tudo é tomado pelo silêncio,
como se o mundo tivesse emudecido, ou talvez seja eu que esteja a ficar surdo.
terça-feira, 11 de agosto de 2020
O peso da verdade
Poderia contar uma história de ninfas a saírem das águas do
rio, mas a verdade da narrativa teria tal peso que se tornaria insuportável. Se
alguém avistar, como eu avistei, ninfas nas águas de qualquer rio, o melhor é
omitir a história, pois não devemos sobrecarregar o mundo dos outros com o peso
da verdade. Recolho-me à sombra e protejo-me do sol de Agosto. O ramalhar das
árvores e dos arbustos indica a presença do zéfiro e que o dia, aqui neste
lugar onde me escondo da realidade, terá um calor moderado. Ontem nadei, coisa que não fazia há muito.
Não se pode dizer que o resultado seja animador. Os corpos sintonizam-se para
certas actividades e quando os surpreendemos com outras não programadas, eles nunca
deixam de protestar. Há mais de uma semana que oiço, embora sem escutar, as
obras para piano de Grieg. É um ouvir despreocupado, uma presença longínqua que
me abre para o silêncio, a confissão de que por estes dias cultivo a mais funda
despreocupação. Nos arbustos, os nomes escapam-me, fulguram flores a cujas
cores também não sei que nome lhes dar. Talvez nada disso exista, pelo menos
para mim, pois só existe aquilo que sabemos nomear. No dia em que me esquecer
do nome, também eu deixarei de existir.
segunda-feira, 10 de agosto de 2020
A tortura como prazer
Ao acordar pensei que os dias de férias são uma ilusão, que
passa rapidamente. Depois, pensei que talvez sejam a antevisão do paraíso
celeste. As pessoas, mesmo as que foram educadas no mais estrito catolicismo,
esquecem que, na tradição judaico-cristã, o trabalho foi dado aos homens como
punição e não como uma bênção. Se se quer uma prova de que vivemos num mundo
pós-cristão, basta olhar para o culto do trabalho e da produtividade que há por
todo o lado, basta ter em conta que a punição é agora vista até como um prazer.
Isto disse ontem, ao jantar, o padre Lodo. Estando ele tão perto, não podia
deixar de vir jantar cá a casa. As suas palavras, porém, indignaram a geração intermédia
da família, toda ela crente na máxima que o trabalho é o destino dos homens.
Foi uma indignação silenciosa, pois por deferência remeteram-se ao silêncio,
mas eu bem os conheço. O padre, talvez fingindo que não percebia, continuou,
com o seu espírito verrumante, e disse que mais valia um santo ócio do que
ser-se masoquista e fazer da tortura um prazer. Depois riu-se e pediu para não
o levarem a sério, pois não era pessoa de fiar, ele que foi inimigo da Igreja e
depois dera em Jesuíta, ainda por cima. O ainda por cima ficou em suspenso. Foi
esta conversa que se prolongou noite dentro que me assaltou ao acordar. Agora,
porém, preciso de sintonizar o espírito com a realidade, pois não tarda vêm
aqui fazer umas pequenas obras e, como se sabe, qualquer pequena obra é um
grande incómodo.
domingo, 9 de agosto de 2020
O trabalho do fogo
Uma cidade foi devorada por uma grande explosão. O fogo fez
em pouco tempo aquilo que a água, o ar e os interesses terrenos dos homens
levam mais tempo a fazer. Somos sempre tocados pela espectacularidade da morte
e da destruição, ainda mais se esta for envolvida em chamas, mas somos cegos
para o restolhar sombrio e secreto dessa mesma morte dentro do nosso corpo ou a
invisível destruição dos lugares que habitamos ou amamos. A nossa atenção
precisa de espectáculo para se mover da praça da indiferença até à avenida do
sentimento. Pensava eu nisso, quando vi um pequeno dragão de cabeça para baixo tatuado
na zona que vai do umbigo ao púbis, de uma rapariga que não teria ainda trinta
anos e que se mostrava em biquíni. Das fauces da besta imaginária saíam chamas e
fiquei indeciso na hermenêutica daquele símbolo com que ela se apresentava ao
olhar distraído dos circunstantes. Para mim, tocado por uma veia conservadora
que a idade não esquece de acentuar, nunca foi compreensível este culto das
tatuagens, ainda mais em corpos de mulheres. Lembro-me que há décadas só homens
se tatuavam nos braços, com dizeres como Angola 1967, Guiné 1970 e o mais
estranho de todos eles, Amor de Mãe, o que mais tarde interpretei como a
existência em Portugal de um enorme problema de complexos de Édipo por
desfazer. Hoje já fiz a minha caminhada de seis quilómetros e continuo
desapontado comigo. Chego sempre ao sítio de onde parti. Tivesse sido eu
bafejado pela lotaria genética e teria a inteligência necessária para descobrir uma meta
que se diferenciasse da partida. Sendo assim, contento-me em caminhar para o
sítio onde estou.
sábado, 8 de agosto de 2020
Sem alma comercial
Raramente, ao acordar, tenho consciência de ter sonhado, mas
não foi o que aconteceu esta manhã. Era um imbróglio qualquer em torno de um
negócio que já não sei precisar. Qualquer coisa que me resultava numa situação
muito desconfortável. Eu que não possuo uma alma comercial acordei em
sobressalto e lembro-me que fui sossegando dizendo-me, no silêncio do quarto,
que era apenas um sonho, nada mais que um sonho e que, se fosse na vida real,
jamais me meteria num negócio, quanto mais num imbróglio aflitivo. Depois, abri
a janela, a luz entrou, e o sonho começou a apagar-se, restando aquilo que acabei
de contar. Entreguei-me à vida de um sábado de Agosto, mas um certo desconcerto
não me tem abandonado. Será que a minha alma de narrador é apenas uma alma
comercial travestida e frustrada? O mundo está cheio de equívocos e alguns dever-me-iam
calhar, pensei. Será que também a mim se aplicam aqueles versos, Esperanças
mal tomadas / Agora vos deixarei / Tão mal como vos tomei, com que Sá de
Miranda inicia um vilancete? Depois, alvitrei que fora do reboliço académico já
ninguém deve ler Sá de Miranda, mas posso estar enganado. Passa por mim um
grupo de rapazolas e um diz, entre palavras que me abstenho de reproduzir, que
falhou o golo com a baliza aberta. Ele não sabe ainda que a vida não é outra
coisa senão uma sucessão de golos falhados com a baliza aberta, mesmo quando a
bola entra. Entre ou não entre a bola, o resultado será sempre o mesmo. Talvez
seja por sofrer de pensamentos como estes que eu não tenho uma alma comercial.
sexta-feira, 7 de agosto de 2020
A geografia do silêncio
O silêncio tem uma geografia imprecisa, o que torna inúteis
os mapas que dele se fazem. É um território mutável, umas vezes cresce
rapidamente, conquista espaço ao império do ruído. Outras, porém, vê-se drasticamente
diminuído pela invasão de gente inoportuna, que faz da emissão de sons pela
boca a razão de uma existência. Fora eu dado a pedagogo, haveria de criar uma
teoria em que o silêncio seria a primeira coisa a ensinar às crianças.
Idiossincrasias de velho, dirão as pessoas sensatas. Eu concordarei com elas.
Recordo que, em certa altura da vida, procurava sítios em que não se ouviam
ruídos nem havia, durante a noite, qualquer luz artificial. Então, ficava a
olhar o céu, as estrelas nos seus arranjos ilusórios, a que chamamos
constelações, a via láctea como um grande poço polvilhado de pontos brancos,
luminosos. Escutava o silêncio, e conforme ele ia crescendo para dentro
de mim, uma música estranha aos ouvidos citadinos compunha-se no rumor da
terra, no murmúrio do vento, no mistério do éter onde tudo parecia mergulhado.
Se se ensinasse o silêncio, talvez as pessoas aprendessem a escutar e a usar a
voz apenas para dizer alguma coisa. Hoje tornei a ver a mulher que olha o
horizonte. Toda ela é silêncio e nesse silêncio há um convite. A grande
vantagem de se ter passado do politeísmo clássico para o monoteísmo é que se
trocou a algazarra dos deuses greco-latinos pelo silêncio do Deus
judaico-cristão. A mulher levantou-se, saiu da esplanada e, chegada à rua, acendeu
um cigarro. Afasta-se lentamente e eu sigo-a com os olhos perdido no silêncio
que há nela.
quinta-feira, 6 de agosto de 2020
Um passeio pelo molhe
Quando se põe o pé no cimento que cobre o chão do molhe, são
mais seiscentos metros até alcançar o farol. Se está uma névoa ligeira, como
tantas vezes acontece, esse pequeno passeio proporciona algumas sensações que
não são de desprezar. A cidade à direita esbate-se, como se fosse um desenho a
carvão, desmaiado pelo tempo, adquirindo uma beleza que uma luz límpida lhe
recusa. O mar troca a tonalidade esmeralda e azul por um cinzento cheio de enigmas,
ameaças e promessas, enquanto se ouve o seu restolhar nas rochas. Os outros
molhes fazem lembrar ruínas deixadas por civilizações desconhecidas. Os barcos
ancorados são fantasmas que baloiçam embalados pelo vento, enquanto os veleiros
e os barcos de recreio se aproximam ou afastam do porto, conforme o destino de
cada um. É preciso caminhar de olhos bem abertos para não tropeçar. Quando se
chega ao farol pode-se ficar a contemplar o oceano, a meditar no seu enigma, ou
então virar costas ao sonho e apressar-se, empurrado pelo vento norte, em
direcção a terra. Chegados aqui o sortilégio desfaz-se. Há um porto, com barcos
em reparação, o areal das praias que se vão sucedendo, até se perderem de vista,
o voo das gaivotas que negoceiam com o vento a poupança da energia, planando
sobre a terra. Enquanto caminhava, ainda antes de chegar ao molhe, o sol
matinal foi cedendo lugar à névoa, e eu pensei que o verdadeiro romantismo só
pode existir em paisagens assim, paisagens das terras frias do Norte. Se
importado pelo povos meridionais nunca deixa de ser insípido e, na verdade,
vazio. A luz nunca foi a melhor companhia para os enigmas do sentimento.
quarta-feira, 5 de agosto de 2020
Pão e vinho
À minha frente, havia um caminho estreito de terra batida,
ladeado por arbustos espontâneos, raquíticos, carcomidos pelo vento norte.
Algumas rochas erguiam-se como marcos miliários. Por ali, circulavam aqueles
que, afastando-se um pouco da cidade, imaginavam estar no campo, para lhe
sorver o ar, encher os pulmões de ruralidade. Um homem ia apressado, arrastando
ligeiramente uma perna, um casal caminhava com demora, ele fazia comentários
sobre a paisagem, ela ouvia com atenção e sorria, evitava as palavras, não se
queria comprometer. Dois corvos desenharam um semicírculo no céu e
desapareceram atrás de uns cedros altos. Isto foi antes de ir ao supermercado,
ter de esperar a vez para entrar e, depois, ver-me rodeado de gente inóspita
apenas porque precisava de pão e vinho, para com eles compor um poema, ou esboçar
uma pequena narrativa onde as duas espécies litúrgicas entrariam para produzir o
ambiente e dar-lhe profundidade. Quando acabei as compras e saí, havia sol.
Procurei uma esplanada onde pudesse beber café rodeado de silêncio e
esquecer-me do poema ou do conto que me levaram às compras. Agosto nunca deixa
de ser um mês estranho, cheio de rituais fundados numa mitologia precária,
movida pelo desejo, por sonhos eróticos, histórias onde se cruza a inverosimilhança
e a necessidade de mostrar aos outros que se existe e se tem uma vida plena,
como se a plenitude fosse prerrogativa de mortais. Não é.
terça-feira, 4 de agosto de 2020
A linha do horizonte
Uma mulher pousou o cotovelo na mesa da esplanada, depois
apoiou o queixo na palma da mão. Fiquei à espera que, num súbito movimento de
contorcionista, um pé, levantando-se, acabasse por aterrar-lhe na cabeça. Tenho
demasiadas expectativas sobre a humanidade, não admira que me sinta continuamente
defraudado. Ela podia ser uma contorcionista, afinal era só uma mulher
solitária que apoiava a cabeça para olhar o horizonte e beber café. Quando não
se sabe o que se há-de fazer com as pessoas, o melhor é pô-las a olhar o
horizonte. Não foi este o caso. Eu faria dela uma contorcionista, dar-lhe-ia o
melhor dos futuros num circo já sem animais amestrados, a não ser os humanos,
mas ela preferiu olhar em frente, para aquele sítio onde uma linha ténue une o
céu e o mar. Com vagar, um veleiro foi crescendo, rompendo a linha, e eu temi,
confesso-o sem vergonha, que o oceano se entornasse para dentro do céu, ou que
este lançasse sobre o mar alguma coisa que não quisesse nele. A mulher que
podia ter sido contorcionista mexia, com os seus belos dedos, longos e afilados,
o meio pacote de açúcar que depositou dentro da chávena. Eu vi o pequeno monte
de cristais brancos sobre a espuma castanha. Eu vi-os desaparecer tragados por
aquele buraco líquido. Eu vi-a a fazer rodopiar, com a mão direita, a colher dentro
da chávena, enquanto a esquerda lhe segurava a cabeça para olhar o horizonte.
Se eu tivesse um circo, contratava-a para contorcionista de horizontes. Não
tenho, as minhas palhaçadas – de palhaço pobre, note-se – não chegam para
animar o negócio. Também eu fiquei a olhar a linha do horizonte.
segunda-feira, 3 de agosto de 2020
Destinos
A primeira notícia que li hoje deu-me a boa nova de que
posso produzir cerveja em casa. É muito mais fácil do se pensa, asseguram uns
mestres cervejeiros. Isso raptou-me a atenção. Sempre me fascinou a ideia de
faça você mesmo e a entrada no mundo obscuro do artesanato. O meu único
problema é que não encontro motivo para entrar nesse universo artesanal através
da porta líquida da cerveja. Que me perdoem os amantes, mas passo bem sem ela, embora
uma vez por outra a beba. Fosse um belo tinto, ainda pensaria duas vezes, mas
esse não se deixa enganar com artesanatos caseiros e diletantes à procura de experiências
para matar o tempo. O vinho é um exercício rigoroso, nascido da contemplação do
passar dos dias, não se presta ao faça você mesmo, ao pronto a beber e todas
essas coisas que um mundo superficial decidiu parir como filhos. Julgo que há
uma conspiração do mundo contra mim. Sempre que vejo anunciado uma boa nova,
ela não me é destinada. Não devemos menosprezar o destino. Prodigioso é o
silêncio na pedra, escreveu um dia o poeta austríaco Georg Trakl. Mais
tarde, foi mobilizado como oficial farmacêutico, ele que era dado ao consumo de
substâncias psicotrópicas, para a primeira grande guerra. A 3 de Novembro de
1914, uma overdose de cocaína pôs-lhe fim ao desconcerto de ter de
participar nesse grande evento da loucura europeia. Não tornará a escrever um
verso, nem poderá murmurar Nos muros, apagar-se-ão as estrelas / e as
brancas figuras da luz. Se prodigiosa é a palavra do poeta, mais prodigioso
é o seu silêncio, esculpido na pedra fria da morte. Um melro, vestido de um
luto fulgurante, saltita diante do canavial. Duas rolas passam e poisam num
ramo seco duma árvore morta há muito. O tempo resvala para dentro de si,
enquanto procuro um copo para beber o vinho deste dia.
domingo, 2 de agosto de 2020
Pessoas de papel
Os ociosos dias de Agosto espalham-se por dentro das folhas
de calendário, trazem odores que o tempo fizera esquecer e recordações inúteis.
As aventuras do salteador Dick Turpin, num livro aos quadradinhos, comprado
pelo meu pai com os jornais antes de entrar no café, uma toalha perdida no meio
do mar, a esteira deixada pela passagem de um veleiro. Em vez dos magnos
problemas do mundo ou do intelecto, eram essas coisas que me ocupavam ainda
agora o espírito. Desconfio, embora sem certezas, de que com o avançar da idade
só as coisas realmente importantes têm o poder de nos captar a atenção. O mundo
e a inteligência sempre fizeram a sua vida sem a nossa contribuição e,
portanto, há que deixá-los sossegados. Ontem conheci o tenente Sturm. O nome
não deixa de ser curioso. Traduzido significa tempestade. O tenente Tempestade
não era um salteador de estrada como Turpin, mas um combatente na primeira
guerra mundial, talvez um alter-ego do seu criador, o escritor alemão
Ernst Jünger, também ele envolvido na guerra e, como Sturm, dado às letras. Uma
homenagem também ao Sturm und Drang. As coisas mudam muito menos do que
se pensa. Na infância, era Turpin ou Alvega que me ocupavam o espírito, hoje é
Sturm e Bradomín, o marquês galego dado a D. Juan. Se temos pessoas de papel
para que precisamos nós das outras? Devia evitar frases como esta. Não respeitam
o senso comum e ainda hão-de servir para me acusarem de inimigo do humanismo,
senão da humanidade. Como se sabe, se este narrador tem uma característica,
embora não um carácter, é o de cultivar a hipérbole. Vou comprar um livro à
minha neta e tomar café.
sábado, 1 de agosto de 2020
Eu e o Marquês
Para começar o mês, um provérbio do Oeste. Primeiro de Agosto,
primeiro de Inverno. A imprensa de hoje está tenebrosa. Parece que o PIB caiu,
só espero que não se tenha magoado. As quedas são sempre propícias a fracturas.
Então se for do fémur, um cabo dos trabalhos. Como se vê, inicio este mês
ferial mergulhado não nas águas atlânticas, mas na cultura popular. Essa é a
minha glória, exprimir-me por lugares comuns e não ter sobre o mundo outros
pensamentos senão aqueles que já não pensam nada. Confesso, porém, que nisto de
expressões populares, como em todo o resto, sou um diletante. Nem tenho um
dicionário de expressões populares portuguesas. Na agenda, anoto as referências
de um que devo comprar. Tem 700 páginas e capa dura. Não lhe faltarão
expressões para usar nestes textos, e um livro encapado com dureza dá outro
sainete. Sempre detestei esta palavra e vejo-me agora obrigado a usá-la. As
pessoas não acreditam, mas as sensibilidades de autores e de narradores estão
muito longe de coincidirem. Hoje já pus a máscara para ir comprar limões à
praça, mas a Rosinha não estava lá. Acabei por me esquecer do que lá ia fazer e
comprei figos, uma das poucas frutas que detesto. Uma desgraça. O que me tem
valido, para me dar boa disposição, é o marquês de Bradomín, esse D. Juan feio,
sentimental e católico, burlador burlado, um fidalgo da velha cepa, daqueles
que já não há. Também ele teve a sua Salammbô, menos dramática e mais carnal.
Por mim, já não seria mau se tivesse comprado limões à Rosinha. Bradomín sempre
é um marquês dos antigos e eu um narrador plebeu e de gosto duvidoso.
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