sábado, 31 de julho de 2021

Uma megera

Sábado. Último dia de Julho. Um mau começo. Um conciliábulo com a balança redundou numa inútil humilhação. Depois de uma semana cheia de exercício, caminhadas a ultrapassar a dezena de quilómetros e a megera ainda teve a desfaçatez de me dizer que o peso – o meu, note-se, não o dela – aumentara. Parece pouco, mas duzentos gramas para cima no lugar dos dois mil que esperava para baixo é muito. Na verdade, entre a expectativa e a realidade vão dois mil e duzentos gramas. A realidade nunca me pareceu ser alguém de confiança. O melhor é não desanimar, a vida é feita destas contrariedades. Há várias explicações para o caso. Algumas delas bastante racionais e convincentes. Por exemplo, pode ser um facto que a balança me tenha tomado de ponta e aproveite estes momentos semanais para se desforrar de alguma insídia que eu lhe tenha armado. Outra probabilidade, não menos razoável, é ser o exercício físico a causa do aumento de peso. Quanto mais se caminha, mais se engorda. Uma terceira possibilidade, tão sensata quanto as anteriores, é a chamada hipótese astrológica. Uma conjugação astral adversa coincidiu com o momento em que coloquei os pés em cima da balança e foi o que se viu. É o que se chama acabar mal o mês e preparar-me para entrar em Agosto com o pé esquerdo, ainda por cima mais pesado. Sempre posso dizer que está inchado, que preciso de beber mais líquidos. Uma voz retine dentro de mim. Mais líquidos, sim, mas não daqueles que tens bebido. Escuto perplexo o acinte da voz e decido que tenho de me levantar e ir escolher os vinhos para o almoço tardio deste sábado.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Moscas

O tempo quente tem vários, e não pequenos, inconvenientes. Um deles é o acordar das moscas. Por certo que tudo o que existe terá o seu lugar e o seu papel. Facilmente se pode aceitar que as moscas tenham um lugar. Por norma, esse lugar coincide com aquele em que estou. Depois, dá-se o estranho caso de quanto mais elas se sentem atraídas por mim, mais eu as detesto. Com exclusão das melgas, não conheço outro ser que por mim mais se sinta atraído do que a mosca. Pergunto-me, nos dias quentes de Verão, que papel foi reservado na criação a esses miseráveis insectos. Por mais que procure, não lhes encontro nenhum, a não ser irritarem-me. Elas cumprem com afinco a função que o Criador lhes deu. Com o progredir do Verão uma pessoa fica sem assunto. Resta-lhe falar em moscas. Um dia destes, farei uma entrada sobre melgas, as quais ainda me irritam mais e mais profundamente que as moscas. A minha cultura é pobre, caso não o fosse conheceria a poesia que louvaria as moscas. Não conheço. O meu desconhecimento, porém, não é prova de que não exista.

domingo, 25 de julho de 2021

Do sofrível

Ontem acabei o texto com a palavra sofrível. A primeira vez que me lembro dela foi num certo colégio por onde andei a seguir à quarta classe. Fazia parte de uma estranha escala de classificação. Situava-se acima do medíocre e abaixo do suficiente. Imagino que o sistema classificativo do colégio estivesse já desadequado, mas talvez seja apenas eu que sou muito mais velho do que gosto de admitir. Não consigo imaginar as razões que terão levado alguém a transformar um adjectivo que diz que algo se pode suportar ou sofrer num nome que refere um certo desempenho escolar. Seja como for, os professores daquele tempo tinham uma escala mais ampla para classificar as provas e, quando estavam cansados desta, juntavam-lhe mais e menos. Os alunos, então, tinham suficiente menos que não se confundiria com sofrível mais, como o bom menos não era em nada idêntico ao suficiente mais. Tive uma professora de Físico-Química que se entretinha a distribuir medíocres e maus com vários menos e mais à frente, numa escala cujos arcanos só ela conheceria. Desconfio que, naqueles dias, a profissão de professor era muito entediante e havia que passar o tempo a inventar estes jogos classificativos. O lamentável de tudo isto é que a palavra quase caiu em desuso. Ninguém diz mas que filme sofrível ou aquele é um poeta sofrível, embora eu possa dizer que a minha inspiração está sofrível ou talvez mesmo medíocre, com um mais à frente.

sábado, 24 de julho de 2021

Do terrível

Todo o anjo é terrível. Assim começa a segunda Elegia de Duíno, de Rainer Maria Rilke. Tantas vezes dei comigo a pensar sobre essa estranha sentença, não sobre a sua verdade, mas a perguntar-me se ela não é uma pista para decifrar o enigma daquilo que nos aterra, o mistério do terror. Sempre que algo de terrível assombra os homens talvez seja a obra de um anjo ou de uma legião deles, mesmo se nós nos convencemos que o excesso de iniquidade ou de prazer seja o fruto do arbítrio humano. Pensar sobre os anjos não será o mais indicado para uma tarde soalheira de um sábado de Julho, com o mar tão perto. Encerro os pensamentos na gaveta do armário onde guardo as toalhas de praia e os calções de banho, e espero que também esses pensamentos adormeçam e deixem de me assediar aos sábados à tarde. Ponho de lado o poeta e deixo-me cativar pelas longas conversas com que os pássaros, mesmo ao pé da janela, ajustam os negócios da sua vida. Tenho de me aprontar, parece que alguém se esqueceu de comprar gengibre. Sem ele, o jantar estará ameaçado, ou talvez ninguém desse por isso, pois um anjo terrível se haveria de dispor a embotar o gosto dos comensais e, como um certo génio maligno que atormentou o pobre René, haveria de fazer parecer óptimo aquilo que apenas era sofrível.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Encontros

Num bar da praia a que vou, nas raríssimas vezes que me disponho a ir a tal lugar, quem haveria eu de encontrar? É verdade que na ilha adjacente os jesuítas possuem uma casa de veraneio e não é a primeira vez que por ali encontro o padre Lodovico Settembrini. Venho contemplar o oceano, disse-me. Aliás, é o que sempre me diz quando o encontro por aqueles sítios. Não estava, porém, a olhar para o mar, mas lia um jornal enquanto bebia café. Faço-lhe o reparo, mas ele não desarma. A contemplação é da janela do meu quarto. Dali, vejo o mar como ele é. Largo, profundo, de um azul ao mesmo tempo celestial e tenebroso. Daqui, vejo as ondas sobre a areia e uma ou outra rapariga em biquíni. Suspendeu o discurso e deu uma gargalhada. Eu sei, eu sei, continuou, que já não tenho idade para estas visões, mas elas metem-se mesmo diante dos olhos e eu ainda não sou cego. Não imaginei, respondi-lhe, que o problema fosse a idade, mas a condição. Olhou-me com despropositada ironia e retorquiu: a condição sacerdotal não elimina a condição de ser homem. Às vezes, nem dá um modo de lidar com essa particularidade, mas, afirmou como se me quisesse tranquilizar, o meu olhar é inocente. Com o tempo consegui chegar ao estado de inocência. Depois, mudou de conversa e disse-me que o Hans Castorp chegará amanhã com a mulher. Vêm da Galiza, de casa da família dela, Emilia Bázan. Podemos ir jantar todos à Brasserie, aqui perto, sugeriu. Eu disse-lhe que era uma excelente ideia, mas havia que ter em conta se o concelho vizinho não estaria sob o efeito de medidas restritivas por causa da pandemia. Seja como for, acrescentei, trato do assunto. Na praia, havia apenas os alunos das escolas de surf. Para eles não há bom nem mau tempo. O mais nublado dos dias é ainda óptimo para cavalgar as ondas. Terei também de comprar uma prancha para a minha neta mais velha, disse para mim mesmo.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Tributos

Aqui perto alguém ouve rádio. Há palavras que não decifro e uma música que reconheço como inimiga dos meus ouvidos. Presumo que seja alguém da minha geração, embora eu não pertença à minha geração. Não é que me julgue acima dela, pelo contrário. Sou anacrónico e nunca consegui acompanhar o ritmo das coisas que fizeram a moda no tempo em que as pessoas ligavam à moda. Há dias, numa daquelas reuniões online em que a vida se tornou fértil, um dos participantes, músico nas horas vagas, disse que o seu grupo ia actuar, não consegui perceber onde, e prestar tributo a um outro grupo inglês, famoso naqueles dias em que se é novo e se deveria prestar atenção a essas coisas. Um frémito perpassou pela assistência virtual, desejosa também de tributação. Fiquei com pena de mim, pois não senti qualquer frémito, nem vontade de qualquer tributo. Para tributo, já bastam os impostos, diria eu, caso fosse um liberal, mas não sou. Como narrador, estou proibido pelo autor de ter qualquer ideia política, o que talvez seja uma vantagem. Acabei uma das tarefas que a realidade me impôs e tenho uma enorme vontade de ir dormir uma boa sesta. Talvez não seja uma má ideia.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Língua morta

Pensava que iria fazer uma longa viagem de uns dezasseis ou dezassete graus, mas afinal ficou-se por uns míseros nove. Julho, sem piedade, abre o véu para que o Sol, na sua inquietação, dardeje a Terra. O resultado é, muitas vezes, devastador. Já era tempo de o astro se tornar grego, cultivar a justa medida e fazer sua a máxima nada em excesso. Talvez por tudo isso tenho na mão um livro com uma belíssima capa, em tons de azul, feita a partir de uma imagem de Pieter Bruegel. Descubro que a tiragem foi de 300 exemplares e que a editora tem o sugestivo nome de Língua Morta. O que tem tudo isso a ver com o calor? Talvez nada, mas o título do livro é Canícula, o que dá nome um nome tórrido a um conjunto de poemas de Daniel Jonas. De uma outra imagem do mesmo Pieter Bruegel fez-se, mais uma vez, capa de livro, também de poesia, Spinalonga, de Amândio Reis. Enquanto escrevo isto, oiço múltiplas comunicações sobre assuntos tão tolos quanto inverosímeis, que hão-de servir para coisa nenhuma. É um prazer viver num país onde a maior parte das coisas que se fazem não servem para nada, embora sejam absolutamente necessárias. Sem elas, talvez o mundo acabasse. Seja como for, espanta-me sempre a grande capacidade que os portugueses têm de adaptar-se a cada novilíngua orwelliana que surge. Gostamos muito de falar e não tememos nunca a falta de assunto. Mais logo terei de fazer uma caminhada. Grande, de preferência, pois preciso de acumular pontos cardio, seja lá isso o que for. O que me apetece, todavia, é uma bela soneca. Na verdade, usamos a língua como fosse uma língua morta.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Fastio

Tudo isto se tornou muito monótono. Olha-se para um jornal ou para um noticiário na televisão, e parece que a realidade flutua entre o judicial e o patológico. A pergunta sacramental de quem se dispõe a ver notícias é quem foi hoje preso ou condenado? Quando as coisas não começam por aí iniciam-se com a pandemia. Os casos aumentam, também os internados e aqueles que estão em cuidados intensivos. Há muito que julgo ser a realidade uma coisa perversa. Há que ser mais preciso. Ela é perversa e muito fastidiosa. Dizia-se, não sei se ainda se diz, que uma pessoa sem vontade de comer tinha fastio. Eu, em criança, sofria imenso de fastio. Depois, vá lá saber-se a razão, passou. Hélas! Daqui a pouco terei de sair de onde estou, um lugar de temperaturas amenas, para regressar à antecâmara do inferno. Vou fazer uma viagem de 10 graus. Na sexta-feira, estarão 40. Por antecipação, sinto já os meus velhos neurónios a derreter. Se com eles arrefecidos aquilo que escrevo é o que é, o que será quando mergulharem nesse braseiro, prova das alterações climáticas?

domingo, 11 de julho de 2021

Cheirar a esquecimento

Um poeta romeno escreve os seguintes versos Die Schöne Müllerin / entra no quarto / cheirando a esquecimento. A primeira reacção é ouvir esse ciclo de canções de Schubert. Envolto pela música posso deter-me noutra paragem. Esta é equívoca. Não é claro quem ou o quê cheira a esquecimento. A bela moleira? O quarto? Inclino-me para o quarto. Se a moleira é bela, por que razão haveria de cheirar a esquecimento. Duvido que uma mulher bela, mesmo se moleira, possa transportar consigo o aroma do oblívio. Não lhe seria permitido. Resta o quarto. Quem nunca entrou num quarto que cheirava a esquecimento, como se a vida que nele existiu tivesse acabado há muito? Tudo parece composto, a cama feita, os móveis arrumados, mas tudo isso aconteceu noutra era. Quem viveu nesse quarto há muito que terá perdido a memória dele e quando alguém ali entra, é recebido pelo odor do abandono. Hoje é domingo. Aos domingos, almoço sempre mais tarde e tenho uma certa inclinação para escrever disparates. Temos de passar o tempo de alguma maneira. Fischer-Dieskau continua a cantar em Paris, nesse longínquo ano de 1991, o ciclo Die Schöne Müllerin. Há coisas que resistem ao esquecimento ou que levam mais tempo a serem esquecidas.

sábado, 10 de julho de 2021

Um sábado de Julho

Devia estar num sítio para onde se anunciam 38 graus. Literalmente, pus-me ao fresco, tão fresco que nem aos 23 chegará. De manhã, um dos sites que me informa sobre os devaneios do clima dizia-me que aqui estavam 17 graus, mas a temperatura sentida era apenas de 13. Com isso confirmei a velha tese do senhor Cartesius. Os sentidos enganam-nos. Sente-se uma coisa e está outra. Tinha pensado comprar hoje um daqueles jornais de fim-de-semana. Há muito que deixei de ler a imprensa em papel. Tinha visto, todavia, um artigo que queria ler. De manhã, quando fui à rua, esqueci-me de comprar o jornal. Talvez para compensar, também me esqueci qual era o artigo e nada me garante que, comprado o jornal, me consiga recordar. Em contrapartida não me esqueci de adquirir um belo Alvarinho. Estou certo que valerá mil artigos de jornal. Não sou um cultor de vinhos brancos, nem de verdes. O Alvarinho é excepção. Só dois concelhos constituem a região do Alvarinho, Melgaço e Monção. Saiu-lhes a sorte grande. Também em Espanha, do outro lado do rio, há uma zona de Albariños. Não é por propensão patriótica, mas prefiro os de cá. Os galegos, por certo, preferirão os deles, que, diga-se, são bons, mas não falam português. E não vale a pena virem com a história do galaico-português.

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Um padre contaminado

Fui contagiado pelo Papa, ouvi. O Papa tem alguma doença contagiosa, apanhou COVID, perguntei, e acrescentei, de imediato, que não sabia que tinha estado com Sua Santidade. Nesse momento o padre Lodo deu uma enorme gargalhada. Não sou digno, afirmou, de ser por ele recebido. O contágio é outro, a bola. Franzi o sobrolho e disparei para o telemóvel, a bola, mas qual bola? O futebol, o campeonato da Europa. O Papa é adepto de um clube argentino e eu, que nunca na vida liguei ao futebol, estou em transe devido à final do campeonato da Europa. Sempre sou italiano, é preciso não esquecer, embora eu quase me esqueça todos os dias. Sou de uma família iluminista, mas que deu à luz um jesuíta. A minha vontade foi sublinhar que cada um terá os vícios que entender, mas contive-me. O pior é que o padre Lodo está mesmo entusiasmado. Sabe, inclusive, o nome dos jogadores italianos e até de alguns ingleses. Nunca imaginei, foi preciso chegar a velho, continuou, para olhar para a bola. Depois riu-se. Talvez Deus me perdoe este entusiasmo, mas a minha idade terá de me dar algumas prerrogativas, e gostar de futebol talvez seja um pecado, mas apenas venial, acrescentou. Quando nos despedimos, perguntou-me se não lhe desejava boa sorte para a final. Claro que desejo, sempre são latinos e os bárbaros da ilha não sabem o que é cultivar a vinha. Ele riu-se.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Palavras sem significado

Há palavras que não querem dizer nada. Julgo que foi Roland Barthes, mas o tempo corroeu a certeza, que chamou a atenção para a não significação do adjectivo agradável. Dizer que um romance ou um concerto são agradáveis não diz nada sobre eles. É uma forma de não dizer aquilo que se sente ou pensa, para evitar um inútil conflito. Há pouco li, num comentário a uma peça musical, outra expressão que não quer dizer nada. Uma música inspiradora. No entanto, quem a escreveu tem a inocência que o presumível Barthes não tinha. O comentarista julga mesmo que é um elogio fazer notar que a música é inspiradora, pois nada tem a dizer sobre ela e encontrou ali um refúgio para a sua necessidade de exprimir uma opinião. Deveria haver um dicionário de palavras que não querem dizer nada. Seria de grande utilidade para a educação da urbanidade das pessoas. Existe quem julgue ser de grande mérito dizer a verdade – isto é, aquilo que acha que é a verdade – e não hesita dizer coisas desagradáveis, sem que isso contribua para uma atmosfera mais saudável. Acaba sempre por se justificar, eu cá não tenho papas na língua. Quem a ouve sente pena pela falta das papas ou pela existência da língua. Educar as pessoas para a urbanidade não é um exercício de cinismo, como se poderá supor. O que cada um acha o que é a verdade e aquilo que esta é são coisas muito diferentes. Se o assunto não for decisivo, optar pela urbanidade e usar uma palavra que não significa nada torna o mundo mais aprazível. Alguém pode dizer que este texto é agradável ou inspirador. Isso não quer dizer nada sobre ele, mas a atmosfera fica menos poluída. É tudo uma questão de poluição. Agora, porém, terei de ir ler um conjunto de coisas que não posso dizer que sejam agradáveis e inspiradoras. 

quarta-feira, 7 de julho de 2021

No labirinto da saudade

Hoje fui à capital de distrito. O sítio que me esperava tem, há muito, novos caminhos, mais rápidos, para lá chegar, mas como é hábito fui por aqueles que conheço desde a infância. Os outros são para mim meros atalhos disfarçados de ruas modernas e não possuem nada que justifique a passagem por eles. Não será descabido dizer que fui fiel à tradição, a uma tradição pessoal. Pessoas mais objectivas dirão, não sem razão, que sou um conservador. Custa-me ver aquelas pessoas que chegadas a uma idade razoável continuam a depositar uma fé inabalável no futuro. Ora, a única coisa certa que o futuro trará é o facto de não estar cá, de não haver lugar para mim. Nem acho que isso seja um mal ou uma injustiça. É a natureza das coisas, há que aceitá-las no que são e evitar dourar a pílula com expectativas que nunca se poderão comprovar. Se olhar para o passado, constato que muitas coisas mudaram, tornaram-se melhores, muito melhores. Isso não significa, porém, que continue a acontecer. Quanto à fé no futuro, o melhor será suspender o juízo e evitar louvar o que não se conhece nem conhecerá. Seja como for, gosto sempre de ir à capital de distrito. Não é que seja uma cidade esplêndida e cosmopolita, não é, mas, de alguma maneira, faz parte do meu passado. Hoje devo ter acordado com alguma alteração neuronal. Não tarda e dou entrada no labirinto da saudade. O melhor será marcar consulta.

terça-feira, 6 de julho de 2021

Almotolias e traduções

Talvez ainda existam almotolias, mas por certo os serviços de manutenção dos parques infantis da cidade não as possuem. Caso as possuíssem, já teriam oleado, agora que estamos em pleno Verão, as roldanas dos baloiços. Então, as crianças baloiçar-se-iam sem o ruído opressor do ferro a ranger na fricção com outro ferro, como se a matéria fosse viva e tivesse estados de alma e vontade de chorar. Fora eu compositor e escreveria uma peça, talvez uma peça para violino, piano, fita magnética e roldanas. Como não o sou, o mundo fica poupado ao meu desvario, evitando experiências insanas nascidas numa mente ociosa. Também poderia ser mecânico e ter em casa uma almotolia. Pegaria nela e, pela calada da noite, olearia o ferro para descanso dos ouvidos de quem vive por aqui. Falta-me, porém, o talento para a mecânica, não tenho almotolia, nem para o azeite. Ambas as palavras têm origem árabe – al-motoliiâ e az-zait – como muitas outras. Consta que as línguas têm menos preconceitos rácicos que aqueles que as falam. A tarde avança irrequieta. A tradução de um verso de Eliot deixou-me inquieto. O poeta escreveu The only wisdom we can hope to acquire. O tradutor verteu para O único saber pelo qual podemos ter esperança. Eu traduziria por A única sabedoria que podemos desejar, deixando cair o acquire, pois todo o desejo traz nele o impulso para a aquisição do desejado. Bem, perguntar-se-á, que sabedoria é essa. Eliot responde: Is the wisdom of humility: humility is endless. O tradutor transforma a sabedoria da humildade, que o poeta propõe como um fim em si mesmo, num saber instrumental que serve para poder ter esperança. Com isso perde-se o essencial, a ideia de a humildade não ter fim. Sendo um fim e não um instrumento ela é infinita. Isto, porém, são especulações de quem tem de ocupar espaço com palavras. Amanhã ocorrer-me-á algo mais interessante, assim o espero. Uma criança chora, alguém acelera uma moto e há dias que não vejo anjos nos telhados dos prédios envolventes. Terão ido de férias?

domingo, 4 de julho de 2021

Quartéis e lustros

Um quartel. Quantas pessoas ainda saberão o que é um quartel ou que este contém cinco lustros. Foi precisamente há um quartel que nasceu a ovelha Dolly, o primeiro animal clonado. Isto terá entusiasmado imensa gente e também assustado outra tanta. O susto nasce da possibilidade de se clonarem seres humanos. Não tenho dúvidas que haverá quem, se pudesse, clonava-se. Aliás, encheria o mundo de clones seus. Por mim, dispenso ser clonado. Para desgraça, já basto eu. Por outro lado, ainda continuo a achar mais interessante o velho método de fabricar bebés humanos. Talvez a técnica, um dia, se torne mais precisa e seja mais eficaz produzir seres humanos por manipulação genética, uma espécie de propagação por mergulhia (como me fui eu lembrar de tal coisa?), de que reproduzir segundo a tradição com todo o desgaste de energia e de emoções que o caso ainda exige. Com a idade as pessoas tornam-se conservadoras. Também hoje faz 245 anos, nove quartéis e quatro lustros, que as treze colónias declararam a independência do império britânico, dando origem aos EUA. Talvez haja uma relação entre uma coisa e outra, é possível que os americanos quisessem ser uns clones dos britânicos, independentes e imperiais como eles, mas isto é especulação. Eu gosto muito da América, mas gosto ainda mais de não ser americano, coisa em que não tenho qualquer mérito. Ouvem-se por aqui as sirenes, mas nada disso tem a ver com a clonagem da Dolly nem com o Dia da Independência. É um velho hábito usado por ambulâncias, carros da polícia e de socorros a náufragos.

sábado, 3 de julho de 2021

Trivialidades

O sol, no sítio para onde fugi, nasceu tarde, para dizer a verdade ainda não nasceu por completo. Durante grande parte da manhã manteve-se oculto por uma muralha densa de nuvens e, mesmo agora, só a espaços espreita o que se passa em terra. Caminhei durante seis quilómetros, a maior parte do tempo envolto numa névoa vinda do mar. O farol de um dos molhes não era visível a cem metros e os barcos que saíam do porto e passavam diante dos meus olhos eram apenas esboços, navios-fantasmas, qualquer coisa vinda de um mundo desconhecido. Num poema de Louise Glück leio o verso Um dia seguia-se continuamente a outro. Será legítimo reconhecer como grande poetisa quem escreve um verso tão trivial, perguntará alguém que espera da poesia um festival de fogo-de-artifício. Qualquer dia se segue a outro, numa caminhada contínua, mas será que vemos isso? Será que sentimos até ao fim o enigma que essa trivialidade encerra? Qualquer coisa de inquietante – uma inquietante estranheza, para citar Freud – se insinua na familiaridade aparente do verso. Os sábados, oiço dizer, não se devem gastar com conversa tão soturna. Aquiesço e penso que os sábados se seguem continuamente às sextas-feiras. O sol continua em processo de libertação das nuvens que o escondem. Não tarda e mostrar-se-á exuberante, talvez porque hoje seja mais um sábado que se segue a uma sexta-feira.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Acção paralela

Nos poucos cronistas de jornal que ainda leio conta-se um que deu à sua coluna semanal a designação de Acção Paralela. Não vou aqui contar a história da Acção Paralela, nem tão pouco especular sobre as razões que terão motivado tal escolha pelo colunista. Não o conheço e as suas motivações não me interessam. Digo apenas que é uma citação literária de um dos elementos da trama romanesca de O Homem sem Qualidades, de Robert Musil. Não parece, esta informação, particularmente motivante para levar quem nunca leu o exorbitante romance a lê-lo. Bem, há quem pense que não se trata de um romance, mas de um anti-romance, talvez influenciado pela Física que à matéria opôs a antimatéria. Já me estou a perder no que ia dizer. Disse que o romance é exorbitante, pois, apesar de inacabado, ou talvez por isso, tem largas centenas de páginas. Quem gostar de literatura, eis uma obra excelente. Quem gostar de entretenimento, esqueça. Há por aí muitos livros venturosos de autores aventurados. Musil faz parte de um quinteto que abriu o romance à modernidade. Desse grupo constam Kafka, Broch, Joyce e Proust. Isto, todavia, não interessa a ninguém, ainda menos se se está a entrar no fim-de-semana, o qual é uma espécie de acção paralela à semana útil – embora, não se perceba em quê – propriamente dita. Caso eu tivesse talento e propensão para romancista, haveria de escrever um romance com o título Acção Paralela, no qual haveria de ficcionar a minha natureza de narrador sem qualidade. Julho entregou-se ao calor. Talvez este narrador se devesse entregar a uma psicanálise do fogo.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Arremedos

Hoje lá me submeti a um teste à COVID-19. Faz parte da vigilância que com que se pretende trancar a casa roubada. Não é que seja uma provação, nem nada que se pareça, mas já era altura de encontrarem outro método para recolher os indícios do crime. Se não se deve meter os dedos no nariz, também será pouco elegante enfiarem uma zaragatoa por ali adentro e escarafunchar, fazendo-a rodar para um lado e para outro. Pior que a impressão física sentida é a perspectiva estética do evento. Há que manter a compostura mesmo numa coisa como essa. Passam das nove e meia da noite e ainda há uma luz crepuscular. O céu tem uma cor de cinza quase a cair para o chumbo. Não tarda, estará negro. Então, dir-se-á é de noite. Alguém poderá responder já não há noites como as de antigamente. Essas, sim, eram noites a sério, negras, a via láctea bem definida. Agora, há tanta luz na cidade que já nem se vê a noite. É tudo um arremedo. Ainda haverá gente que diga arremedo? Vindas da rua, umas gargalhadas denunciam um convívio jovial. Pelo tom, parece que os convivas se arremedam uns aos outros. É de noite. O teste deu negativo, o que me permite pensar no fim-de-semana.