segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O castelo


Ao fundo, sob o punhal do sol, o castelo reverbera. Há no brilho da pedra uma tal indiferença que o olhar recua e dobra o joelho em busca de piedade. Habituamo-nos às coisas e não escutamos a sua linguagem. São tantos os anos que passaram por aquelas muralhas, que é desdém o que elas destilam perante a nossa pobre azáfama com o fim de ano e o começo de outro. Para quê?, parecem elas perguntar, enquanto se deixam embalar pelo vento leve que, como um amante embevecido, as toca com cuidado. Na avenida, mesmo aqui em baixo, as pessoas passam, cumprimentam-se, desejam-se bom ano, mas ninguém vê o riso escarninho que se solta daquelas ameias que já viram de tudo. Rasgadas pela lâmina solar, sangram passados remotos e ilusões perdidas. Tal como nós.

domingo, 30 de dezembro de 2018

Uma tarde

Passei a tarde, com as minhas netas, entre o Arripiado e Constância. O sol invernoso erguia-se magnífico sobre o Tejo e tudo estava tingido por uma serenidade que se inclinava para a melancolia. As águas corriam suaves, um barco desprendia-se do cais para levar os visitantes ao castelo de Almourol, os chorões, como súbditos perante o senhor, dobravam-se e tocavam com os ramos no chão. Enquanto as crianças corriam, nada bulia e o espectro da perfeição perfilava-se no horizonte, uma garantia de que Deus existe e a terra pode ser um paraíso. Cheguei a Torres Novas já a noite caía. Então, as luzes de Natal atingiram-me como os estilhaços de uma bomba e acordaram-me da irrealidade onde o Tejo me tinha mergulhado. Contemplei-as, infeliz. Talvez Deus não exista e, por certo, aqui não é o paraíso, pensei, enquanto entrava na garagem.

sábado, 29 de dezembro de 2018

Manhã de sol

A manhã deslizou sem sombras. Saio e o dia anuncia o Ano Novo, como se este fosse uma promessa. Percorro a avenida. As pessoas trazem ainda no rosto o cansaço do Natal, esse exercício de penitência disfarçado de alegria. Vou vazio e nenhuma ideia se fixa na mente. Sou um espelho e reflicto aquilo que passa diante de mim. Um cão a ganir, os carros em marcha lenta, gentes que entram ou saem dos cafés. Paro diante de um e hesito em entrar. Vejo, ao fundo, alguém conhecido. Sigo caminho. Não estou sociável e o sol, o sol de inverno, chama-me. Pertenço mais ao reino vegetal do que ao social, pensei, não sem contentamento. Vou passeio fora como se vegetasse, ou fosse um espelho, ou um grão de areia perdido à beira do oceano. A cidade curva os ombros sob o peso da luz, uma criança corre num relvado. A mãe olha de dentro do seu desvelo. E isso basta.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Culpa


As minhas netas, montadas nas bicicletas e de capacetes nas cabeças, voltejavam sem parar no espaço público que separa os prédios da zona onde vivo. Eu estava ali, especado, a apanhar o sol frio do fim da tarde, com o duplo papel de polícia sinaleiro e segurança privado. E enquanto ia dando indicações ao trânsito e vigiava os perigos que poderiam surgir, a minha memória recordava os dias em que tinha a idade delas e ia para rua. Sem sinaleiros nem serviços de segurança. Talvez uma mãe por outra assomasse discreta à janela, mas a última coisa que queríamos era que nos orientassem os passos ou vigiassem os projectos. A rua era um território livre de ameaças, a não ser algum polícia que pudesse aparecer para nos levar a bola, como exercício de autoridade e manifestação de despotismo. O azul do céu de inverno era, naqueles dias, tão puro como o de hoje, mas as mentes dos adultos de então eram, incomparavelmente, mais inocentes e límpidas do que as nossas. A culpa que nos habita faz-nos temer sempre o pior.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Um passeio na manhã


Nas ruas, um manto de tristeza abate-se nas árvores desfolhadas pela invernia, enovela-se nas faces de quem passa. Os carros gorgolejam indiferentes, motores a rezar o responso, faróis como velas a iluminar um altar sem Cristo nem santos. Os ciprestes anunciam o cemitério e a cinza do dia, tingida pelos odores oleosos da morte, ergue-se sobre a cidade, rumoreja traições e desditas, poisa nas casas escalavradas, roídas pelo tempo, suspensas no punhal do abandono. Encolho os ombros, olho a desventura a porejar em portas que já não se abrem, vejo a morte a pairar em paredes sulcadas de rugas. Nenhuma maquilhagem as disfarçará. O tempo é um cavalo negro e corre à desfilada para dentro do meu esquecimento.