sábado, 31 de outubro de 2020

Despedida de Outubro

Outubro despede-se em glória, deixando atrás de si um halo de luz e um rasto daquele calor que torna a vida aprazível. Quando a tarde se aproxima do crepúsculo lembro-me dos momentos em que um grupo de velhos amigos se reunia à volta da mesa e deixava que o pão e o vinho abrissem o caminho a longos discursos, em que cada um corrigia a maldade do mundo e a perversidade dos corações, ou então falava da beleza ou da ocultação do sagrado. Ninguém, entre os convivas, cria nas suas próprias palavras, mas o momento era-lhes propício, e todos tinham jurado que, sendo adequada a altura, não haveriam de lhe faltar com a eloquência que fosse a sua. Bebíamos e falávamos, tudo nos parecia naqueles dias possível, embora soubéssemos que nos estávamos a mentir. Mentíamos para ocupar o tempo, pois a verdade é tão crua e tão seca que logo mata o discurso. Agora os meses limitam-se a passar. Por vezes, telefonamo-nos, perguntamos pelos filhos e pelos netos, se já os há. Há dias recebi uma chamada. Se queria ir jantar. Estaria presente a, e aqui omito o nome. Vão gostar de se ver. Eu não vejo aquela cujo nome não digo há mais de trinta anos e recuso o convite. Não suportaria destruir a beleza dela que ainda subsiste na minha memória pela frivolidade de um encontro. Há que saber hierarquizar as coisas, disse.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Pensamentos

Ocupo o tempo não sei se em jogos florais se em guerras do Alecrim e da Manjerona. Como um pedinte que não pode abandonar a esquina onde recebe no chapéu roto as moedas com que transeuntes indiferentes aliviam a consciência, também eu, movido pela estrita necessidade, vivo num universo de mais pura irrelevância, concebido por um génio maligno, que tem ao seu serviço legiões de espíritos impuros. Caso exista um céu e que aos homens seja dado conquistá-lo, muito difícil me parece a tarefa, tendo de viver em lugar onde aquele que não se nomeia ordena, meticuloso, o caos. Este pensamento sombrio chegou-me depois de outro mais luminoso. Olhei para o Sol, para a luz, para o revérbero das paredes e disse-me que talvez este ano haja Verão de S. Martinho. Contrariamente ao Verão propriamente dito, o do santo alegra-me. Num leilão de livros online, vejo um livro de um jesuíta que foi meu professor. Uma das grandes figuras da cultura portuguesa do século passado. O seu livro, porém, vale à partida 1 euro, embora o mais provável é que não valha nada. É o mercado a funcionar. Também eu me leiloaria, não fora a inutilidade do gesto. Assim, em vez de me sujeitar a licitações fui comer uma broa dos santos, coisa que aqui tem maior culto e arrasta mais devoção do que os próprios santos do altar.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A felicidade da falência

O dia acrepuscula-se não tarda. Ainda o sol está no horizonte e a luz já é frouxa, arrastando tonalidades de sombra e recordações da noite que há-de chegar. Atravessei a cidade várias vezes. Fui e vim, fingindo ter um destino. Não tenho destino, tenho necessidades, e são elas que me fazem ir e vir. Não as tivesse e seria inerte como uma estátua, imóvel como uma rocha que lançou as raízes no fundo da terra. E nessa pura imobilidade estaria toda a minha perfeição. Perfeito é o que não se move, que não muda. Seja como for, não é o meu caso, que a necessidade torna volúvel. Também os pássaros meus vizinhos são dados à imperfeição. Voam em círculos, ora largos, ora apertados, desenham figuras de ócio com as asas, planam como surfistas que cavalgam as ondas. E cantam. Tento decifrar-lhes a linguagem, mas no momento em que parece que lhe descubro um sentido, um novo gorjeio lança-me na incerteza, deixa-me perplexo, até que reconheço que falhei mais uma vez. Todos os dias elejo uma actividade em que seja impossível ter sucesso, aplico-me a ela com denodo e vigor, até que chega o momento da derrota e eu sinto toda a felicidade que há na falência do próprio desvario. Então leio Und dieser Zustand verging nicht. Não percebo, mas na outra página está a tradução, a mais adequada das traduções a esse estado que me acompanha em cada falência que construo com o ânimo de um conquistador.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Paixões vulgares

De manhã fui de tratar de assuntos do carro. Tudo agora obedece a uma organização que se pretende eficaz e protectora. Valha a verdade que os funcionários não são muito eficientes no cumprimento de regras de protecção, como se lhes faltasse a fé no credo sanitário que nos guia. Assunto tratado, rumei para a minha secretária onde me esperam mil insignificâncias e outras tantas minudências, com as quais atendo aos ditames da necessidade. Faço-o, ao atendimento, não só na secretária, mas também na entrega à pura representação de um papel para o qual me falta o talento e, com a passagem dos dias, o ânimo para não deixar morrer de fome a ficção com que entretive a existência. Com a pandemia e o uso da máscara, quase me sinto um velho actor grego. Ia mentir, mais uma vez, ao leitor. Estava pronto para escrever que não sabia se represento comédias ou tragédias. Eu sei. Tendo em conta quem sou, a tragédia, reservada aos caracteres nobres, está-me interdita. Apenas posso representar comédias, só me cabem as paixões dos homens vulgares. Dou por mim a escrever com o dedo no vidro que cobre o tampo da secretária. Depois recordo-me que Cristo, na perícope da adúltera, escrevia com o dedo no chão. O que terá escrito no pó apenas Ele saberá. O que escrevi no vidro, nem eu sei. Preciso de tomar café e isso tem o mérito de evitar prolongar indefinidamente esta conversa inútil.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Os dias decrescem

Como um fósforo que mal se acende e logo o vento apaga, o dia amanheceu iluminado por um fogo descido do céu. Olhei-o surpreso, ainda mal refeito daquele momento de estupor que cai sobre mim ao acordar, mas de imediato as nuvens em tropel tomaram conta do firmamento, cobrindo a terra com uma mantilha de cinza. Outubro, esse mês de amenidades e prenúncios, caminha para o fim, enquanto os dias se estreitam e as noites erguem asas cada vez maiores. Vejo vultos na rua, gente com afazeres, alunos esquecidos das aulas, homens em trânsito entre negócios, mulheres que trazem na cara a faca da decepção, gente a quem a idade quebrou o vigor. Um cão corre à desfilada, no passeio do lado de lá. As torres do castelo, as duas que ainda avisto, contemplam com desdém a cidade. Hoje evitei as notícias logo pela manhã. Talvez tivesse deixado de crer que a leitura diária do jornal é a oração matinal do homem moderno. A frase de Hegel fascinou-me em tempos, mas o deus que ali se cultua, descobri-o, é perverso, vingativo, e o seu odor não é o do incenso, mas o do enxofre. Olho a avenida, os carros passam, uns adolescentes trocam palavras agudas, enquanto eu penso que a cidade onde vivo é uma aldeia que bem merecia ser elevada a vila. Tem um castelo e um rio, um jardim público, uma praça grande que serve de brasão. O que mais precisará?

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Uma Antígona melancólica

Olhei para um livro do Régio que tinha na secretária e ri-me do título, As Raízes do Futuro. Quando se chega a certa altura da vida, aquilo que era um mero pressentimento torna-se uma realidade iminente. Pouco interesse para o caso o tamanho da iminência. O pior nem é isso, mas a pergunta sobre o que se fez nesses dias em que havia um futuro, ou talvez nem seja nada disso e a única coisa a fazer seja celebrar o dia, beber o cálice até ao fim. Isto contou-me a Lu, quando me encontrou e convidou para tomar café com ela. Perguntei-lhe pela irmã, disse-me que fora apenas um susto, que tudo lhe ia bem e logo encerrou o assunto. Estava inclinada para a confidência e para a melancolia, coisa muito rara nela. Talvez as Antígonas devam morrer jovens, pensei, enquanto ela discorria sobre a existência, num exercício que parecia reunir a contabilidade e a confissão. Ouvi-a em silêncio, na minha mente perpassavam imagens dela quando nova. O tempo é sempre devastador, ouvi-a dizer. Respondi que ela não se podia queixar. Deixa-te disso, já não temos idade para galanteios desses. Depois, calou-se, olhou-me e exclamou: agradeço-te. Apesar de tudo faz-me bem. Rimo-nos e eu acrescentei temos de fingir. Sim é o que nos resta, disse. Saímos do café e separámo-nos. Ela foi à vida dela e eu comprar uma solução hidroalcoólica para desinfectar o que tiver a desinfectar.

domingo, 25 de outubro de 2020

Luz imóvel

A luz que ilumina a avenida, curvada à cinza que se desprende do exército de nuvens, dá uma estranha ilusão de imobilidade, como se o tempo tivesse suspendido a voracidade com que devora os seus filhos e se recusasse a passar. Imagino que o sentimento da passagem do tempo se deve todo ele às metamorfoses da luz, como se estas fossem sinalizadores de que não é na eternidade que vivemos, mas que tudo tem um princípio e um fim. Uma mulher vestida de preto, atravessa a passadeira. Outra arrasta atrás de si, pelo passeio molhado, um cão. Vestem-se de invernia. Lençóis de folhas mortas estendem-se junto aos passeios, enquanto os carros passam endomingados, uns à procura de um lugar para descansar, outros a dirigirem-se para outro lado, como se os seus condutores tivessem um destino, uma Penélope à sua espera, uma guerra para combater. Talvez estejam apenas atrasados para a Missa do meio-dia, aonde vão de consciência contrita e certos da indulgência que hão-de receber as iniquidades que, durante a semana, não se esqueceram de realizar. Um raio de luz mais intenso atravessou a atmosfera e fendeu a realidade, o tempo recomeçou a sua caminhada e o pequeno encanto de há minutos estilhaçou-se.

sábado, 24 de outubro de 2020

Triste tristeza

Suspendo a música e o sábado abre-se num vale de triste tristeza. Não tens vergonha de um truque tão fácil? Olho para o homúnculo que proferiu estas palavras e hesito entre ordenar que se vá deitar na caverna da minha consciência ou começar uma discussão com ele. Acabo por lhe responder e pergunto-lhe se ele queria que eu dissesse alegre tristeza. Depois, antes que abrisse a boca, fiz-lhe um gesto imperativo e ele desapareceu. Nem sempre as coisas são assim tão fáceis. Daqui a pouco irei a casa da minha mãe. Terei máscara, ela também. Impedirei que se aproxime de mim, pois não se sabe se sou um filho radioactivo e ela já não tem idade para estar perto da radioactividade. A seguir sairei e caminharei ao deus-dará, que é aquilo que tenho feito a vida toda, mesmo que eu o disfarce, mesmo que eu finja, nunca o meu caminho foi outro do que ir e vir à toa, sem destino nem propósito. Deixa-te de ficções. Voltaste, perguntei ao homúnculo. Voltei. Revolvem-me o estômago as tuas tiradas patéticas. Um pouco de pathos no discurso fica bem, retruco. Olhei para a cinza que envolve a rua e fiquei a meditar na fealdade do verbo retorquir. Os gramáticos, talvez por ociosidade, classificam os verbos em regulares e irregulares. Uma classificação miserável para esconder o moralismo que há neles. O que terão, os gramáticos, contra os modos de vida irregulares? Se fosse gramático, classificaria os verbos entre belos, horrendos e os que nem se dá por eles. Esta é a verdade crua. Muitos verbos passam por nós e nem damos por eles, falta-lhes a beleza que nos prende ou a fealdade que nos afasta, quando afasta. A campainha tocou. As minhas netas acabam de chegar. Correm para mim e o homúnculo assustado foi dormir.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Desactualizado e obsoleto

O Office informa-me que tem disponíveis actualizações, mas há que fechar algumas aplicações. É um mundo quase perfeito. Sê-lo-ia se também eu me pudesse ligar à rede, encerrar algumas aplicações, enquanto instalava actualizações que haveriam de fazer de mim o mais actual dos seres ao cimo deste pobre planeta. Digo-o com a máxima seriedade. Olho-me no espelho e, mesmo com máscara, não consigo esconder quanto as minhas aplicações estão desactualizadas. Isto quanto ao software. Quanto ao hardware a única palavra decente para me descrever é obsoleto. Sobre o meu estado de obsolescência há diversas teorias. Uma defende que me fui tornando obsoleto com o passar dos anos. É uma teoria sensata, mas benévola. Outra, menos benévola e menos sensata, estará mais próxima da verdade. Já nasci obsoleto. Nasci pronto para ser descontinuado. Há pessoas que nascem voltadas para o futuro. Eu nasci voltado para o passado. Não é que o passado seja um lugar mais aprazível que o futuro, mas é o horizonte que me coube. Esta conversa não tem pés nem cabeça, isso, todavia, é um efeito colateral de ser sexta-feira. Tenho de ir à rua. Não vou aglomerar-me, será que preciso de pôr máscara? Espirro. Uma, duas, três vezes. Uma dúvida abre-se no meu espírito. Estes espirros são sinais de desactualização do software ou da obsolescência do hardware? Cala-te, digo-me. Obedeço.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sacrifício ritual

Cheguei a casa exausto. Sentei-me em frente à televisão e liguei-a num canal desportivo. Homens trepam por uma montanha cavalgando bicicletas resplandecentes. Desenham-se-lhes rictos estranhos nos rostos. O cansaço, a luta contra o declive, a contabilidade de quem vai à frente ou atrás, tudo isso rouba-lhes a contemplação das paisagens magníficas que os envolvem e assistem indiferentes ao seu sofrimento, ao sacrifício ritual que os leva ao altar, onde, por um passe de mágica, se transformam de vítimas propiciatórias em sacerdotes escolhidos pelos deuses, para oficiar as cerimónias em seu louvor. Recomponho-me, respiro fundo, desligo a televisão e deixo os ciclistas entregues aos segredos da montanha, presos aos olhos dos espectadores que os aclamam como se fossem um exército vitorioso chegado do campo de batalha. Eles ainda não sabem que esse esforço desmedido é inútil. De pouco lhes servirá o nome num registo que o tempo fará esquecer. Essa inocência engrandece-os, pois toda a grandeza nasce de um não saber, de uma virgindade existencial que mergulha incauta nas águas turvas da vida. Hoje atravessei a cidade várias vezes. Nem dei por ela. Ela também não deu por mim, o que nos reconcilia. Reparo que as folhas das acácias começam a amarelecer. Têm um ritmo diferente das tílias e dos jacarandás. Cada coisa terá o seu ritmo, mas um maestro invisível subjuga-as à sua batuta para que uma música tensa e vibrante se erga da terra. O sol brilha anémico, alunos de um centro de línguas esperam agitados o começo da aula e eu esqueço-me dos pensamentos que me assaltam. As nuvens lembram grandes transatlânticos à deriva no oceano sombrio do céu.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Ausência de sentido

O tempo desbarbariza-se. Há nuvens, vai chovendo, mas o vento sopra com mansidão e, no céu, lagos de azul deixam o sol chegar à terra. No campo de jogos da escola vizinha, um grupo de adolescentes corre sem pressa, num ritual de aquecimento que talvez anteceda algum jogo. Medito nas coisas que, com o tempo, se me foram tornando incompreensíveis. É possível que a morte não seja uma determinação biológica, mas um evento semântico. Quando a realidade perder sentido, então a morte chega para resgatar a pessoa da turbulência em que vive trazida pela ausência de significação com que o mundo se revestiu. Tudo é mais confuso do que se pensa e talvez não haja coisa mais obscura do que as razões que movem a morte. Um raio de sol ilumina a frota de nuvens que atravessa o meu horizonte. Elas resplandecem, enquanto eu penso no que tenha para fazer ainda hoje. Uma árvore podada estende os dedos curtos para o céu, mas nenhum anjo poisa nela. Os adolescentes recolheram-se, os carros passam na avenida, as pessoas entram e saem dos cafés, e eu olho para as páginas de um livro em que se discute a vexata quaestio se uma máquina pode pensar. Eu sei que não posso, mas não sou uma máquina.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

História de uma desconhecida

Entretive a manhã com certos problemas cuja solução atormenta os homens há muito. Não se pense que estive dedicado à sua resolução. Nem pensar. Entreguei-me apenas a torná-los claros para os distribuir a quem os queira apanhar. Ninguém, por certo. Valeu-me o toque da campainha. Era o correio. Trazia-me um embrulho com livros que comprara num alfarrabista online. Dois deles pertencem àquela colecção de capa amarela da Editorial Minerva. São edições do início dos anos sessenta do século passado. Um não foi aberto. Comprado na Bertrand, da Rua Garrett, custou 22$00. Não faço ideia quem seja o autor, Orio Vergani. O outro está aberto, possui uma assinatura feminina e a data de 13 de Abril de 1972. Quem foi a autora, Florence Barclay, também desconheço. Comprei os livros apenas porque a capa me agradou e o seu preço não era propício a arrependimentos e contrições. Talvez os venha a ler ou talvez os arrume e me esqueça deles e, quando um dia os meus livros forem parar a um alfarrabista, quem os descobrir vai dizer que um nunca foi lido, pois continuará fechado, e o outro pertencia a uma mulher, o que sendo verdade já não será toda a verdade. Penso no que se terá passado naquele longínquo 13 de Abril. Talvez ela tenha dado um salto a uma livraria, talvez alguma amiga se tenha lembrado do seu aniversário, talvez um apaixonado tenha encontrado na dádiva pouco imaginativa de um livro a expressão do seu amor. Porventura foi apenas uma mãe – aliás de origem estrangeira – que tenha oferecido aquele livro para completar a educação sentimental da filha. Continua a chover e não tarda terei de ir falar sobre questões que não interessam a ninguém que me vai ouvir. Se lhes falasse da antiga dona do livro, mesmo desconhecendo-a, seria outro o seu interesse e entusiasmo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Sentimento num dia de chuva

Chove. A água interpõe entre os meus olhos e o hospital um véu de cinza. Tudo o que vejo é digno de um daqueles filmes sombrios que vinham do leste europeu. São imagens de exaustão, de um cansaço trazido pelos fungos às paredes dos edifícios. Procuro um nome para dar ao sentimento que toma conta de mim, mas não o encontro. São tão poucas as palavras que possuímos, mesmo aqueles que usam um vocabulário mais vasto, para uma realidade demasiado extensa, mesmo que essa realidade não seja mais do que a gama dos sentimentos humanos. Recebo uma mensagem da Protecção Civil. Avisa-me que vai haver chuva e vento forte nas próximas 48 horas. Risco de inundações. E eu debito um credo apropriado. Creio na Protecção Civil toda poderosa, informadora das ocorrências no céu e na terra, creio nos seus emails e sms. Creio…. De súbito, a memória irrompe neste devaneio patético e transporta-me para o tempo em que havia grandes inundações no Tejo. Nessa desgraça adivinhava-se uma grandeza sem voz, ânimos temperados pelo confronto com o desatino da natureza. Agora tudo se tornou um problema de gestão de caudais. Ao escrever isto não consigo deixar de sorrir. Também eu preciso de introduzir um programa de gestão da verborreia. Um dos homúnculos que habite na caverna da minha mente diz mesmo que nunca se viu quem tanto escrevesse sem ter nada para dizer. E isto é a pura verdade. Se eu tivesse alguma coisa para dizer, calava-me.

domingo, 18 de outubro de 2020

É falso tudo o que vou contar

Tudo o que vou contar é falso. Se o leitor acreditar numa palavra que seja, fica por sua conta e risco. Eu bem o avisei. Ontem fui visitar a minha mãe e, em vez de poluir a atmosfera com os gases do carro, pus os pés ao caminho. Saindo de casa dela, decidi que, também eu, tal como o velho genebrino Jean-Jacques me entregaria às minhas rêveries du promeneur solitaire. Pus-me a caminhar pela cidade, por sítios onde raramente ou nunca passo a pé. A certa altura a imaginação começa a importunar-me e a perguntar por que motivo, em dado momento da história do país, qualquer vilória, com poucos milhares de habitantes e uma existência tão cosmopolita como uma paróquia perdida sabe-se lá onde, quis tomar o nome de cidade. Não lhe soube responder e continuei a promenade. Quando passava diante de um cemitério, numa avenida que leva de uma rotunda a outra rotunda, que por sua vez levará a uma terceira, ocorreu-me um episódio da semana que tinha passado. Recebo uma chamada no telemóvel. Estou, respondo. É o senhor e declinam o meu primeiro nome. Ainda com bonomia digo o próprio. Aqui fala a Doutora… Ah, respondi, o seu pai conseguiu pôr-lhe o nome de Doutora. Deve ser muito nova. Quando fui ao registo civil para registar a minha filha também quis pôr-lhe o nome de Doutora, mas não me deixaram. Cheguei lá e disse quero registar a minha filha recém-nascida. E o nome, perguntou-me o funcionário já entradote. Quero que se chame Doutora e acrescentei dois apelidos da mãe e dois do pai, só para ela treinar a letra quando, na escola, escrevesse o nome. Não pode, retorquiu. Doutora não consta da lista de nomes autorizados. Não? Olhe, acrescentei, não estava preparado para isso. Que nome lhe hei-de pôr? Pode chamar-lhe Isabel, Madalena, Teresa, Sofia, Fátima ou Maria, que era o nome da Nocha Chenhora, foi assim que ele pronunciou. Eu respondi, se era o nome da Nocha Chenhora, fica Maria, e Maria ficou. Os tempos mudaram e agora há muitos pais a porem como nome aos filhos Doutor e Doutora. Lembrei-me de uma outra história, tão verídica como esta, de um rapaz também ele doutor e presidente da junta, mas talvez a conte num dia destes, se numa nova promenade me entregar a nova rêverie. Tudo o que narrei é falso, repito. Se acreditou numa só palavra, não culpe este pobre narrador, um mitómano contumaz, cuja papel é inventar coisas que nunca se passam.

sábado, 17 de outubro de 2020

Um sábado perfeito

No pequeno bosque da escola ao lado, as árvores petrificadas lembram estátuas esquecidas de uma civilização há muito abandonada. São símbolos a lembrar o passado, mas escondem a chave para os decifrar. O vento suspendeu a sua agitação e o sábado deixa-se invadir por uma luz tocada pela anemia. Olho o arvoredo e deixo-me devanear sobre a perfeição que existe em certos dias de Outono. Sou um ser outonal, não porque a idade assim o diz, mas porque sempre o fui. Por vezes, agrada-me a inocência de seres primaveris. Raramente a minha disposição é compatível com a exuberância dos estivais. Aos invernosos, olho-os com reverência, mas deixo-os pairar a uma distância conveniente. A vida é um exercício difícil de aproximações e distâncias, de procura de afinidades electivas, de gestão do espaço, no qual convém desenhar fronteiras que em caso algum devem ser atravessadas, mesmo se se tem passaporte. Dou uma vista de olhos pela imprensa, um velho hábito que não consigo erradicar, apesar de se ter tornado inútil. Deveria chamar-lhe um vício. O mundo continua a ser mundo e naquilo que leio poucas razões encontro para que não me torne num misantropo inflexível. Tivessem os homens a perfeição dos cedros, dos pinheiros, dos ciprestes que avisto e talvez a passagem da espécie pelo planeta não fosse um cortejo de indignidades. O vento voltou a soprar e levou com ele todos os meus pensamentos. Fico-lhe grato, pois melhor do que pensar é não pensar, ter a inocência de uma árvore presa ao seu silêncio.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Uma tarde animada

Mal entrei no Facebook deparei-me com um post de uma amiga cá de casa a agradecer sensibilizada a todos aqueles que lhe estão a endereçar felicitações pelo aniversário. Ao mesmo tempo, aproveitou a ocasião para informar que não fazia anos. Será mais tarde, para a próxima semana. Ainda bem que me eximo de distribuir parabéns pelo Facebook. Depois, saí e fui buscar a minha neta mais velha à estação da rodoviária. Foi a primeira viagem que fez sozinha, com mil recomendações parentais, pedido de guarda ao motorista, controlo da mãe e da avó através do telemóvel e os avós no terminal rodoviário à espera do expresso, ainda mal ele tinha saído de Lisboa, não fosse a viagem ser feita a 300 km por hora e a pobre adolescente ter de esperar num sítio inóspito, digno de uma distopia. Pobre, pois o que há-de ser alguém que, na adolescência, tem de ler coisas como estas: A definição de quociente entre dois quaisquer números racionais, sendo o divisor não nulo, coincide com a definição já dada para o quociente entre dois números racionais não negativos. Foi isto que li num livro que ela tem aberto ao lado do caderno em que escreve, enquanto a avó a massacra com exercícios, que metem mais e menos, quocientes, fracções e o que mais o peçonhento com pés de cabra há-de inventar para a perdição de uma rapariga numa tarde sem aulas. Comentei entre dentes que me parecia péssima literatura. Quando comecei a ler fiquei entusiasmado, o argumento tinha mistério. Qual será a definição de…? Fiquei suspenso, confesso. Chego ao fim e descubro que coincide com outra definição já dada. Afinal o prosador, sem imaginação, termina a narrativa com o mesmo desenlace do que a anterior. Para a compensar da tortura já marquei mesa para o restaurante de que ela mais gosta aqui na zona. Tremo só de pensar a hora em que terei de lhe ensinar a fazer inspectores de circunstâncias, ou a discutir se a liberdade da vontade é compatível com uma natureza completamente determinada, ou obrigá-la a escolher entre o imperativo categórico e o princípio de utilidade para avaliar a bondade das suas acções. Como se vê, está a ser uma tarde de sexta-feira muito animada.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Uma súbita nostalgia

Não é implausível que, uma vez ou outra, no céu da minha consciência perpasse uma nuvem de nostalgia. Não uma nostalgia vulgar por alguma coisa que se viveu ou amou, mas pela mais autêntica das nostalgias, aquela que nasce de um amor nunca tido ou de uma coisa jamais realizada. Foi isso o que me aconteceu há dias, continuou Rogélio, um dos meus velhos amigos, quando vi à venda um livro do italiano Giovanni Papini. Nunca o lera, mas recordei as capas soberbas com que as Edições Livros do Brasil o punham à disposição do público português. Ao vê-lo, trata-se de Gog, na montra de uma papelaria esquecida numa vila remota do interior, nem hesitei. Uma estranha ânsia tinha tomado conta de mim, pois temi que, mesmo sem ninguém dentro do pobre estabelecimento, além do proprietário, algum cliente secreto ou invisível se interpusesse entre mim e o objecto do meu desejo. Ao pegar-lhe senti uma comoção, das mais autênticas que me tenho imaginado, e folheei-o com avidez. Há dias que o arrasto para onde quer que vá. Aqui Rogélio mostrou-me o livro. Estava ferozmente anotado nas margens com uma letra ilegível que reconheci ser a dele. É verdade que esta história não interessa a ninguém, mas também, embora sem nostalgia e de coração seco, me decidi a procurar o livro no primeiro alfarrabista que o oferecesse a um preço decente. Chegou-me hoje, com evidências claras de as suas páginas nunca terem suportado o peso do olhar de um leitor. Hesito por onde começar. Pela visita de Gog a Einstein, ou a Lenine, ou a Freud? Talvez comece pela que fez a Knut Hamsun. Ou talvez nem o leia ou nem sequer o tenha comprado, apenas tenha sonhado tudo isto quando, sentando-me diante do computador para trabalhar na salvação da humanidade, adormeci, até que alguém me comunicou que o meu ressonar deveria incomodar os vizinhos do prédio mais distante da rua.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

De perder uma alma

Antes de termos chegado ao lugar onde estamos, na escola aqui ao lado havia um conjunto musical, a que eu dava o nome de grupo de baile. Nas tardes de quarta-feira, a banda dedicava-se a ensaiar êxitos dos anos sessenta e setenta do século passado, num exercício de nostalgia que sempre achei estranho num sítio povoado por gente nascida depois do virar o milénio. O confinamento emudeceu aqueles bravos rapazes devotos da Nossa Senhora da Boa Memória, um deles, o único que identifico, chegou a estudar comigo. Este ano ainda não os ouvi, presumo que não recuperaram nem a voz nem a vontade de viajar para o tempo em que, conjecturo, terão sido felizes. Isto, contudo, sou eu a especular. Não os oiço, como não vejo há uns dias os anjos que vivem no telhado do prédio do lado. Imagino que se foram confinar para algum lugar longe dos homens, antes que sejam contaminados e lancem o caos nas urgências celestes, onde os anjos tratam as suas afecções mais persistentes, embora, como se sabe, eles não necessitem de ir para os cuidados intensivos. A sua condição não lhes permite grandes males e, por isso, não precisam de grandes remédios. O padre Lodo ligou-me esta manhã. Não devia ter escrito ontem, sublinhou o não, que os meus pecados eram insignificantes, que só Deus tem o metro para medir a significância pecaminosa de cada um. Estaria eu, disse-me ele, prestes a cair na tentação da blasfémia. Estava preocupado com a minha alma. Disse-lhe que não se preocupasse com ela, caso eu tivesse uma. Aqui faltou-me um módico de caridade e não consegui evitar um traço agnóstico suspenso sobre a conversa. Fora um exercício de pura humildade, declarei em tom compungido. Depois, acrescentei, quando for a Lisboa, ligo-lhe. Vamos jantar com o grupo habitual. Desta vez, respondeu com o seu português italianizado, tem de ser aquele que tem uns pastéis de massa tenra de fazer perder uma alma. Esse mesmo, respondi.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Tudo tem consequências

Por que razão gostamos daquilo que gostamos? Enquanto me entrego a uma corveia composta por gráficos, tabelas, análises de resultados e uma panóplia de coisas que, espero, me sejam averbadas no registo celeste para desconto dos meus insignificantes pecados, tenho estado a ouvir o que se chama música minimalista. Philip Glass, Steve Reich, John Adams, Terry Riley. Há quem deteste, mas sobre mim o movimento repetitivo de pequenos trechos musicais durante longo tempo tem um efeito encantatório. Quase que vejo nascerem mitos de dentro dessa música, histórias que irão ser contadas de geração em geração, os feitos de deuses ou as travessuras maldosas de seres gerados pela imaginação. É por isso que gosto dessa música. Não o sabia antes de o ter inventado para o escrever aqui. Não são poucas as coisas que só as sabemos na hora em que as escrevemos. Um sol outonal brilha sobre o pequeno bosque da escola ao lado, enquanto as folhas das acácias vão e vêm batidas por um vento que, parece-me, corre de norte. Daqui a pouco irei falar sobre a verdade e o cepticismo. Com tantas coisas cintilantes debaixo do sol, logo me haveria de calhar essa floração das trevas. Estou há horas para entrar na minha conta de homebanking. A cada tentativa, sou informado que é um erro, a página não existe. Algum deus desavindo com os mortais, nascido da música repetitiva que tenho estado a ouvir, terá feito desaparecer o banco. O meu amigo Rogélio bem me avisa. Cuidado, tudo o que se faça tem consequências. Nunca imaginei que o meu mau gosto musical fosse a causa de desaparecimento de um banco, mas é o que constato. Só espero que não seja preciso sacrificar nenhuma Ifigénia, para que o deus o devolva.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Um Zé Ninguém em dia de S. Nunca

Quanto tempo faltará para estarmos outra vez todos confinados? Esta pergunta não me pertence. Escutei-a por acaso na rua, ao passar por duas pessoas que, sem máscara, trocavam palavras, preocupações, temores e, certamente, gotículas, como agora, de uma forma com ademanes de erudição, se chamam os populares perdigotos. Recebo uma mensagem a dizer urgente. Olho para ela e digo-me que bem pode esperar. Se fosse dar urgência a tudo o que se diz urgente, acabaria por morrer de exaustão. A maior parte das coisas urgentes bem se podem tratar no dia de S. Nunca à tarde. Este dia do calendário litúrgico tem um correspondente em personagem teatral. Quando perguntado quem é, o Romeiro diz Ninguém. Não se pense, todavia, que o senhor Ninguém se finou nas páginas do Frei Luís de Sousa. Os tradutores portugueses amam-no verdadeiramente, desde que se chame Zé. Escuta, Zé Ninguém, uma diatribe de Wilhelm Reich, e E Agora, Zé Ninguém?, um romance de Hans Fallada. Como o leitor compreenderá ser um Zé Ninguém é uma chatice. Ou se está a receber ordens ou a ser interrogado. Todavia a pergunta com que se abriu este texto merece uma resposta metafísica. Estamos confinados desde sempre. Essa é a condição humana, a história da caverna de Platão. O confinamento decretado é apenas um reconhecimento de direito daquilo que acontece de facto. O mais sensato será acabar o escrito por aqui. Ninguém vai perceber o que acabou de ser dito, nem sequer o narrador ou, em especial esse, o autor. Por mim, corrigiria o Garrett e quando o Romeiro, esmagado pela realidade do confinamento, escutasse a pergunta sacramental, diria Zé Ninguém, sou um Zé Ninguém. E isto estaria muito mais de acordo com a sua condição. Pena o Garrett ter-se esquecido de me telefonar.

domingo, 11 de outubro de 2020

Paramedicamento

Os domingos são dias propícios a uma sentimentalidade espúria, a qual deveria ser ferozmente erradicada. Umas vezes, é a melancolia do domingo à tarde, quando a sombra negra da segunda-feira, com a sua penosa corveia, se ergue no horizonte. Outras, é uma nostalgia pelo que passou, e os domingos são construídos na memória como dias em que se passavam coisas. Na verdade, pouco se passava ou, mesmo que se passasse muito, tudo isso era tão irrisório que dá vontade de sorrir. Há pouco, fiquei a ver o triunfo de um ciclista português numa etapa da Volta a Itália, do Giro, como dizem entendidos e aficionados. Nada sei de ciclismo, mas gosto. Isto deve-se a uma influência paterna que me levava a ver a passagem dos ciclistas da Volta a Portugal. Era um espectáculo veloz. O tempo que eles levavam a passar era assombrosamente pequeno comparado com aquele que se esvaía na espera, mas tratava-se sempre de um acontecimento colorido, e eu gostava imenso. Um dia o meu pai levou-me a ver ciclismo em pista, em Alpiarça. Estávamos em Santarém e fomos lá. O que se passou, quem ganhou e quem perdeu, já o esqueci há muito. Saí de casa ainda não tinha chegado o meio-dia. Estava calor. Fui a uma parafarmácia comprar um paramedicamento. Um paramedicamento é uma daquelas coisas que não servem para nada, mas que convém ter em casa. Nunca se sabe quando são precisos. O facto de as ter tranquiliza o espírito. Quando a menina me perguntou o que desejava, estive quase a responder queria um placebo para a urticária. Não respondi, pois tive medo que ela me dissesse que não sabia o que era um placebo e que eu tivesse de informar que também não fazia a mínima ideia do que fosse a urticária. Das velhas colunas da minha aparelhagem sai o som de Lontano, uma peça do compositor György Ligeti. Reconcilia-me com o domingo e com a menina que não saberia o que era um placebo. Chega-me um vídeo do meu neto a andar de trotineta. Ainda não tem idade, penso, mas quem não tem idade para isso sou eu.

sábado, 10 de outubro de 2020

Um ser imponderável

Hoje, lamento, mas nada tenho para contar. Levantei-me nem cedo nem tarde, a balança dos sábados esteve amena e devolveu-me um peso dentro do que houvera sido acordado. Minto. Como pode um narrador ter peso? Sou um ser imponderável, apenas um conjunto de caracteres no monitor. Seres virtuais não têm peso nem sofrem dos efeitos da gravidade. São como os anjos destituídos de corpo. O autor, esse tem peso. Talvez mais do que devia. Também tem corpo, mas sobre isso não faço comentários. Sou um narrador prudente. Hoje está de mau humor. Ouvi-o resmonear contra as calças. Por que raio continuava a comprar calças com botões em vez de fechos. Não faço ideia o que tem contra os botões, mas isto mostra o nível intelectual das suas preocupações. Tive de ir ao supermercado. Encontrei a Lu. Estava abatida. Apesar da máscara percebi que não era a velha Antígona pronta para desafiar a ordem de um qualquer Creonte. Nos seus olhos, havia uma sombra e não fogo. Estou preocupada com a minha irmã. A irmã é a Marília, a que era do Dirceu. Não anda nada bem, agora que parecia feliz. Fiz silêncio e ela especulou sobre o destino. Eu ouvi até que nos despedimos. Fui ainda comprar duas garrafas de vinho e dirigi-me para a caixa para pagar. A menina não me pareceu nenhuma Antígona, nem Ismene e muito menos uma Electra. Era apenas a menina da caixa e nisso estava toda a sua grandeza. Quando voltei o autor continuava a barafustar pelos cantos da casa contra a ordem do mundo e a desordem que ia na sua cabeça, digo eu.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Fora eu uma árvore

Cheguei cansado ao entardecer desta sexta-feira, mas também a semana está tão pouco vigorosa quanto eu. A correria a que ela se entrega mal nasce só pode ter como consequência chegar ao fim com a língua de fora. Tenho pena das pobres semanas ajoujadas a um ritmo que não escolheram. Alguém me disse que não deveria antropomorfizar os seres não humanos. Respondi apenas que seria redundante a antropomorfizar os humanos, além de não me parecer boa ideia tornar os humanos ainda mais humanos. Basta ver o rol interminável de maldades e patifarias a que eles se entregam sem esse reforço de humanidade. Apesar das ameaças que pesam no horizonte, os tempos parecem ter voltado à normalidade. Da praceta chegam gritos verrumantes que ferem o estado de estupor em que me encontro. A criançada anda por ali, corre, grita, berra, enquanto as acácias, sem um grito, se deixam embalar pelo vento, balançando os ramos para cima e para baixo. Com o passar dos anos aumenta a minha admiração pela sábia indiferença com que as árvores olham para as coisas que as envolvem. Agora, umas funções do meu teclado decidiram declarar greve. Disse-lhes que era uma greve selvagem. Não se comoveram. Fora eu uma árvore e não teria problemas com teclados.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Contributos para a história do Rogélio

Perguntaram-me quem era o Rogélio que por aqui aparece. É sempre uma pergunta difícil de responder. Se me perguntarem quem sou eu, ver-me-ei em apuros para dar uma resposta com um módico de coerência, quanto mais quando se trata de uma terceira pessoa, e que pessoa. Conheci-o nos primeiros tempos da faculdade. Numa aula, fumava ele uma cigarrilha Café Creme, uma das suas imagens de marca, fez uma pergunta ao professor. Este perguntou-lhe o nome, ele debitou-o com tranquilidade, Rogélio. O professor então continuou dizendo ora veja Rogério… Aí o Rogélio interrompeu-o. Peço desculpa, professor, mas chamo-me Rogélio e não Rogério. Não me obrigue a contar a história do meu nome. O professor não obrigou, mas ele causou furor na turma com a lata da sua intervenção. Ficámos amigos. Ele é um autêntico coleccionador de ditos, máximas, apotegmas, aforismos e outras sentenças para uso diário e em situações extraordinárias. Os mais interessantes são da sua autoria. Acaba de ser anunciado a Nobel da literatura. Nunca li nada da senhora, mas a minha ignorância é infinita. O facto de muitos dos meus escritores favoritos, como Borges ou Kafka, não terem merecido a distinção deixa-me sempre de pé atrás. O remédio será pô-lo à frente, dir-me-ia o Rogélio, enquanto expelia uma baforada da sua inevitável cigarrilha. Não sem razão

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Os limites do magnésio

Outubro perfaz hoje uma semana. Não sei o que possa fazer com esta constatação. Há pessoas que de qualquer coisa retiram utilidade, prazer, fortuna. A minha natureza não se acorda com préstimos e serventias e até da mais útil das coisas fabrico uma inutilidade. Sou um inutilitarista, para além de um improficiente. Há quem venda Platão para infelizes e Aristóteles para competitivos, eu prefiro ir comer uma fartura ali ao lado. Também tomo magnésio para as cãibras. Muito gostava eu de ser um realista ingénuo, de olhar para aquelas acácias, ainda esplendorosas, e crer que aquilo que vejo é mesmo acácias, mas temo que aquelas imagens a que chamo realidade não sejam mais do que um feixe de impressões na minha mente, ou, pior, que eu não passe de um cérebro numa cuba, que está a ser estimulado por um supercomputador para imaginar que está a ver acácias. Estes pensamentos demonstram, todavia, uma coisa. Se o magnésio combate as cãibras, não me ajuda no pensamento. Fica turvo e eu ainda não comprei um purificador de pensamentos. A realidade continua a ser minha inimiga. Os dias estão difíceis e Outubro ainda só tem uma semana.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Questões de mérito

Um pouco antes do crepúsculo irei caminhar. Não sei se será um exercício saudável, pois os trajectos disponíveis são partilhados com os escapes fumarentos de carros que precisam, também eles, de fazer exercício e libertar-se das toxinas que lhes enxameiam os motores. Mais do que libertar a toxidade que há no meu corpo, preciso de libertar a que me invade o espírito. Cada visita à realidade é um exercício penoso, mais penoso do que dar de comer a quem não tem fome. Encho-me de toxinas e o pensamento enviesa-se para a malevolência. Penso coisas que até eu me julgaria capaz de pensar. Cada um tem o que merece, diz nestas ocasiões o meu amigo Rogélio. Eu acabo por anuir. Um dia talvez explique como o conheci e, caso me recorde, poderei mesmo explicar o motivo de tão inusitado nome. Um acaso, posso adiantar. Fui levantar uma encomenda nada literária e acabei a comprar a minha quarta versão em português da Eneida de Vergílio, a segunda em poucos meses. Depois de uma traduzida por um professor de clássicas de Coimbra, agora uma traduzida por professores de clássicas Lisboa. Talvez seja isto a concorrência ou uma luta pela sobrevivência. Olho para o início do poema e deixo-me tocar não pelas dores do troiano, mas por expressões como praia de Lavínio ou violência dos deuses supernos. Estes deuses não cultivariam em excesso o amor e a misericórdia. Cobravam as ofensas, e como eles se ofendiam por coisa pouca, a um preço que dificilmente seria de saldo. Talvez também para estes heróis o destino não fosse mais do que a retribuição do seu mérito.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Dores de crescimento

Acordei com algumas dores nas pernas. Nada que me causasse mais do que um pequeno incómodo, se deitado. Era uma injunção a que me levantasse. Cumpri a ordem. Tenho estas dores desde que me lembro de existir. Vão e vêm, umas vezes mais violentes, outras menos. Durante a infância e a adolescência, os médicos diziam que eram dores de crescimento. Seriam. Quando chegou a altura de parar de crescer, elas continuaram. Por volta dos cinquenta pedi ao médico que me seguia que pesquisasse a origem do mal. Fiz exames a isto e àquilo. Nada. O mal continuaria a ser um mistério. Ele, porém, não se atreveu a dizer que eram dores de crescimento. Enganou-se. Redondamente. Quando se passou dos velhos bilhetes de identidade, em que a menina do registo civil nos batia com a craveira na cabeça para determinar a altura, para os cartões de cidadão, onde toda a medida é electrónica, cresci três centímetros. Prova feita em dois registos diferentes. Grande é o desalento quando penso em tudo isto em que estou a pensar. Hoje, um dia em que deveria ter pensamentos elevados e patrióticos, penso em dores de crescimento. Seja como for, posso adiantar que sempre fui republicano, embora ache isso uma miserável cobardia. Deveria ser monárquico. Republicano, apenas se vivesse numa monarquia. Não tenho, porém, coração de talassa, nem a minha origem plebeia o aconselharia. Contento-me com o ir crescendo sempre que se muda o método de determinar a altura do cidadão. Com a evolução contínua da tecnologia, não admira que as dores de crescimento não me passem.

domingo, 4 de outubro de 2020

Pura banalidade

Quando há pouco peguei num certo livro que tinha posto de lado tempos atrás verifiquei que havia nele vários marcadores. Não daqueles tradicionais, mas cartões e etiquetas que vou juntando para lhes fazer a vez. O cartão de uma churrasqueira take away, outro de um desentupidor de canos com o calendário de 2018, um terceiro de um restaurante nepalês em Lisboa, ainda outro que anuncia Charming rooms em Bilbau e, por fim, a etiqueta cartonada de uma marca de pólos, que ainda ostenta o tamanho, o preço e a loja onde o comprei. Por coisas como estas pode-se reconstruir uma vida e, como se vê, a minha é das mais banais que possam existir. Aliás, não se esperaria outra coisa. Há nos homens uma propensão para a distinção, mesmo o mais limitado se pretende distinto, diferenciado, pura singularidade. Ergue-se em heroísmos e a sua vida é repleta de feitos e façanhas. A imaginação não tem limites. Eu, pouco dotado de imaginação, não tenho proezas para apresentar no currículo, por isso colecciono numa caixa preta, ao lado de pilhas para comandos, tubos de cola seca, carregadores de telemóvel para mandar reciclar, colecciono, dizia, cartões com que marco os livros que outros escreveram. Hoje é domingo e as horas vão com tristeza pela avenida fora, cobertas de nuvens, atiçadas pelo vento, redemoinhando à volta das tílias, das acácias, dos jacarandás e de outras árvores cujo nome não me ocorre. Também elas, horas e árvores, fazem parte da banalidade que me envolve, e eu amo-as por isso.

sábado, 3 de outubro de 2020

Vestir o ânimo

Estou há longos minutos a observar as árvores dos espaços envolventes. Quase imóveis, parecem estátuas que um divino escultor terá esculpido como símbolo de tudo o que há de misterioso no mundo. Há no arvoredo uma dignidade que escapa ao mundo animal. Neste, a inquietação da morte e a necessidade cruel tornam a vida uma manta onde se cosem truques e armadilhas para matar e sobreviver, um circo romano onde todos são à vez feras e cristãos. Contrariamente à volubilidade da vida animal, a existência das árvores é marcada pela constância, por uma fidelidade ao lugar, por uma elevação contínua, pelo silêncio com que deixam passar por elas os anos e as peripécias, sem que se lhes oiço um grito, um queixume, uma imprecação. Morrem de pé, como é dito na peça do asturiano Alejandro Casona, ou são traiçoeiramente abatidas pelos homens. Este prolongado fim de semana começa neste registo de melancolia, não porque esteja melancólico, mas porque é a tonalidade de espírito que melhor se adequa ao dia. Há muitos anos, numa conversa que nunca esqueci, alguém disse que deveríamos revestir o ânimo com o mesmo cuidado com que vestimos o corpo. O essencial é ter em atenção o tempo e, desse modo, há dias que devemos estar alegres, outros tristes. Em alguns devemos vestir a farda da ira, outras vezes o mais indicado é uma capa de nostalgia. Com o passar dos anos, fui descobrindo a sabedoria do conselho. São muito desavisadas as pessoas que se preocupam com o que lhes veste o corpo, mas andam pelas ruas com o ânimo nu, como se fossem indigentes e não houvesse lá por casa uma camisa de angústia ou um casaco de júbilo. Daqui a pouco ponho a gravata da melancolia e vou às compras. Logo terei cá o meu neto, e isso é o mais importante.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Uma tarde entre parêntesis

Mais e menos, abrir e fechar parêntesis, unidades e fracções. A mais de cem quilómetros de distância a minha neta mais velha está ser submetida a uma provação. Em videoconferência a avó soma avisos e injunções, dita-lhe exercícios, subtrai-lhe umas horas de brincadeira. Ela vai-se submetendo ao mundo do cálculo, à estratégia de aplicação de algoritmos, enquanto a cabeça devaneia lá por aqueles sítios onde, às sextas-feiras à tarde, se reúnem os espíritos adolescentes. Não sei se todo este admirável mundo novo será coisa boa. Está um maravilhoso dia de Outono. Ora chove, ora faz sol. O vento sopra agreste, enrola-se nos ramos das árvores, nos cabelos e saias das mulheres, grasna e cochicha por tudo o que é canto. As folhas secas desenham espirais no ar, enquanto as fracções se multiplicam e os números negativos tentam anular os positivos. Não, não é King que estão a jogar. Quando chegarão as raízes quadradas, pergunto-me. Agora fez-se silêncio, talvez todos os parêntesis abertos tenham sido fechados e as fracções somadas sejam unidades puras, inteiras, imaculadas, virginais. Talvez seja apenas o descanso antes da segunda vaga. O sol reverbera no telhado do pavilhão da escola ao lado, o ramalhar das árvores prende-me a atenção, o dia escorrega para a noite e a minha vida desliza para o nada, que é o sítio aonde tudo vai dar, mais soma menos subtracção, mais número inteiro menos fracção.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Um dia octúbrico

Hoje está um dia verdadeiramente octúbrico, pensei enquanto uma chuva miúda descia sobre mim. Pena é que ainda não tenham inventado a palavra octúbrico, mas não vejo outra que possa designar a presença de Outubro neste primeiro dia do mês. Talvez alguém a tenha pronunciado ou mesmo escrito e eu não saiba. Muito vasta é a minha ignorância. Digo isto apenas para parecer humilde e não atrair sobre mim os maus espíritos que andam por aí a esvoaçar. Estive a oficiar durante duas horas ao ar livre. A máscara interpõe-se entre a minha voz e o mundo. Fico com a garganta arrasada. Chegado a casa, fui a uma das janelas para ver o que se passava na rua. Não se passava nada a não ser gente a passar, uns a pé e outros de carro. Olhei para os telhados dos prédios envolventes. Fiquei preocupado. Há uns dias que não vejo por lá os anjos que costumam poisar naqueles sítios. Talvez tenham ido em missão a algum sítio em dificuldade ou foram hospitalizados com o novo vírus. Nunca se sabe. Também é possível que se tenham disfarçado de pombos e andem por aí a esvoaçar, arrulhando por aqui e por ali. À saída do lugar de frutas e legumes onde entrei para comprar feijão-verde encontrei a Lu, a irmã da Marília do Dirceu. Estava risonha. Que a chuva a tinha impedido de acabar a caminhada. Disse isto com aquele seu ar de heroína grega, de Antígona que escapou às garras de Creonte, o que lhe diminui a faceta trágica, mas permitiu-lhe deixar um rasto de fogo no mundo. Tenho de me despachar e deixar de escrever idiotices. Esperam-me. Ainda tenho duas homilias para proferir. O pior é garganta.