sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Meditações linguísticas

O Word tornou-se um processador de texto com ambições de grande educador dos desqualificados que utilizam a língua nacional. Não se contenta já com sublinhar a vermelho – ou será a encarnado? – os erros ortográficos, nem o descansa o tracejar a azul as frases onde desconfia uma infidelidade gramatical. Está, agora, na fase professoral de chamar à atenção dos indígenas para o uso de chavões e plebeísmos. Parece incompatibilizado com a linguagem ao gosto popular. Perante plebeísmos e frases feitas, põe-lhes por baixo uma espécie de pesponto – seja lá isso o que for – também a azul, como quem usa um sarcasmo perante uma inabilidade social. Este amor à correcção, todavia, é um inimigo encarniçado da língua, pois mata a possibilidade de evolução, que se faz, sob a designação da lei do menor esforço, por sucessivas infidelidades e traições. Não vou aqui discutir se o uso de infidelidades e traições é uma redundância, embora o Word também se agaste com ela, a pobre redundância. Aliás, este é um lugar onde a discussão foi banida, pois as opiniões expressas são tidas como dogmas inabaláveis, mesmo que no dia seguinte ou até na frase seguinte se diga o contrário ou, para ser logicamente mais rigoroso, se formule uma proposição contraditória. Note-se, contudo, que a palavra dogma é muito mais complexa do que se pensa. Aparentemente, um dogma é uma opinião imposta pela autoridade e aceite sem exame crítico, mas isso é uma aparência. Na origem da palavra dogma está o vocábulo grego dógma, que significa decisão, decreto. Como qualquer um sabe, toda a decisão pode ser anulada e todo o decreto, revogado. Na origem de qualquer dogma está a possibilidade da sua anulação e revogação. Se ele se mantém é porque resistiu às tentativas críticas de o pôr de lado, às tentativas de falsificação, para usar um chavão popperiano. O mais sensato é parar o escrito por aqui, antes que seja pronunciado por heresia lexical.

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