sábado, 19 de agosto de 2023

Sem impunidade

Não é raro, pelo contrário, durante a noite, naqueles momentos que antecedem a queda no sono, ser invadido por ideias extraordinárias, assim me parecem naqueles breves instantes, sobre coisas a escrever. São projectos que estão longe da insensatez. Depois, adormeço e, ao acordar, não consigo encontrar o menor indício desses pensamentos. Julgo que a noite passada, depois de ter fechado o livro de Alexander Kluge e apagado a luz, essas ideias claras e distintas assaltaram-me, mais uma vez, motivadas, imagino, pelo que acabara de ler. Hoje não me lembrava de nada, como é hábito. Da Cónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge, estão publicados, em Portugal, dois volumes. Cada um deles ronda as quinhentas páginas, mas estas são de pequenas dimensões. Parecem livros de bolso, embora com um tamanho de letra decente. Por curiosidade, fui procurar a edição francesa e tive um choque. Os dois volumes publicados em França ultrapassam, cada um, as mil páginas. Procurei, depois, a edição alemã. Também a soma das páginas dos dois volumes ultrapassa as duas mil. Parece que, enquanto português, só tenho direito a uma selecção dos textos originais. Sempre posso comprar a edição francesa, é verdade. No início do segundo volume da edição portuguesa, num texto com cerca de uma página, Kluge, a certa altura, escreve: Um dos castigos de Deus é o do afundamento no terreno da realidade. Há os que perdem todas as ilusões (perda de realidade). E há os que perdem o tempo em que vivem (perda da História). Ambos os casos crescem a olhos vistos. Ora, há muito que eu descobri que tanto a realidade como a História são coisas pouco frequentáveis, ambas umas megeras do pior. Por isso, nada tenho contra cair para fora da realidade e da História. O problema, porém, é que ambas, após cada queda, voltam a entrar pela porta dentro, ainda uma pessoa está na cama envolvida por ligaduras que escondem as terríveis escoriações, pois cair para fora da realidade ou da História é sempre um grande trambolhão. Mesmo os padres do deserto, uma forma antiga de cair fora da realidade e da História, apesar da vida pura de oração e de combate feroz ao demónio, tinham marcas assinaláveis das quedas sofridas. Nunca se cai impunemente.

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