Não é raro, pelo contrário,
durante a noite, naqueles momentos que antecedem a queda no sono, ser invadido
por ideias extraordinárias, assim me parecem naqueles breves instantes, sobre coisas
a escrever. São projectos que estão longe da insensatez. Depois, adormeço e, ao
acordar, não consigo encontrar o menor indício desses pensamentos. Julgo que a
noite passada, depois de ter fechado o livro de Alexander Kluge e apagado a
luz, essas ideias claras e distintas assaltaram-me, mais uma vez, motivadas,
imagino, pelo que acabara de ler. Hoje não me lembrava de nada, como é hábito.
Da Cónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge, estão publicados, em
Portugal, dois volumes. Cada um deles ronda as quinhentas páginas, mas estas
são de pequenas dimensões. Parecem livros de bolso, embora com um tamanho de
letra decente. Por curiosidade, fui procurar a edição francesa e tive um
choque. Os dois volumes publicados em França ultrapassam, cada um, as mil
páginas. Procurei, depois, a edição alemã. Também a soma das páginas dos dois
volumes ultrapassa as duas mil. Parece que, enquanto português, só tenho
direito a uma selecção dos textos originais. Sempre posso comprar a edição
francesa, é verdade. No início do segundo volume da edição portuguesa, num
texto com cerca de uma página, Kluge, a certa altura, escreve: Um dos
castigos de Deus é o do afundamento no terreno da realidade. Há os que perdem
todas as ilusões (perda de realidade). E há os que perdem o tempo em que vivem
(perda da História). Ambos os casos crescem a olhos vistos. Ora, há muito
que eu descobri que tanto a realidade como a História são coisas pouco
frequentáveis, ambas umas megeras do pior. Por isso, nada tenho contra cair
para fora da realidade e da História. O problema, porém, é que ambas, após cada
queda, voltam a entrar pela porta dentro, ainda uma pessoa está na cama envolvida
por ligaduras que escondem as terríveis escoriações, pois cair para fora da
realidade ou da História é sempre um grande trambolhão. Mesmo os padres do
deserto, uma forma antiga de cair fora da realidade e da História, apesar da
vida pura de oração e de combate feroz ao demónio, tinham marcas assinaláveis
das quedas sofridas. Nunca se cai impunemente.
Sem comentários:
Enviar um comentário