sexta-feira, 12 de julho de 2019

Esperança

Fui à caixa do correio e não havia nada. Espera-se sempre alguma coisa, mas a esperança, o mais das vezes, é infundada. Um dia não haverá caixas de correio, nem correio, nem gente que faça esse trabalho de trazer aquilo que a esperança espera. O futuro é uma incógnita, digo-me para me consolar. Olho para a rua e o céu está cinzento e sinto a opressão da atmosfera. Também aqui o corpo reclama, com esperança, uma tempestade. Não daquelas que chega e, num ápice, destrói meio mundo. Queremos sempre coisas à medida, nunca nos contentamos com aquilo que há. Uma tempestade ligeira, com chuva, relâmpagos e trovões, e a opressão desapareceria. Seria libertadora. Tenho de me despachar. Alguém está à minha espera daqui a pouco. Eu não sou mensageiro de boas notícias, constato. Que mania de dividir as coisas em boas e más. A vida passa indiferente às minhas pobres avaliações. É apenas um pulsar cego, sem causas nem desolações. Não espera nada e ri-se de quem, perante o seu império, fala de esperança.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Questões de igualdade

Os irmãos têm uma propensão inextinguível para a igualdade ou, talvez seja mais acertado, um sentido fino e doloroso para as desigualdades que sofrem. Ontem, depois de se combinar com a neta mais velha o almoço de hoje, a irmã, excluída por razões espácio-temporais, reivindicou de imediato o direito de ir almoçar sozinha com os avós. Exclusão com exclusão se paga, pensei. Ficou prometido. Não há nada que requeira mais cuidado e sensibilidade que a gestão das diferenças entre irmãos. Hoje, quando saí para o almoço combinado, o sol caía sobre a pele como uma lâmina afiada, abrindo sulcos por onde o calor penetrava no corpo, para explodir por dentro, liquefazendo o sangue e inundando a pele com um suor insuportável. Não nasci para este tipo de temperaturas, pensava, enquanto a neta exultava com as actividades da manhã, bendizia o facto de estar a jogar à neta única e, para meu pesar, cantava loas ao Verão. Agora que ela voltou para onde estava, tenho de lhe ir comprar um livro, mas já não me lembro do título. As pessoas arrastam-se, procuram as sombras e, apesar da inclinação estival que trazem no coração, talvez tenham uma leve nostalgia dos dias em que o inferno não fazia propaganda na Terra.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Cirurgia ocular

Passei a manhã como acompanhante – honni soit qui mal y pense! – de paciente que, na ânsia, sabe-se lá se fundada, de ver melhor o mundo, decidiu submeter-se a uma cirurgia aos olhos, a um, para ser mais exacto. A exactidão, nestas coisas da medicina, é essencial, como logo nos apercebemos mal entramos em contacto com um desses seres mitológicos a que, por reverência, se dá o nome de médico. E enquanto aguardava o desenrolar das operações, para poder executar a função a que me propusera, fui adentrando-me na vida dos outros. Coscuvilhar, para ser mais fiel à atitude que foi, durante a manhã, a minha. Preocupei-me, não sem condescendência, com as hesitações e as dores das primas Garman, Rachel e Madeleine. Cansado de desventuras no feminino, passei para o destino do garboso e recém promovido capitão Giovanni Drogo. Quando o rescaldo da intervenção cirúrgica terminou, estava eu a pensar que este interesse pela vida de terceiros, ainda por cima gente de papel, não prognostica nada de bom sobre a minha índole. Uma pessoa decente, por parcos que fossem os seus talentos, empregá-los-ia na criação de riqueza, ou na libertação da humanidade ou, mesmo, na salvação do mundo. Todas estas nobres actividades, porém, não estão no meu horizonte. Olho-as e não consigo ver nada. Talvez também eu precise de uma cirurgia ocular.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Ainda é cedo

Combinando esplendor e volúpia, as árvores da avenida lançam uma sombra lenta e furtiva sobre a brancura calcária dos passeios. Vejo-as de cima, a exuberância da copa batida pela aragem, o verde tisnado pelo sol de Julho, e respiro fundo. A tarde caminha como uma rameira fugitiva, mas muito ainda terá de penar até se entregar, não sem prazer, nos braços da noite. São assim os dias por aqui. O peso do céu esmaga a terra e as pessoas vão rua fora, oficiando paciências, esperando que a vida resolva o que nunca resolverá. Perambulo pela casa como se fosse personagem de um romance de Xavier de Maistre e descubro sempre um motivo de interesse. Um livro de que me esquecera fora do lugar, um CD que não oiço há muito, a fotografia de algum neto, outra em que estou ao colo da minha avó materna. Entre avó e neto vão cinco gerações, penso enquanto me aproximo de outra janela. Na praceta, lá em baixo, não se vê vivalma. Ao longe, os carros estacionados no Hospital reverberam, enquanto as paredes do edifício escurecem sob o peso das colónias de fungos. Encaminho-me suavemente para o sítio onde, benevolente, a loucura me aguarda. Ainda é cedo, digo ao olhar para o relógio.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Estados de alma

O mais assisado é não ter estados de alma. Este tipo de pensamento acomete-me muitas vezes, principalmente quando sou confrontado com as coisas inúteis que o destino me destinou. Ora, se o destino as destinou, quem és tu, pobre mortal, para te insurgires? Nada de insurgentes, diz-me a consciência. Então, antes de me irar, recorro à ataraxia, essa tranquilidade de ânimo ou ausência de inquietude. Faço-o, não porque o ânimo me seja tranquilo por natureza ou porque, em verdade, não seja inquieto. Faço-o porque gosto da sonoridade do vocábulo. Os antigos cultores da ataraxia tinham um objectivo moral. Eu tenho uma razão estética, o som da palavra. Por outro lado, com esta idade, irritar-me é uma coisa desagradável. Por isso, levanto-me e, à janela, fico a olhar demoradamente o horizonte. Este não me defrauda. Mantêm-se inalterado e não me pede nada que não seja olhar para ele. Ali em baixo, as pessoas passam e também elas desejam não ter estados de alma, mas não sabem o que é a ataraxia e a alma, tomada de inquietações, logo lhes salta dentro do corpo.

domingo, 7 de julho de 2019

Novas pedagogias

Entardeço nesta tarde de domingo. O corrector ortográfico do Word solidariza-se comigo e sublinha a vermelho a palavra entardeço. Um erro. Ainda bem que já não estou na escola primária, onde a partir de três erros o professor se entretinha a aplicar uma reguada por cada nova ofensa à ortografia, uma senhora então muito digna de respeito. Era um exercício didáctico da melhor qualidade, que o digam aqueles – eram sempre os mesmos – que cada vez que calhava haver um ditado saíam de lá com as mãos a arder. A eficiência era nula, mas o prazer – prazer pedagógico, note-se – do professor devia ser imenso. O corrector do Word pertence já a uma nova mentalidade educativa, talvez influenciada pela OCDE. Sublinha a ortografia desviada a vermelho e a sintaxe inovadora a verde. Dá conselhos em vez de reguadas. Na verdade, é um corrector patriótico e republicano, preocupado em que não esqueçamos a bandeira nacional, admoestando-nos com bonomia e espírito liberal. Seja como for, tenho de lhe agradecer. Não me reconhece a possibilidade de me tornar tardio. Eu que sempre fui serôdio em tudo, que tenho por sina chegar tarde aonde os outros só chegam cedo, não posso entardecer. No entanto, o mesmo corrector permite-me escrever amanheço sem sublinhar o vocábulo. Talvez haja aqui uma insinuação, cujo significado prefiro ignorar.

sábado, 6 de julho de 2019

Uma tarde de Julho

O telemóvel informa-me que aqui mesmo estão 28º e o céu parcialmente nublado. É verdade, pelo menos as nuvens cobrem o sol. Num sábado de Julho as coisas não estão más. O normal seria estarem uns 38º ou 40º, as pessoas afogueadas, a arrastarem-se pelas sombras e a maldizer S. Pedro, o verdadeiro mentor dos estados do tempo. O santo tem sido condescendente. Talvez ele próprio ande um bocado desregulado, tenha perdido a tramontana e esquecido as noções básica de espaço e tempo. Mesmo que seja grande a sua santidade, também os santos se gastam. O que eu queria dizer é que estou grato pela amenidade climática. Esta temperatura só me dá sono, mas não me desregula o humor e não me faz pensar em coisas que uma pessoa de bem nunca deve pensar. Enumero as tarefas inúteis que ainda tenho para fazer. São algumas, constato. Hei-de fazê-las, pois o bem da humanidade depende delas. Oiço os latidos de um cão. Oiço palavras cujo sentido me escapa. Oiço a arenga de um pássaro que não se cala. A tarde desliza devagar e, não tarda, a cabeça vai pender, os olhos fecharem-se e hei-de ressonar em harmonia com o que oiço. Longínquas estão as tarde de Verão em que uma voz imperiosa me mandava dormir. Eu fechava os olhos, contava os minutos, cheio de inocência, e nunca dormia. Abominava a tortura. Agora é o que se vê.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Das semelhanças

Passei por uma pessoa conhecida, uma mulher que se aproximará da casa dos cinquenta, que não via há muito. Surpreendeu-me que se tivesse tornado tão parecida com a mãe, como se o tempo se aplicasse a seleccionar aqueles traços que, durante décadas dissimulados, estabelecem uma relação com o passado e assim tentasse eliminar os que diferenciam e são arautos de um salto na estirpe. A natureza, ponderei enquanto trocava algumas palavras de circunstância, é mais cuidadosa do que se pensa e tem horror ao desconhecido. Poderia ter evitado este antropomorfismo, mas não me apetece. Hoje acordei e ao ver a paisagem coberta por uma bela neblina comecei a atribuir sentimentos e objectivos humanos à pobre natureza, pura e inocente de todos esses pecados. Uma pessoa prudente evitaria atribuições dessas, passou-me pela cabeça, enquanto me despedia. Logo segui o meu caminho e esqueci as semelhanças, a natureza e a própria prudência. Na paisagem árida da minha mente, talvez motivadas pelo vazio, passam muitas ideias que melhor fora nunca tivessem vindo à existência. O pensamento, porém, é um cavalo selvagem e a mim faltam-me os dotes e a paciência para o domesticar.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Inconstância

Chego à janela e olho lentamente o céu. Os dias continuam nublados e isso é uma bênção. As pessoas protestam porque o Verão parece ter sido adiado. Protestariam se ele tivesse vindo exuberante, aninhando-se no desconchavo dos dias e daí lançasse uma cortina de fogos, que haveria de lembrar o inferno, com anjos caídos, horrendos, negros como baratas. Por falar em anjos caídos, sempre poderia dedicar-me a escrever uma angelologia. Dividir os anjos entre fiéis e rebeldes, e discutir a magna questão se Adão foi criado ou não para que os homens substituíssem no céu o lugar daqueles anjos que se deixaram levar pela empáfia e sofreram, mesmo destituídos de corpo, os efeitos terríveis e inexoráveis da gravidade. Como se vê, sou inconstante de objectivos. Comecei a propor-me falar de anjos e logo mudo de opinião e quero discutir a origem dos homens. Desconfio que, a continuar assim, ainda acabo a perguntar-me sobre a génese dos percevejos. Seja como for, o céu continua cinzento. As nuvens não deixam que se avistem os anjos bons e os maus, como se sabe, andam demasiado ocupados a sugestionar os pobres mortais, semeando-lhes searas de armadilhas para que eles, levados pelo descaso, se percam e a sua alma fique mais escura que um tição.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Julho

Só hoje dei por Julho ter chegado. Sabia que o calendário indicava que estávamos em Julho, mas este ainda não se apresentara diante de mim, mostrando-me credenciais e comprovativo de existência. Esta frase fez-me lembrar uma peculiaridade da burocracia nacional, a certidão de nascimento. Apresento-me, identifico-me com o bilhete de identidade, mas alguém diz: prove que nasceu. É um exercício difícil provar que se nasceu. Vale-nos a certidão. Também Julho apresentou a sua certidão de nascimento. Isto não torna as coisas mais fáceis. Pelo contrário. Há pouco peguei num livro onde um filósofo actual me informa que “jamais poderemos ter a esperança de tornar as nossas palavras perfeitamente precisas”. As pessoas esperam pouca coisa, pensei. A minha esperança é que as palavras se tornem perfeitamente imprecisas. Assim ao dizermos uma coisa, o leitor suspeita que estamos a dizer outra e isso parece-me muito consolador. Acabariam os mal-entendidos. Olho o céu, e uns cirros mancham a pureza do azul. Cá em baixo, na terra, os homens apressam-se pela avenida. Temem chegar tarde ao comboio que os há-de levar a Agosto.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Ares de família

Respiro fundo e penso que este é um belo exercício para clamar a vinda da paciência. Estou há horas numa tarefa repetitiva, destituída de sentido, fabricada por gente misericordiosa, sempre activa na descoberta da melhor forma de fazer da vida dos outros um exercício de penitência. Talvez eu mereça, mais que qualquer outro, essa penitência. A estupidez é um pecado capital que se paga caro e eu não me distingo particularmente pela inteligência. Decidi acompanhar o ir e vir do látego com as sonatas para piano de Beethoven. A certa altura, estas tornaram-se também elas repetitivas. Não percebia já o movimento da música, apenas ouvia, como se viesse de outro mundo, o martelar ameaçador das teclas. Parei. O Youtube ofereceu-me, então, as sonatas de Schubert pelo Claudio Arrau. Olho para a fotografia deste e acho o seu rosto, marcado pela idade, uma estranha combinação entre Nietzsche e Arnaldo Matos. Não estou bem, pensei. Levanto-me, esfrego os olhos, dou uns passos pela casa. Chegou a hora das alucinações. Troco o Beethoven pelo Schubert e volto à expiação. Antes de recomeçar ainda me pergunto: Nietzsche, Arrau e Arnaldo Matos seriam primos? As voltas que a vida dá.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

A verdadeira arte

Podia vir aqui contar a história do faroleiro Richard Garman, mas não o faço. Há que evitar o excesso de ficção e, desse modo, propagar histórias falsas por esse mundo fora. Já basta o que basta. Também é verdade que não haveria quem a ouvisse. Inspirado por Santo António, sempre a poderia contar aos pássaros meus vizinhos, mas estes parecem-me demasiado ocupados para se entreterem com o que lhes pudesse dizer. Esvoaçam diante da janela, poisam no parapeito, fazem tangentes arriscadas à esquina do prédio. Acima de tudo, não se calam e eu não sou santo o suficiente para lhes fazer entender a minha língua. A luz desta segunda-feira tem o condão de me irritar. Há nela um sintoma de falsidade, uma mancha esbranquiçada que alastra pelas paredes e telhados, um odor a trevas mascarado de brilho. Não sou daqueles que na natureza vêem o metro da virtude. Também ela é dissimulada, pronta a fazer-nos cair numa armadilha. Eu sei que o que estou a escrever não tem nexo, mas também eu perdi há muito o norte. Acima de tudo, esforço-me por adiar aquilo que tenho de fazer. Ainda oiço o sagaz conselho que estava num daqueles livros de instrução pública que me calharam em sorte: não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Pobre sagacidade e infeliz conselheiro. Há coisas que o melhor é nunca as fazer. Procrastinar é uma arte. A verdadeira arte.

domingo, 30 de junho de 2019

Ruminações

Nestes dias não tenho deixado de ruminar na descoberta da minha obsolescência. Hoje também não foi diferente. O que me valeu foi a visita do meu neto. Com os seus sete meses e meio arrasta-se por onde o deixam, movido por objectivos determinados, quase sempre traduzidos na tentativa de capturar um telemóvel esquecido ou de alcançar qualquer coisa que brilhe. Ainda não chegou o momento em que há-de passar pelas estantes e puxar livros e CD para o chão a grande velocidade, como se soubesse que está a fazer uma patifaria. Talvez esta propensão que os netos têm, quando começam a andar, de desarrumar os livros e a música seja um sinal que só agora começo a perceber. Os livros que leio e a música que oiço são coisas que já não fazem sentido, o melhor é desocupar as estantes para que alguém mais de acordo com o espírito do tempo as encha com aquilo que lhe há-de interessar. A ideia consola-me, assim como me consola o vento que ameniza a temperatura por estes lados. O domingo progride, o meu neto já se foi embora, restam-me os livros fora de época e a música que ninguém mais há-de querer ouvir. Não há coisa pior que criar expectativas que a realidade, sem benevolência, se encarregará de desmentir. Às vezes, penso nos meus dois avôs e sinto uma grande tristeza por eles terem morrido bem antes de eu nascer. Nunca pude chamar por eles e descobrir o que tinham para me ensinar.

sábado, 29 de junho de 2019

Exercícios da paciência

Chegou sábado e não devia estar por aqui. Um excesso de zelo, porém, obriga-me a ficar em casa neste fim-de-semana. Tento ser um taxinomista ponderado e razoável na classificação das espécies. Oiço uma voz. Grita, lá em baixo, golo. Depois o rapazola ri-se, tomado pela euforia. Naquelas idades, nada há mais importante que um golo. Há pouco tive de atravessar a cidade para uma visita de família. Foi uma travessia por ruas lentas, morosas, cheias de paciência. As ruas da minha cidade nunca desesperam. São como tartarugas que sabem muito bem que não haverá Aquiles que as vença. Então deixam-se estar na sua modorra, à espera de transeuntes, e eles lá vão passando, inclinados para si, fechados no pequeno habitáculo da sua consciência, indiferentes ao desvelo acolhedor de cada rua, de cada beco, de cada avenida. Espreito à janela. Dois adolescentes disputam uma bola. Fintam-se um ao outro, fintam-se a si próprios. O terreno de jogo é uma mescla de luz e sombra. Recolho-me e penso que poderiam colocar jacarandás no lugar das palmeiras cortadas. Assim, poderia falar na glória dos jacarandás em Junho. Ou, então, renques de ciprestes, para que os homens não se esquecessem de olhar para os céus. Os jogadores calaram-se e o último golo que eu marquei – eu que nunca tive inclinação desportiva – foi há tantos anos que começo a duvidar que realmente o tenha feito.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Revelação

Tenho uma tarde poeirenta pela frente, o que me dá sempre ensejo para considerações esquálidas. Pensamos, medito, que o momento não chegará, que nunca a nossa obsolescência cairá, como uma evidência irrecusável, diante dos nossos olhos. Haveremos sempre de estar na vanguarda. De um momento para o outro, porém, a realidade muda e os nossos reflexos estão enfraquecidos, o corpo cansado e a vontade gasta. Aquilo que valia deixou de valer, as regras e o jogo são outros. É uma hora terrível. Os que nos rodeiam ainda não sabem, mas nós sabemos que estamos definitivamente ultrapassados. Perdemos a corrida. Os gestos estão mais lentos, as mãos mostram uma pele enrugada e, acima de tudo, há em nós a pior das tentações. Não queremos saber. Aquilo que agora nos ultrapassa e nos revela o quão arcaicos somos não nos interessa, são coisas que se dirigem para o futuro e nós, aquilo que nos falta, é futuro. Sobra-nos o passado e é para lá que nos dirigimos, enquanto a nova vanguarda edifica as suas ilusões e ainda não sabe que também ela está grávida da sua obsolescência. Na praceta aqui ao lado, um adolescente bate uma bola de basquetebol. Inebria-o o som e o movimento. Oiço a batida e fecho os olhos. Ainda tenho que disfarçar durante uns tempos.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

A morte da senhora de Segelfoss

Ao olhar a capa do velho livro que estou a ler, pergunto-me o que terá a literatura para que eu dê uma especial atenção à queda do senhor do domínio de Segelfoss. Eu sei que o senhor e o seu domínio, assim como a própria queda são apenas palavras criadas pelo romancista Knut Hamsun. Nada daquilo se relaciona com uma realidade substancial. Não basta, porém, dizer, como Coleridge, que se suspende a descrença para acompanhar a trama romanesca. O enigma está no motivo por que o fazemos. Interessamo-nos pelo destino de pessoas que não existem, que estão embrenhadas em situações que não existem e que têm destinos que nunca existirão. Estamos conscientes desta irrealidade e, no entanto, não paramos de virar as páginas. Talvez o façamos porque estamos certos dessa irrealidade. Talvez o façamos porque, apesar de termos opiniões sobre tudo o que acontece, não suportamos a realidade. Talvez o façamos porque na morte de Adelheid, a senhora de Segelfoss, pensamos a morte como uma ficção e assim evitamos olhar nos olhos a nossa própria morte.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Popeline

Ao ler um post sobre música deparei-me com a palavra popelina. Há muito que não a escutava  e, tanto quanto me lembro, ouvia-a como popeline. Uma camisa de popeline. Na altura, não imaginava – ou imagino que não imaginava – que a palavra fosse francesa e estivesse em vias de nacionalização lexical. Também o sentido exacto devia escapar-me e, talvez para infelicidade minha, nunca senti curiosidade em saber precisamente que tipo de tecido era realmente a popeline. Aquela era uma linguagem esotérica de uma seita, para mim, fechada. Os tecidos não eram, nem são, o meu forte, se é que tenho algum forte. Um raio de sol, ao fender as nuvens, iluminou-me e pensei que, para pessoas como eu, deveriam existir dicionários ilustrados de tudo e até de tecidos. Fiz uma pesquisa no Google e ele, na sua infinita bondade, devolveu-me vários dicionários ilustrados. Um de moda, uma aproximação, mas também outros mais adequados ao meu presente estado. Um dicionário Ilustrado de fisioterapia e outro de saúde, que terá, por certo, uma secção de saúde mental. Ainda não é agora que vou saber alguma coisa sobre os tecidos que vestem as personagens com que me cruzo na rua, pensei desanimado. O Google, contudo, não dá ponto sem nó e indicou-me um guia prático de tecidos. O problema é que é brasileiro e lá os tecidos hão-de ter um nome que nada terá a ver com o que se usa por cá. Por causa das coisas, o Google ainda me indica, não sem perspicácia, o dicionário Houaiss ilustrado. Infantil, claro. Fico a pensar na insinuação e acabo por aceitar que não faltará muito para que seja esse o dicionário que me é mais apropriado.

terça-feira, 25 de junho de 2019

O taxinomista que boceja

Tomado pelo sono, bocejo atrás de bocejo, uma tentação quase irresistível de fechar os olhos e deixar descair a cabeça, suspendi a minha função actual de taxinomista. Por vezes sou agraciado com a divina dádiva de me entreter com categorizações, exercícios de ordenação de certos elementos através do jogo das semelhanças e diferenças. Estou a ficar esotérico, o melhor é mesmo, caso não consiga calar-me, falar de outra coisa. Na verdade, há coisas que me incomodam como ir a um restaurante e sair de lá a cheirar a comida. Imprevidência, dir-me-ão. Um juízo precipitado. Era o que estava mais à mão e que me permitia voltar mais rapidamente para a minha função de organizador de taxinomias. Por vezes, as refeições são um incómodo, mas ainda não consigo dispensar o suplemento de energia que fornecem. Sempre podia jejuar ou mesmo fazer como o burro do espanhol, mas conheço o funesto destino do pobre animal. A verdade é que me senti melhor ao sair. Havia uma luz triste a lembrar a melancolia dos sábados à tarde na província. Os carros passavam, as pessoas cruzavam-se, as folhas das árvores, batidas pelo vento, abanavam. Fiquei siderado pela proliferação de pretéritos imperfeitos na frase anterior. O que me vale é que os macacos-prego usam ferramentas de pedra há três mil anos e os chimpanzés do Congo possuem um tipo de cultura diferente de outros chimpanzés. Isto tranquiliza-me e rouba-me à minha solidão. Agora não sei se hei-de voltar para as taxinomias ou ir bocejar para outro lado.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Autossexuais

As coisas que uma pessoa aprende só pelo passar dos olhos pela informação disponível. Uma notícia informa-me que para além dos heterossexuais e dos homossexuais existem ainda os autossexuais. Atraídos por si mesmos, não encontram prazer sexual maior que aquele que retiram de si. Poderíamos ter sobre o assunto uma discussão sobre se deveríamos interpretar o facto mais do ponto de vista psicanalítico, apontando-lhes os dedos e clamando narcisos, narcisos, ou de uma perspectiva filosófica, exibindo-os como amostra de radical solipsismo, se é que tal coisa existe. Isso, porém, poderia conduzir a más interpretações e, nos dias que correm, o melhor é mostrar-se neutro e esquecer qualquer opinião que se possa ter tido sobre sexualidade. O que me consolou, perante esta autocensura, foi outra notícia que me diz ter a NASA descoberto metano em quantidades apreciáveis em Marte. Talvez isso seja sinal de existência de vida microbiana no planeta vermelho. A minha esperança é que os possíveis micróbios sejam verdes e declaro, para memória futura, que não tenho nenhum interesse em saber como se reproduzem nas alcofas marcianas.

domingo, 23 de junho de 2019

De Profundis

Contra o hábito, fui fazer ao domingo compras a uma das grandes superfícies comerciais que, como cogumelos, brotaram por aqui. O dia está cinzento e abafado e eu, por falta de talento ou por conflito com a situação atmosférica, não estou particularmente inspirado para criar analogias. Uso as que estão, como eu, gastas e quase sem préstimo. Na charcutaria, local que também tem a função de takeaway (estas coisas em inglês acentuam o carácter degradante da realidade), um homem que já terá, há muito, ultrapassado a casa dos oitenta, falava com outro, mais novo. Este escutava atento e complacente, enquanto o primeiro, hesitante, de voz quebrada e gestos lentos, ia confessando a mágoa com a vida. Vinha comprar o almoço. Tem de ser, dizia, conformado, com as palavras a saírem manchadas de angústia. Não sei cozinhar e ela, que tão bem o fazia, agora é incapaz de fazer seja o que for. É tarde para eu aprender, tenho de me valer disto. Salvou-me o terem chamado o meu número e a vida, que parecia suspensa naquela conversa escutada inadvertidamente, tomava o seu rumo. Um rumo impiedoso, penso agora que escrevo isto. Do leitor de CD, desprende-se o De Profundis, de Arvo Pärt. Um acaso, penso, enquanto olho pela janela e vejo a calmaria do arvoredo a clamar por uma grande tempestade.

sábado, 22 de junho de 2019

Aliviar o fígado

Atravesso, na passadeira, a avenida. À minha frente vai uma mulher de blusa branca, cintada e que termina no que poderia ser o rodapé de uma página, onde ninguém se lembraria de fazer qualquer anotação. Chegados ao lado de lá, ela segue para um lado e eu para outro. Entro num café e sento-me. Antes de pedir o café e abrir o jornal, oiço uma mãe a encomiar a prole, perante uma pequena assistência silenciosa e constrangida. Nunca deixa de me maravilhar a penetrante visão dos pais que vêem nos seus filhos seres pelo menos ligeiramente superiores em inteligência a Einstein e nunca menos virtuosos moralmente que os santos que enchem os altares. Nessas alturas, bendigo a criação. Chega o café, abro o jornal, a senhora não se cala, tal a abundância de virtudes e o excesso de perspicácia que os filhos receberam, por certo, dos seus genes e daqueles que o seu coração escolheu para produzir deuses. Estas pessoas são perigosas, pois a realidade é desagradável e quando, inexoravelmente, os limites da criançada se revelam, a culpa é dos outros, uns aleivosos incapazes de reconhecer o génio e a superioridade moral. O melhor, pensei, é fechar o jornal e sair. Quando cheguei à rua, as nuvens erguiam uma barreira débil à luz. “Não há nada de novo sob o Sol, e a eterna repetição das coisas é eterna repetição dos males”, citei em pensamento, como quem alivia o fígado.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Solstício de Verão

Há pouco atravessei a cidade e senti-me defraudado. As pessoas passavam envoltas no grande véu de indiferença que as cobre, empurravam sem paixão a sua sombra, ninguém tinha cara de ir comemorar o solstício de Verão. Compreendo que gente como eu, filho da névoa e da cinza, que tem uma incompatibilidade visceral com o Estio, se sinta acabrunhada e tente ostentar, só por impertinência, uma cara de enterro. Ora, os meus conterrâneos, que há muito se vestem para receber a estação do calor em apoteose, andarem pelas ruas como se nada fosse com eles, sem uma euforia exteriorizada que anuncie a alegria pela chegada da grande época, é coisa que não consigo compreender. Talvez os mais entusiastas, pensei, tenham viajado para Stonehenge para participar naqueles rituais que se imaginam pagãos, mas que são apenas uma forma de escandir o desespero. Talvez, mas a verdade é que a gente que se cruzou comigo não trazia no rosto a exaltação dos dias de festa. Não era fremente a luz que a iluminava. E como a cidade ou como eu, iam, avenida fora, baços, de asa caída, sem que uma estrela os iluminasse. Um adolescente berra, eu viro-me, mas é apenas uma bravata consigo mesmo. Cala-se e mergulha na nuvem de tristeza que cobre os telhados. Os dias vão começar a diminuir.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Confissões modernas

Durante séculos, pensei ao acabar uma tarefa que tinha entre mãos, as pessoas confessavam-se para aligeirar a consciência e acertarem contas com o bom Deus. Era um assunto religioso, tratava dos negócios da alma e da vida no além. Agora a confissão tomou conta das vidas profissionais sobre a forma de auto-avaliação. Os confessados, todavia, já não se interessam pela salvação da alma nem pelo além. Confessam-se para salvar o pêlo e mostrarem que, num mundo onde transborda o mérito, eles são merecedores, não do céu, mas de uma daquelas recompensas que fazem lembrar a cenoura que se deve pôr à frente dos burros, para que estes se tornem diligentes. O propósito destas confissões é mesmo – meditei, enquanto olhava para as estranhas configurações das nuvens no céu – mostrar que somos excelentes burros e que merecemos se não a cenoura, pelo menos um rabanete. Nas velhas confissões – um dos pássaros meu vizinho não se cala, não sei se estará a confessar-se em voz alta – expunham-se as chagas da alma, os deméritos da vida, a podridão em que as inclinações do corpo depunha o paroquiano. Agora, exibe-se a imaginação no seu poder criador de feitos e milagres. Os confessados de hoje são todos heróis do trabalho e não pecadores contumazes. Burros de carga, para usar uma linguagem coloquial. Não tarda e começo a zurrar.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Manuscritor e profetas da desgraça

Li que foram descobertas mais duas terras. Fiquei apreensivo, apesar da notícia já poder ser antiga. Agora é moda andarem a descobrir terras por dá cá aquela palha. Percebo que os astrónomos tenham de passar o tempo de qualquer maneira, mas descobrir terras não me parece a mais honrosa. Basta olhar para esta que nos coube e afastar, por uns instantes, a cortina das belas paisagens e das boas acções, para logo se ter uma ideia real do que é uma terra. Um sítio que não se recomenda nem a um inimigo. Por falar em coisas pouco honrosas, também eu tive de ir comprar um material de escrita, pois os próximos dias vão obrigar-me a voltar a escrever manualmente. Numa era tecnológica como a nossa, escrever manualmente é prova provada de que se é um indigente de alto calibre. Além do mais, fico com dores nas costas. Pensando nisso, após comprar o material de escrita, um material reles e barato, fui comprar uns analgésicos. Uma pessoa pode ser indigente, mas precavida. Uma coisa, porém, posso assegurar. Escrever manualmente, ainda o farei, apesar de contrariado, mas nunca me apanharão a descobrir terras, a focar telescópios em estrelas e exultar de alegria porque houve uma intercepção na radiação luminosa, por causa de uma miserável terra passar, ofegante e mal educada, em frente da estrela. Manuscritor, ainda vá que não vá, agora profeta da desgraça, nunca.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Capital de distrito

Por motivos profissionais, seria lícito pensar que essas razões são penitência por alguns pecadilhos veniais, tive de ir à capital de distrito. Não há nada como capitais e o país está cheio delas, desde as dos distritos até à do fumeiro ou a dos caracóis com urtigas. Se esta ainda não foi criada, certamente sê-lo-á a breve prazo. Sob o céu cinzento a capital do meu distrito estava bisonha, exaurida, bocejava a torto e a direito. Mal escrevo estas últimas palavras o word sublinha-as a verde e informa-me, obsequioso, que formam uma expressão idiomática da linguagem informal. Eu agradeço e o software responde-me com um imperativo hipotético: Pondere o emprego de uma expressão alternativa. Eu ponderar, posso ponderar, mas não deixo de constatar que o mundo se tornou um lugar onde fervilham conselheiros para tudo e para nada. Voltando à capital, lembro-me como ela era garrida e animosa para os olhos que eu tinha na infância e ia lá para ver parte da família. Os olhos envelheceram e a cidade, apesar das inovações no trânsito e a proliferação de rotundas, envelheceu com eles, levando-me a família e os sítios que, na altura e sem o saber, amava. O mundo poderia ser perfeito, mas há nele uma aposta firme e obstinada na imperfeição.

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Estado do tempo

O tempo está mesmo a pedir chuva, pensei. Fui consultar um site de meteorologia e anuncia-se por lá que ela cairá nos próximos dias. Lembro-me, quando era adolescente, de algumas pessoas mais velhas se preocuparem excessivamente com o estado do tempo. Havia uma espécie de ritual na escuta do boletim meteorológico na Emissora Nacional ou em assistir, no fim do telejornal, à sua emissão na televisão, onde alguém, comentando uma carta cheia de curvas e sinais esotéricos, anunciava a boa ou má nova do tempo por vir. Talvez fosse um exercício para determinar o que deveriam vestir no dia seguinte, imaginava então. Hoje penitencio-me por esses juízos precipitados. Também eu comecei a interessar-me pelas informações acerca do estado do tempo, embora nunca pense no que vá vestir amanhã. A minha nova tese é que o interesse pela meteorologia é um hobby que se desenvolve a partir de certa idade. Até a esse momento de viragem na vida, tanta faz que faça sol ou chova. Passada a fronteira, as coisas mudam e começamos, primeiro de forma encapotada e depois quase maníaca, a consultar a meteorologia. Principiámos, por certo, a detestar – ou a temer – as surpresas.

domingo, 16 de junho de 2019

Domingos

Os domingos são dias óptimos para surgirem salvadores e venderem-se técnicas de salvação. Na verdade, passam-se poucas coisas ao domingo e a imaginação, fora do controlo que o ganhar a vida impõe, desata a fantasiar. Mesmo há pouco, num dos grandes jornais, encontrei um novo salvador, com uma teoria que nos há-de trazer a definitiva redenção. Para memória futura, fica aqui o registo que o encontrei, que li a prosa remidora. Também é verdade que encolhi os ombros e fui dar uma volta pela cidade. Esta insiste em não encontrar quem a salve e vai enfezando sob o sol. As coisas nunca são como os homens as querem, pensei, enquanto deixava o carro deslizar pelas ruas. As tardes de domingo sempre foram especialmente melancólicas por aqui. Não porque no outro dia seja segunda-feira, mas apenas porque é domingo e as ruas estão desertas, as pessoas fugiram ou mancomunaram-se para criar um ambiente de irrealidade insuperável, como se esse fosse o cenário ideal para uma distopia. O calor é aceitável, valha-nos isso.

sábado, 15 de junho de 2019

Falta de palavras

Uma das coisas que me acontece com frequência é esquecer-me da palavra que estou prestes a proferir. No momento em que a ia mobilizar, ela furta-se à tarefa, foge de mim e, por mais que corra atrás dela, não a consigo apanhar. A sensação com que fico é desagradável. A ausência da palavra é uma lacuna no saber, porque não é apenas o som que me escapa é também aquilo que ele evoca. Estas lacunas devido ao passar dos anos, porém, são menos graves que outras. Olho pela janela e vejo um arbusto cheio de flores que me parecem hesitar entre o rosa e o salmão. Não tenho, todavia, palavra para o designar. Esta falta de palavras para dizer o que se vê pesa-me mais que o esquecimento, mostra-me como eu passo pelas coisas com sobranceria e desdém, sem querer saber-lhes o nome. E se não sabemos o nome delas como falar delas, sem lhes faltar ao respeito? Um pequeno pássaro poisa no arbusto, e é tudo o que a minha pobre linguagem consegue dizer. Deveria passar o tempo a fazer listas dos nomes da flora e da fauna, ou do mobiliário ou, mesmo, dos tecidos. Como se pode falar do mundo se não se tem palavras para ele?

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Segundas naturezas

Um pequeno pardal estava pousado no muro da varanda. Parecia olhar, inclinando a cabeça, para o abismo que havia diante dele. Por vezes, recuava, com leves estremeções das asas, mas logo se aproximava da borda. Sentado, olhava-o e perguntava-me se ele saberia voar, se estaria ferido. A ave recuava um pouco, abanava as asas e dava novos passos para o precipício. O vento fazia-lhe tremer as penas. Tanta hesitação era sintoma de uma incerteza, de uma falta de confiança nos seus poderes. A cena prolongou-se por alguns minutos, até que, num súbito impulso se atirou da varanda para o espaço aberto diante de si, estendeu as asas, bateu-as e desapareceu. Encontrou-se, naquele, instante consigo mesmo, pensei. Não tinha outro remédio, a não ser a morte. Aos homens, porém, é-lhe dada uma terceira hipótese entre encontrar-se consigo mesmos ou perecer. A de viverem num limbo onde a hesitação e a contingência se tornam a sua natureza. Não voam nem morrem, ficam a olhar o precipício encolhidos. Talvez seja isso a natureza humana, uma longa hesitação. As sextas-feiras fazem-me mal. O pássaro voou, mas eu apenas me deixo divagar, enquanto uma pilha de livros se ergue perante mim e uma varejeira, que aproveitou o descuido de uma porta de varanda aberta, choca com o vidro para retornar aos espaço livres, onde tecerá o seu império. Vou abrir-lhe a janela.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Passar o tempo

Junho progride sem glória nem ignomínia. Vai em passo desengonçado e arrasta consigo corpos, casas, ruas, as memórias que começam a desvanecer-se ou os desejos, tomados por súbita aquietação. Têm sido dias ventosos, oiço dizer. Uma mulher confirma a constatação da outra, enquanto passam por mim e se afastam, logo sendo devoradas pelo espaço onde caminham e pelo tempo que passa. Observo os carros da avenida. Alguns aceleram para travar bruscamente ao aproximarem-se das passadeiras, outros seguem vagarosos, enquanto os seus ocupantes devaneiam, como se ainda estivessem naquele limbo que faz a ligação entre o sono e a vigília. Também eu me sinto nesse limbo. Mantenho os olhos abertos, mas a minha vontade é de correr para casa e deixar-me adormecer. Contenho-me e luto contra o demónio da preguiça. O dever chama-me, digo sem ironia e rio-me. Por motivos terapêuticos, comecei por rir-me das coisas que fazia. Agora, sem esperança de cura, rio-me de mim. Cada um passa o tempo como pode.

terça-feira, 11 de junho de 2019

Distracção

Peguei há pouco no romance O Beijo ao Leproso, de François Mauriac. Ainda não o vou ler, observo-o apenas como objecto físico. É um velho livro da Colecção Miniatura da Edição «Livros do Brasil» Lisboa. Não tem data, um acidente corrente até certa altura na edição portuguesa, mas o papel está muito amarelado. O livro, comprado há pouco, nunca foi lido. As páginas ainda estão coladas por um pequeno lacre branco. A capa e a contracapa apresentam sinais de sujidade, talvez por terem estado muito tempo em exposição. Não sei se o hei-de abrir. Tenho a sensação de que, quando acabar de o ler, todas as folhas estarão descoladas da frágil lombada e hão-de cair para me obrigarem a restituí-las à ordem. Agrada-me, porém, a estética da capa. Enquanto penso em todas estas coisas, penso também nos motivos que arranjo para me distrair. O sol continua, para minha felicidade, anémico, uma luz aguada lava paredes e telhados, embate nas árvores para que sombras sejam projectadas na terra, como se fossem reflexos das copas. Não me apetece ver ninguém, mas não tarda haverá gente à minha espera. Não há distracção que nos salve daquilo que tem de ser.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Fora do paraíso

Para fazer uns escassos 100 km, utilizei, para além de um IP, quatro auto-estradas. Estas coisas nunca deixam de me maravilhar e não posso deixar de agradecer aos fundos europeus a misericórdia que têm tido connosco, poupando-nos àquelas viagens homéricas, em que para se fazer aquilo que fiz hoje em bem menos de uma hora, quase se tinha de partir na véspera. Talvez seja para usar tantas auto-estradas que existem feriados como o 10 de Junho. Cheguei ainda cedo, com a cidade banhada por uma luz solar anémica, de tonalidade esbranquiçada, um ar fúnebre. Que peçonha lhe terão dado não faço a ideia. Uns quantos emails caídos fora de tempo lembram-me que a realidade volta amanhã de manhã e o melhor será preparar-me para ela. Respiro fundo, olho para o arvoredo agitado pelo vento e enfrento com denodo a melancolia que se desprende da luz da tarde. Nunca me prometeram que a terra, mesmo com auto-estradas, seria um paraíso.

domingo, 9 de junho de 2019

O contra turista

Deveria estar a ver o ondular do oceano, sentado numa esplanada, fingindo ser um turista contumaz. Não estou, há muito que me descobri sem alma turística, coisa de que não paro de me penitenciar. Encontrei há anos, numa romance de Xavier de Maistre, o meu ideal de viajante. A literatura não é coisa que faça bem a ninguém. O título iluminou-me: Viagem à Volta do Meu Quarto. Li o livro com voracidade, como se tivesse descoberto no jovem oficial detido no seu quarto uma alma gémea. Sei que isto parece inusitado, num tempo em que não há quem não viaje, não corra Ceca e Meca, não tenha aventuras que só o turismo permite para gáudio dos ousados calcorreadores do mundo, que hão-de contar, sem falha de pormenores reais e inventados, as mil aventuras que o mundo lhes proporcionou. Tudo para desgraça do ouvinte que, tomado por uma educação caída em desuso, escuta silencioso, sorrindo como quem faz dura penitência. Eu não tenho aventuras turísticas para contar, a não ser as viagens sentado à minha secretária, coisa que omitirei para desprazer dos leitores ávidos de novidades. O oceano espera-me, mas eu não me espero no oceano.

sábado, 8 de junho de 2019

O começo do futuro

Pego na National Geographic de Abril e abro-a ao acaso. O tema é as cidades do futuro e desenrola-se à minha frente um sem número de utopias que nos hão-de salvar da perdição. Fecho a revista. O futuro cansa-me e mais ainda os profetas, os planeadores e todos os que têm uma redenção fácil ali mesmo à mão, pronta para nos retirar do purgatório, ou mesmo do inferno, em que vivemos. Talvez a minha cidade também tenha um futuro, o futuro de não ter futuro e, assim, se arraste como uma tartaruga, lenta e pausadamente, sabendo que tem todo o tempo do mundo e que, por mais vagarosa que seja, há-de sempre vencer o veloz Aquiles. Não sei como é que a revista veio parar onde está, mas também não me interessa o enigma. Algum dos filhos a trouxe e a deixou por ali, também ele já exausto de futuro. Os sábados que têm uma segunda-feira de feriado à sua frente são dias esplendorosos. Enrolo-me neles e deixo passar as horas, vejo-as desfiarem-se e desaparecerem nessa garganta funda que é o passado. Nos jornais descubro que, em Nova Iorque, uma centena de seres humanos se despiram para protestarem contra a censura dos mamilos femininos no Facebook. Fico mais tranquilo, o mundo, apesar do futuro, continua a ser o que era. Uns vestem, outros despem. Talvez vá dar uma volta e procurar o lugar onde, aqui mesmo, começa o futuro.

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Os outros

Sentado à secretária, bebo café. Há muito que troquei a errância pela rua em demanda do sítio onde o líquido negro me fosse servido pela comodidade de não sair de casa. Tudo na vida, constato de imediato, conspira para que nos apartemos dos outros, que cortemos o fino arame que nos vincula e faz partilhar crenças e aspirações. Noutros tempos, os outros poderiam ser obstáculos ou aliados, hoje são apenas aqueles que não estão aqui, e o facto de se manterem à distância é motivo se não de júbilo, pelo menos de verdadeiro alívio. Os pássaros meus vizinhos não se calam, parecem repetir, inclementes e obstinados, a mesma sequência de sons, como se quisessem que a mensagem fosse percebida e o seu sentido não fosse vítima de distorções. Para eles ainda parece que existem outros, eu sou quase uma mónada, mas a palavra provocou-me de imediato um refluxo gástrico. O pássaro volta a cantar, enquanto termino o café e sussurro que preferiria ser um grão de areia do que uma mónada. A inércia é um belo exercício.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Uma ilusão

Chove. O vento agita a tarde vestida de cinza e rouba-a à melancolia dos dias quentes e sem história. Nas persianas fazem-se já sentir as indisposições atmosféricas, uma depressão a que deram o nome de Miguel, em honra do temível arcanjo, espero. Recordo as grandes chuvadas de Junho, as saraivadas indispostas que deixavam as ruas cobertas de granizo e as vinhas destroçadas. Por vezes, eram acompanhadas por grandes trovoadas, uma atmosfera tensa e um desejo irracional que tudo desabasse, mas que, por fim, se pudesse respirar livremente. Com ou sem depressão, a vida continua. Prendem-me à secretária afazeres inadiáveis, que vou cumprindo com zelo e sem prazer. Um cedro balança, carros passam, enquanto observo os livros que se acumulam nas estantes, muitos dos quais não terei tempo para ler. Sinto irritação, não porque os não vá ler, mas porque ainda julgo que não os ler é uma perda irreparável. Uma ilusão nefasta.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Insistência

A tarde de voz rouca e agreste desfila como se fosse um girassol entontecido pela luz. Frases destas enfureciam uma certa seita de filósofos. Destituídas de sentido, diriam os pensadores tomados pela raiva, dedos apontados, acusação sem direito a defesa. Como eu os compreendo. Também os sons da bateria vindos de algum evento festivo aqui perto me chegam destituídos de sentido. Pressinto o esforço do baterista, o movimento dos músculos, a cadência das baquetas ao chocar contra pratos e tambores. Definitivamente, a percussão nem sempre me cai bem. Acontecem as coisas mais estranhas nesta terra onde nada acontece. A semana desenovela-se com indiferença. Já esqueceu a segunda e a terça, não tarda aniquilará a quarta. O baterista ensaia um solo, mas logo desiste. Há pouco corria uma aragem fria, agora é uma nuvem que tapa o sol. Os músicos insistem e imagino que os ouvintes resistem. Tocam êxitos do rock dos anos sessenta ou setenta, e eu, suspendendo o meu ressentimento e incómodo, fico extasiado perante o engenho de quem tenta parar a roda do tempo e imagina que tem vinte anos e uma vida pela frente. Não tem, mas também não se cala.

terça-feira, 4 de junho de 2019

Grafias

Olho a capa de uma velha revista e, de súbito, revela-se toda a perfeição encoberta no limbo do passado. Não por acaso há pretéritos perfeitos e até mais que perfeitos, apesar de também os haver imperfeitos, como certas capelas na Batalha. Todas as famílias têm as suas ovelhas negras, foi, à falta de melhor, a explicação que me ocorreu. A revista, publicada em MCMXXX pela Litografia Nacional, tem por título Monumentos de Portugal – Cintra. Aí está toda a perfeição. Que diferença entre a velha Cintra e a Sintra de hoje. O leitor pode objectar, não sem alguma razão, que a actual é marcada pela dupla curvatura da linha, ora para trás ora para a frente, de um esse que se contorce, como se a vila quisesse, nestes tempos de funâmbulos, moldar-se à instabilidade acidental de qualquer turista. A concavidade da velha Cintra tem, porém, outro carácter. O cê está ali disponível para acolher dentro de si todas as outras letras e fechar-se num mistério insondável, que nenhum intruso pressentirá. Enquanto oiço a algazarra vinda de uma das escolas que há por aqui, medito que só os desavisados pensarão que a grafia das palavras é coisa neutra, destituída de significado e das mais terríveis consequências.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Agustina Bessa-Luís

Afinal, também os imortais morrem. Foi o que me ocorreu ao tomar conhecimento da morte de Agustina Bessa-Luís. Em tempos, tive com os livros dela uma relação complexa, um misto de fascínio e ódio. Há na sua escrita uma crueldade enorme que coloca o leitor de cócoras perante o seu talento. Lê-la era ao mesmo tempo um grande prazer e um exercício de humilhação. Ao voltar da página, na luz de uma frase, brilhava um estilete que deslizava sobre a pele do leitor para se enterrar no lugar de onde brota a vaidade. Há uns anos conheci alguém que vociferava contra todos aqueles que, como o inútil que escreve estas palavras, julgavam a escritora genial. Uma idiotice, asseverava. Como é possível julgar genial alguém que não passava de um Camilo requentado, uma escritora do século XIX? Esqueci o nome e o rosto dessa pessoa e nunca dei por que tivesse dado à luz a escrita que haveria de iluminar o século XXI. Um dia destes voltarei aos romances de Agustina, agora que as ilusões juvenis murcharam e a realidade crua desceu sobre mim. Por certo, já não os jogarei ao chão e à parede, como, despeitado e preso ao feitiço da sua escrita, cheguei a fazer. Mesmo quando os pássaros meus vizinhos cantam, Junho é um mês difícil.

sábado, 1 de junho de 2019

Tagarela

O culpado de tudo isto é o pobre do Coleridge, caturrei, que ensinou aos leitores que deveriam suspender a descrença quando lêem qualquer ficção. Um péssimo trabalho, o do poeta inglês, que gerou mais equívocos do que qualquer outra patranha que a literatura inventou. Agora tendem a confundir-me com quem escreve estes textos e atribuir-lhe os pensamentos que são meus. Entre mim e o autor há uma desconformidade tal que há dias e dias que passamos um pelo outro e nem trocamos um olhar quanto mais uma saudação. Desconfio que o tipo nem me suporta. Eu, para dizer a verdade, dispenso de bom grado o convívio, mas é triste para mim esta confusão, rouba-me a identidade e atribui ao tolo do autor as descobertas, sensações e exalações que são minhas. Se fosse ele a arvorar-se dono do que digo e sinto ainda o acusava de plágio, mas ele é burro velho e não cai na esparrela. Remete-se ao silêncio e deixa-me tagarelar. Tagarela, foi assim que ele me criou.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Assim-assim

Há por aqui um desassossego pouco habitual numa terra que caminha lentamente, dobrada ao peso dos séculos, ao correr dos anos sob a sombra do castelo. Para combater a artrite, o reumático e os sintomas de alzheimer da cidade, inventaram uma coisa a que chamam feira de época e não falta quem para lá se apresse, corra, se precipite, fingindo que faz uma revisitação do passado por meia dúzia de patacos. E é esta ficção pouco imaginativa que traz em polvorosa locais e forasteiros, aumenta o trânsito e parece trazer alegria e, segundo dizem, coloca a antiga vila no mapa das festas. Como se sabe, não há coisa melhor que uma terra animada. Tudo isto faz-me lembrar aquela história de John Stuart Mill que se conta aos adolescentes sobre a divisão dos prazeres em superiores e inferiores. Estas festividades, ou muito me engano, não cabem nessa sábia divisão. Nem são tão rasteiras que degradem quem nelas participe, nem tão elevadas que permitam alçar o espírito de quem por lá se perde. São uma espécie de assim-assim que vem e logo se vai, sem que daí venha grande mal ao mundo. Sobre tudo isto que me rodeia não tenho mais palavras nem sequer pensamentos. A minha mente também ela é uma espécie de assim-assim.

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Quinta-Feira de Ascensão

O dia da espiga deslizou na mansidão do calor e prepara-se para se entregar como oblação aos poderes da noite. Por aqui, é feriado municipal e as pessoas devotaram-se ao ronronar das horas esquecidas dos antigos rituais. Haverá quem dê uma saltada à Chamusca, terra que combina espigas e toiros, talvez uma festa arcaica vinda sabe-se lá de onde. Eu fiquei em casa perdido entre pilhas de papéis, protegido contra o império do sol. Não me posso queixar de falta de rendimento do dia. Foram inúmeras as inutilidades que fiz. Há quem diga que estou a ficar demasiado velho, tal o cinismo com que olho o mundo. Há pessoas muito dadas à hipérbole, é o que eu digo. O mundo é o mundo e confundi-lo com o paraíso é não ter medida das coisas. Apesar de o vituperar por desfastio e falta de assunto, tremo só de pensar que há quem queira transformá-lo num paraíso. Se o mundo fosse um paraíso, hoje não era Quinta-Feira de Ascensão.

domingo, 26 de maio de 2019

Ai que prazer

Não posso dizer que o cumprimento do meu direito e dever de votar tenha sido particularmente espinhoso. Bastou-me sair do prédio, atravessar a avenida e entrar na escola onde me esperava a urna e o boletim de voto, onde havia de expressar a minha escolha do produto que decidi comprar no mercado eleitoral. Eu sei que não devia contaminar as nobilíssimas questões cívicas com o tagarelar rude e interesseiro da economia, mas hoje acordei com aqueles versos do Pessoa que dizem: Ai que prazer / Não cumprir um dever. Votar, votei, mas agora desforro-me com estas contaminações despropositadas. O dia está quente e as pessoas das secções de voto parecem ter inscrita nos rostos a saudade da beira-mar. Somos um povo atlântico e é com grande sentido de dever que há quem troque o oceano pelos cadernos eleitorais, o abrir e fechar daquela fina ranhura por onde o nosso voto entra para se despenhar no buraco negro das contagens eleitorais. Também eu, há muitas décadas, fiz parte das mesas das secções de voto. Depois, evaporei-me, embora as visite sempre com ar sério e não sei se compungido. Saí da secção de voto como quem sai de um confessionário, com alma limpa e pronto para a penitência.

sábado, 25 de maio de 2019

Cegueiras e prerrogativas

Ao ver uma fotografia antiga, assaltou-me a ideia de quão rude era a vida naqueles dias. De imediato, pensei que quem então vivia não sentia essa rudeza, que só se torna visível aos olhos dos que chegam muito depois. Também nós somos cegos para a rudeza em que vivemos, para a existência fruste que nos cabe, e essa cegueira é a moeda com que pagamos o vinho das nossas alegrias. Tudo isto foram pensamentos que me acudiram de manhã. Depois, veio a tarde e atravessei a cidade para uma visita familiar. O sol não transformara as coisas e elas continuam a ser o que sempre foram. Não sei se isso me alegrou ou entristeceu. Há dias em que já não consigo distinguir alegria e tristeza. Talvez essa capacidade de distinção seja uma prerrogativa dos verdes anos. Agora, sento-me e, enquanto vou escrevendo, deito olhares enviesados ao mundo lá de fora. O vento toca ao de leve o folhedo das árvores e, por mais que me interrogue e medite, não consigo perceber por que razão a Terra há-de ser um planeta habitado.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Do cansaço da milícia

Sei bem que não sou dos melhores frequentadores da cidade. Tenho com ela uma relação esquiva que o passar dos anos acentuou. Não sei se será por isso ou por outro motivo que só os deuses conhecerão, a verdade é que, nestes dias de campanha, nunca me deparei com aquelas acções litúrgicas que os partidos políticos, em ano de jubileu, organizam para ganharem as nossas indulgências plenárias. Talvez tenham desistido de conquistar um lugarzinho no céu ou andem cansados, como eu, devido à inconstância do tempo. Ou talvez veja mal ou ande distraído, mas foi o que me ocorreu nesta tarde batida pelo vento, quando fui obrigado a palmilhar umas escassas centenas de metros para obter sábio conselho sobre um esotérico assunto fiscal. Não fora eu conhecer esta terra, até pensaria que estava num daqueles países ultracivilizados onde se  dispensam procissões e fogo de artifício para conquistar a benevolência de cada um. Não estamos. Aqui também é a Europa do Sul com a sua inclinação para a tragicomédia. Resta a hipótese dos actores locais estarem cansados e já não suportarem o peso da máscara que põem sempre que precisam de entrar no palco. A glória das coisas do mundo é transitória ou, para parecer culto e usar um latinismo em forma de analogia, apanhado no rabisco da internet, ut flatus venti, sic transit gloria mundi. Faço apenas notar que o flato é do vento, para que não se pense que, invejoso, misturo a glória mundana e certos odores originados nas catacumbas do corpo.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

É preciso paciência

As coisas são o que são e há que ser condescendente até, ou principalmente, consigo mesmo. Eu sei que estes dias não têm sido fáceis, tal a azáfama que se intrometeu na minha pacata existência quando Maio começou a declinar. Quando vêm limpar o escritório eu tenho um inevitável tique pequeno-burguês – como disse no começo, as coisas são o que são – de ter a secretária arrumada, o que por certo permitirá manobras de higiene executadas não só com mais precisão mas também com mais facilidade. Dito de outro modo, sou um facilitador. Impulsionado por este sentimento, arrumei dois livros que estava a ler. Procuro-os há mais de 24 horas e não faço a mínima ideia onde os coloquei. Eu sei que sempre posso colocar anúncios e até oferecer recompensas, e agradeço antecipadamente a todos os que me iriam sugerir tal expediente, mas há um pequeno problema. Não só não sei onde coloquei os livros, como não me lembro dos títulos e dos autores. Sei que são dois, que um é um romance e o outro talvez seja um livro de ensaios, mas não faço ideia o que se ensaiava por lá. Lentamente, lá me há-de vir à memória o conteúdo, depois os títulos e os autores. Por fim, hei-de descobri-los no sítio mais óbvio onde os poderia colocar. Tenho de ter uma infinita paciência.

domingo, 19 de maio de 2019

A lado nenhum

O domingo cheira como uma grande hesitação escondida num caminho da floresta. Na encruzilhada, nunca se sabe que senda seguir. O desconchavo destas frases e a sua falta de textura lógica – e aqui também eu, como o domingo, hesito, sem saber se poderei associar uma textura com a ideia de lógica – deixam-me infeliz. Nunca é motivo de júbilo a constatação do vazio que nos habita e, quando, como é o meu caso, se é levado, por um qualquer impulso soprado pelas forças do mal, a escrever palavras atrás de palavras, estas sejam destituídas de nexo, coloridas de inutilidade, maculadas de esquecimento. À minha frente, tenho a nova edição revista da Ilíada, na tradução de Frederico Lourenço. Abro-a ao acaso e leio: Caminharam ao longo da praia do mar marulhante, / rezando muito ao Sacudidor da Terra, que a segura, / para que facilmente persuadissem o grande espírito Eácida. E eu de imediato vejo a delegação, capitaneada pelo divino Odisseu, a pisar as areias e oiço o bruaá do mar e a oração dos homens, como se tudo ganhasse vida na abstracção das palavras, mesmo se traidoras, por estrangeiras, do pensamento que as eleva. Fecho a Ilíada e contento-me com os caminhos da florestas, caminhos esses, como se sabe, não levem a lado nenhum, que é também o sítio para onde me dirijo.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Dias aziagos

Que estupor, exclamei de súbito. Referia-me a mim, mas não se pense que me acho particularmente malcomportado ou falho de senso moral. Não sou, porém (que prazer as adversativas), bom juiz em causa própria. Estupor não no sentido do que sou mas no de estado em que me encontro. Em estado de estupor. Estamos no âmbito da patologia e, logo, da medicina. Sentado e imóvel, como se tivesse suspendido toda a actividade física e psicológica. Um zombie, para atalhar razões. Foi assim que cheguei à tarde de sexta-feira e nem a iminência do fim-de-semana parece oferecer um colírio para me retirar da suspensão em que me arrasto. Como em tudo o que escrevo há uma inclinação para a hipérbole e o melhor é franzir o cenho e duvidar do que digo. Acabei de receber um telefonema a confirmar se eu mantinha a inscrição numa acção de formação. Respondi que sim, claro. Não há nada como formações para nos modernizarem. Se fosse uma consulta no dentista talvez aproveitasse a ocasião para me escapulir, sendo uma oportunidade de ser amodernado não vejo como optar pela fuga. Depois veio-me ao pensamento o quão bom e glorioso é viver numa sociedade que trabalha arduamente para transformar um cansado e estuporado conservador no mais rutilante dos inovadores. São aziagas as sextas-feiras, diziam os antigos. Eles lá o sabiam.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

O crepúsculo dos ídolos

Passo, não sem fastio e longos bocejos, os olhos pela imprensa. Há um tal grau de exaltação que parece estarmos em pleno crepúsculo dos ídolos. Tudo o que acontece é enfadonho e, como sempre, repetitivo. Durante muito tempo gastaram-se toneladas de incenso em louvor de cada candidato a bezerro de ouro surgido nem o diabo sabe de onde. Os incensados adoravam o cheiro e pavoneavam-se diante da turbamulta extasiada. Enquanto os turíbulos rodopiavam nas mãos de diáconos zelosos, os bezerros mugiam e tratavam da vida, ruminando a erva que os dourava. Agora, parece que há por aí uma legião de amantes traídos, todos dispostos à comédia italiana. O que vale é que o decoro nunca foi uma virtude pátria. O melhor é abandonar esta conversa e falar do tempo. Não há nada como dissertar sobre o tempo quando, como é o meu caso, não se tem nada para dizer e se sofre de uma imaginação amputada. A tarde esvai-se triste e insegura, levada pelas investidas do vento. Espera-me o jantar.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Coisas do destino

Sento-me à secretária e sou confrontado com as imensas coisas por acabar. Na escola ao fundo da rua, prepara-se o final do ano lectivo. O grupo musical ensaia músicas dignas dos bailes, matinées e chás dançantes de há umas décadas. Não deixo de ficar embevecido com a obstinação das coisas no tempo. Talvez fosse isso que Dali quis pintar em A Persistência da Memória. Os dias estão quentes, mas anuncia-se uma descida acentuada da temperatura. E eu acredito no prognóstico. Sinto desde ontem as velhas dores que chegam com a mudança do tempo. Deveria ter ido para ajudante de meteorologista, penso. Uns adivinham o destino pela conjugação dos astros e eu adivinharia o tempo pelas metamorfoses do corpo. Haveria ofícios piores e menos dignos. Maio já cumpriu metade da sua corveia. Não tarda, faz as malas e vai jornadear para o obscuro buraco de onde regressa todos anos. A música calou-se, mas os pássaros meus vizinhos, talvez levados por um estranho mimetismo, trilam em arroubos cujo significado será melhor não decifrar. Há que preservar os bons costumes.

domingo, 12 de maio de 2019

Restos de colecção

Vejo flutuar nos ares aquele algodão que se desprende do arvoredo e penso que o tempo é propício para alergias. Ao escrever isto afundo-me na consciência da minha inaptidão, no vergonhoso recurso a metáforas e generalidades por incapacidade, devido a uma ignorância contumaz, de designar os objectos deste mundo. A verdade é que o algodão não é algodão e o arvoredo é composto por múltiplas árvores cujo nome nunca consegui conservar na triste memória. O que me vale é que não sou dado a alergias, murmuro, enquanto me recordo dos dias em que, na avenida marginal pejada de algodão, lançávamos fogo a essa penugem esbranquiçada e ficávamos a ver corredores de chamas entre as lajes irregulares que cobriam a terra, que, depois de cintilarem por instantes, morriam exaustas. Nesses tempos, um dos quiosques da avenida tinha um serviço de aluguer de barcos a remos. As pessoas davam curtos passeios pelo rio, aventuravam-se por baixo da ponte e os domingos de então passavam tão calmos como os de hoje. Julgo que não há algodão para incendiar nem barcos no rio. A nódoa do declínio nunca deixa de habitar aquilo que é grandioso.

sábado, 11 de maio de 2019

O declínio da Primavera

A cidade começa a aquecer, mas as ruas ainda não ostentam o vazio dos grandes dias de calor. Por elas vão viandantes solitários, pequenos grupos a quem um destino aguarda, cães há muito esquecidos do lobo que houve neles. Também eu circulo por ali, o carro a ronronar – pois o que há-de fazer, num escrito como este, um carro senão ronronar? –, o coração desvalido pelas ruínas em que a memória se transformou, o pensamento vacilante perante a auréola de fogo que espreita dos céus. Na avenida, sob o olhar circunspecto do castelo, os castanheiros em flor mostram uma exuberância que a cidade não justifica. Paro no semáforo. Como sempre, a Antena 2 perde o sinal, e, como sempre, irrito-me, mas logo me apaziguo reconciliado com a imperfeição da técnica e a finitude dos recursos. Os sábados na província exigem uma grande perícia ao manobrar os elementos. A reminiscência dos tempos da lavoura ainda os segura, puxando-os para o passado, grudando-os à terra. Um pássaro perdido passa rente à minha sombra e eu admiro-lhe o voo rasante. As paredes começam a sangrar em silêncio esquecidas da estridência das grandes chuvas que lhes acalmaram a dor. Tudo se inclina para o Estio, como se não houvesse sobre a Terra um mistério para nos atormentar a alma.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

O mês de Maio

Leio que as máximas se preparam para chegar aos 37 graus e estremeço. A culpa – culpa e não causa – é, segundo sou informado, de um anticiclone. Vivemos num país de impunidades globais. Por maior que seja a devastação, nem o anticiclone há-de ser castigado. Num dos livros da escola primária, talvez o da primeira classe, havia uma lição laudatória do mês de Maio. Associava-o aos lírios, se a memória não me falha, e à Virgem Maria. Hoje fico espantado com a inocência que me levava a crer na bondade de tão insidiosa folha do calendário. Nela, o Verão experimenta as garras com que há-de devastar a terra e crestar esperanças e vontades, afia o punhal que me há-de derrotar. As escolas aqui à volta parecem casas assombradas, povoadas apenas por terríveis espectros, habitantes do silêncio e da névoa. Tamborilo o tampo da secretária, mas não oiço o mais leve rufar. Também eu sou um fantasma, uma assombração perdida numa floresta de símbolos, um espírito incongruente que se passeia por aí envolto no lençol da sua inutilidade.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Ortografias

Comprei há dias um romance de 1926, Volupia que salva, de um autor de que nunca ouvira falar, Tomás de Noronha, que assina modestamente por T. Noronha. O exemplar pertence à segunda edição, presumo, referida como 2.º milhar. No fim do livro, consta a informação que este se acabara de imprimir no ominoso dia 28 de Maio de 1926. O mundo está cheio de coincidências, pensei. Na rua tremula uma chuva fina, delicada, que parece aspergida para não ferir os mortais que vivem sobre a terra. Folheio o livro e vejo nele um sabor arcaico, um gesto de resistência ao passar do tempo, uma fidelidade à tradição. E não sabendo nada dele já me sinto disposto a reverenciá-lo. Não passo de um preconceituoso. A ortografia é a anterior à republicana simplificação de 1911. Não é pouco o prazer de observar a elegância do ele geminado em n’aquelles, ou o insidioso agá que se deixa ficar na sua mudez enquanto emana  uma última exhalação. E o que dizer do lúbrico ípsilon mancomunado com o parzinho indiscreto tê e agá no fulgor de uma hypothese? Tudo isto sem esquecer esse sempre emocionante encontro gráfico entre o passivo pê e o sempre volúvel agá com que a divina Aphrodite nos abençoa. O que há-de pensar uma pessoa, se está chover e a imaginação não lhe dá para mais?

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Falta de assunto

Pontes não passam de promessas de vitória sobre armadilhas que a natureza decidiu pôr no caminho dos homens. Com elas, é verdade, enganamo-la e esquecemos que as nossas vitórias, todas elas, são transitórias. Ocorreu-me que deveria evitar a tentação da ênfase, mas ninguém é perfeito. Numa qualquer margem estará a derrota que nos espera. Era nisto que há pouco pensava quando atravessei uma velha e pequena ponte de madeira que liga a esconsa Rua de Trás os Muros ao jardim da avenida. Há tanto tempo que não passava ali que a tinha esquecido. Enquanto pisava a madeira periclitante olhava as águas do rio e achei-as iguais às que por ali corriam há trinta ou quarenta anos. Talvez Heraclito estivesse errado. Talvez os meus olhos me enganassem. Chegado a casa, na caixa do correio, esperava-me um livro que, num impulso de nostalgia, comprei. Há muitos, muitos anos vi um filme, não sem prazer, com o inusitado nome Um Táxi Cor de Malva. Descobri que a Bertrand traduzira o romance que o originara e não hesitei em correr o risco de me decepcionar. Na província, há poucas coisas para pensar. Ou então nunca me ocorrem.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Concordância

A luz, dócil e temerosa, reclina-se suavemente sobre o asfalto. Pequenos lençóis de água reverberam, enquanto o vento sacode o dorso das persianas, repercute nas frinchas e um tamborilar contínuo toma-me de assalto os ouvidos, prende a atenção e inclina-me para o estranho código Morse que assobia na janela e espera um decifrador, o áugure que saiba ler os segredos da ventania e os prognósticos dos deuses. O dia resvala vagaroso, toldado pela poeira das nuvens. Uma mulher arrasta um saco e entra na lavandaria. O café ao lado está vazio. Um gato caminho furtivo pela praceta. Pára e especado olha para algo que só ele vê. Também eu, se fosse um gato, ficaria a olhar para alguma coisa que só eu visse. Assim, olho para o que toda a gente vê e sigo caminho. Não me foi dado o dom da profecia nem a graça da erudição. Olho as ruas, encolho os ombros e rio-me sem causa nem motivo. És o maluquinho da aldeia, diz-me a consciência infiel. Não deixo de concordar.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

As velhas ideias

Envelhecer é tomar como virtude algumas idiossincrasias viciosas, pensei enquanto, de estante em estante, ia vendo os livros numa livraria. De há uns anos para cá aproximo-me dos livros através dos símbolos das editoras. Basta ver um certo símbolo que nem olho para o que está na lombada. Apenas dois símbolos editoriais me obrigam sempre a ler autor e título, os da Relógio d’Água e da Cavalo de Ferro. Hoje, porém, comprei um livro da Quetzal. Breviário Mediterrânico, de Predrag Matvejevitch. Um livro de viagens e logo eu que, ao contrário das pessoas normais, sou pouco amante de viajar. Penso-me como turista e logo me desfalece o ânimo. Já cheguei a desistir de viagens com os bilhetes de avião comprados e perder o dinheiro. Uma outra idiossincrasia viciosa. Para mim, porém, é uma virtude. Sou mais dado à imobilidade, embora alguma literatura de viagens comece a interessar-me. Numa das badanas do livro estão citados uns versos de D. H. Lawrence. Começam assim: Ah, quando um homem escapa ao novelo do arame farpado / das suas próprias ideias… E fico a meditar nestas palavras. Há uma luminosidade difusa que se desprende da cinza nublosa do céu. Se me libertasse das minhas próprias ideias talvez me tornasse um viajante incansável. Logo o coração sussurra que não há nada melhor que as nossas velhas ideias.

domingo, 5 de maio de 2019

Latir ao vento

Aqui perto, um cão não pára de ladrar. Parece irritado com o mundo e expele a animosidade em forma de latidos, um pouco agudos para tanto agastamento, os quais vai modulando conforme as ondas anímicas vão e vêm. Por vezes, parece que se vai calar, mas logo retorna, agitando na voz a bandeira do seu descontentamento. Penso no que tenho para fazer hoje e traço na página branca do caderno da memória o rol das tarefas, compartidas entre deveres e prazeres, se é que os últimos não são também um dever. Uma mulher, macerada pela idade, caminha hesitante, passo pequeno e trémulo, e aproveita as sombras viscosas que as tílias projectam para se defender da inclemência do sol. Perscruto o horizonte e aspiro o ar já morno da manhã. O mundo é o palco de uma grande comédia, medito enquanto deixo os olhos serem invadidos pela luz bruxuleante da paisagem. Também eu faço parte da comédia e desato numa gargalhada, rindo-me de mim próprio e da persistência inquebrantável do cão que, aqui perto, não pára de ladrar. Se ele não se cala, não tarda começo também eu a latir ao vento.

sábado, 4 de maio de 2019

Paixões

Quando me levantei espreitei com demora pela janela. Procurava indícios de paixões desencabrestadas que, ouvi dizer, há por aí. A serra, ao longe, mantinha-se imóvel e secreta. A praceta, ali em baixo, estava vazia. Apenas o vento murmurava na ramagem das árvores e Deus dormia descansado por detrás da nuvem que, perdida na campina azul do céu, era sinal de um outro mundo perdido neste. Afinal o cabresto não foi retirado e as paixões deslizam cansadas pelas ruas, ajoujadas à misericórdia da sensatez. Olhei para os telhados dos prédios e pensei nos tempos em que havia anjos. Que óptimo lugar para eles seria o topo destes prédios. Dali vigiariam as tontices humanas e, em caso de desespero, com um voo súbito salvariam da perdição alguém a quem a desgraça atormentasse a alma. Hoje, porém, é sábado e passou o tempo em que até eu via anjos nas ruas.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Algoritmos

Um rapaz e uma rapariga cingem-se, olham-se, apertam-se, como se os habitasse uma ânsia nunca saciável. Se houvesse um algoritmo para resolver os dramas da carne, talvez a matemática fosse mais apreciada, ou talvez não. São pensamentos destes, sem tino nem nexo, que me ocorrem nas tardes de sexta-feira. Será que o pensamento entra em fim-de-semana e só lhe ocorre o que é insensato? Olho para o arvoredo batido pelo sol e pergunto-me o que seria da carne sem os seus dramas. Lembro-me dos tempos em que, no confessionário, o padre de serviço escarafunchava no pecado da carne. Depois, veio o sacerdócio da libertação do corpo e eu não sei o que aconteceu aos escarafunchadores. Na avenida, um jeep cinzento passa devagar, enquanto o condutor deixa, negligente, o braço fora da janela. Uma mulher entra apressada num carro, fecha a porta não sem precipitação e logo se afasta levada por uma qualquer urgência. Sem respeito pelas urgências da humanidade, a ideia de algoritmo volta a assediar-me. O ideal seria haver um algoritmo para cada problema humano. Assim podíamos dormir descansados pela eternidade fora.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Excessos

Passei agora os olhos por umas largas dezenas de livros que estão em leilão online. Enquanto deixo deslizar o olhar pelas imagens das capas, uma sensação angustiante nasce em mim. Muitos daqueles livros foram cobiçados por leitores informados. Outros foram vãs tentativas de ascender ao Olimpo da escrita. Agora não são mais que mercadoria que alimenta nostalgias e lembra decepções. Maio nunca é um mês fácil. A luz cai de garras afiadas sobre a paisagem, reverbera e sustém os ataques plenos de ardis da noite. A cada dia que passa aumenta o território luminoso. O calendário trará a vingança, penso então. Sob o foco dos meus olhos, um casal passeia de mão dada. Agarram a mão um do outro como se temessem que o amor fugisse. Caminham inocentes não suspeitando que alguém os observa e lhes perscruta o destino no voo das aves ou no ondular suave da folhagem. Volto ao leilão e leio “Que alguém me queira por cinco minutos!”, e não sei como qualificar o pedido formulado sob a forma de imperativo. A humanidade tem sempre uma estranha tendência para o excesso.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Maio

Maio chegou envolto num manto tecido pela Primavera. Olhei para a construção da frase e logo senti uma enorme tristeza. Quem quer saber destas leviandades semânticas? Fui almoçar junto ao Tejo. Via o rio correr sem pressa, as águas azul cinza empurradas por um vento ligeiro que vinha de leste. Tocava-o uma mágoa que quase exigia que se chorasse por aquela dor tão exposta à luz vibrante do início da tarde. Da margem norte, um pato levantou voo e poisou num canavial da outra margem. Depois, voltou para a casa da partida. No voo da ave, descobri mais sabedoria que em muitos dos livros que li. O que será a vida mais que esse ir e voltar, sob o céu azul do primeiro dia de Maio?

domingo, 21 de abril de 2019

Memória

Banhada em serenidade, a manhã corre vagarosa para o meio-dia. A luz do sol faz-me lembrar Páscoas longínquas, com almoços ao ar livre sob uma latada, se o tempo, como hoje, estava quente. Naqueles dias, de tão novo, não sabia que tudo era efémero e que aqueles instantes, apesar da alegre exuberância que os habitava, estavam tocados pelo punhal de vidro da morte. Guardo-os no porão da memória, para os usar uma vez por outra como consolação pelas perdas que os anos me fizeram acumular. Daqui a pouco a casa fervilhará. Filhos e netos acumularão as suas memórias para as usar um dia quando eu já não estiver entre eles. E nisto vejo não uma maldição mas o exercício misericordioso de uma justiça nascida no começo dos tempos.

sábado, 20 de abril de 2019

Afazeres de sábado

O sábado de Aleluia chegou envolto numa túnica primaveril. O tempo cansado dos farrapos invernosos despiu-se, atirou os andrajos para o lixo e exibe-se, agora, perante os olhos dos mortais como se fosse um príncipe à procura do trono. Ah que analogia, murmurei para mim mesmo, enquanto, numa pequena venda de bairro que já foi o meu, escolhia morangos, rodeado de gente em busca irrequieta daquilo que lhe falta para o almoço de amanhã. Vivemos em tempo republicano, acudiu-me ao espírito, e não há lugar, nem que seja para esse cruel e volúvel tirano que é o tempo, para pretensões monárquicas. E enquanto estas ideias destrambelhadas me invadiam a mente, lá ia pegando em molhos de grelos, que também eles fazem falta para o almoço de Páscoa. Quando saí, a meditação climática desvaneceu-se. O sol brilhava, ameaçava já um dia de Junho. Entrei para o carro e vim para casa. A cidade ardia lentamente perdida num sonho, esquecida de si, como se nem a Primavera tivesse já o poder de a revigorar.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Feriado

Passo os olhos pela comunicação social e bocejo. Não, não fui vítima de uma noite mal dormida. Confrange-me, apenas, o desfilar de tantas novidades que já habitam no sótão do meu esquecimento. Hoje é Sexta-Feira Santa, mas ninguém parece compungido. Nasci num mundo onde havia tempo e lugar para o sacrifício e a compunção. Vou morrer num outro mundo onde só há lugar para o prazer e tempo para a diversão. Espreito as muralhas do castelo. Parecem grandes lençóis abandonados a corar ao sol minguado do dia. Na avenida, os transeuntes caminham devagar, sem afazeres que os esperem. Procuram o seu pedaço de prazer, não vá ele esgotar-se devido a alguma greve na distribuição. Hoje é feriado e um feriado serve para isso mesmo. Escrevo tudo isso e rio de mim, do meu inultrapassável anacronismo, na falta de inteligência que me tolhe a compreensão deste mundo que nunca cessa de me espantar. Fraudes, greves, expectativas e desesperos eleitorais, a vida rasteira do dia-a-dia nunca pára, nem mesmo se o filho de Deus morre na angústia de uma tarde de sexta-feira, sem sol nem chuva, sem crisântemos para depor no sepulcro.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Quietude

Mais composto de águas, o Tejo corre sereno e afável, convidando a quem se senta numa das margens à contemplação. O pior é o azougue dos aguaceiros que a inconstância da Primavera, indiferente aos ânimos contemplativos, ameaça. Nem todas as ameaças são para cumprir, penso enquanto pouso o olhar nas águas que se encaminham inexoráveis para a foz. Entre conversas, observo que é quinta-feira de Endoenças e que a Semana Santa, perante a indiferença dos negócios humanos, corre para a sua hora crucial. Não tarda, tudo estará consumado e a segunda-feira virá cobrir com o véu do esquecimento estes dias. Uma águia cruza os ares e pousa numa árvore da outra margem. Nesse instante, um pequeno barco inicia a travessia para atracar deste lado, num cais frustre e precário, como tudo na vida. As crianças saltam à corda numa clareira e despem as camisolas, afogueadas pelo sol e pelo ritmo das entradas e saídas no jogo. São horas como estas que permitem compreender por que não há perfeição maior que a quietude. Sinto o tempo deslizar por mim, enquanto, por detrás de um choupo, a eternidade sorri-me, lembrando-me que sou finito. O melhor é irmos para o carro antes que chova, digo em tom imperativo, como se fosse um desses profetas irados que abundam nas redes sociais.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Águas de Abril

A manhã deslizou batida por uma chuva persistente, despojada de piedade por aqueles que poderiam flanar por ruas e praças, coleccionando vistas e estadias. É possível, concedo, que S. Pedro, esse guardador de chaves e tutor dos bens meteorológicos, se tenha indisposto com o desvelado amor com que os portugueses se entregam ao turismo e, exausto por ver tanta gente de um lado para o outro, decidisse enviar, como castigo, estas águas de Abril. Ele lá saberá as linhas com que se cose. Aproveito a indisposição do santo e entrego-me, não sem desconsolo e irritação, àquelas tarefas inúteis com as quais hei-de salvar a pátria. A chuva tamborila nos vidros da janela, um autocarro passa diante do hospital, alardeando um vigor que a falta de combustíveis ainda não dobrou. Enquanto transformo um documento de word em pdf, sinto a tristeza de tudo isto, como se vivesse num mundo criado pelo génio maligno cartesiano, que, por malvadez e humor negro, invertesse a escala de valores e tornasse em caso de vida ou de morte aquilo que é risível. Depois penso que talvez só as coisas risíveis me sejam adequadas e respiro fundo. Abro uma plataforma e arquivo o pdf. A pátria está salva, mesmo que o turismo não goste das águas de Abril.

terça-feira, 16 de abril de 2019

Opiniões

Louvo aqueles que sobre tudo têm uma firme opinião. Com o passar dos anos deixei de ter opiniões firmes e, nos últimos tempos, trabalho arduamente para não ter sequer opinião. Sobre o incêndio de Paris não tenho opinião, lamento. Tenho sentimentos, mas não devemos confundir uma coisa com a outra. Como os sentimentos são coisas privadas, o melhor é guardá-los para mim. A semana santa decorre assim sobressaltada, mas sexta-feira de Paixão há-de chegar e, sem surpresas, tudo confluirá no domingo de Páscoa. E é bom que assim seja, que a permanente volubilidade das coisas e do mundo se ampare naquilo que parece ser imutável. Lá dentro, as minhas netas disputam com pouco alarido sobre qualquer coisa que me escapa e eu lembro-me que tenho de ir ver o correio. Nunca se sabe se lá posso encontrar, enviadas por alguém dado à caridade, as opiniões que vou deixando de ter.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Emudecer

Oiço alguém a fazer uns estranho sons. Depreendo que esteja a falar para um bebé, pelo tom que toma ao arremedar sons que bebé algum se dignaria produzir. A criança, todavia, parece resistir à toada que sobre ela é disparada, pois mantém-se silenciosa. Imagino-a a ostentar no pequeno rosto altivez e a olhar de viés para as momices com que tentam comprá-la. Enquanto observo o céu, o silêncio desce sobre a insipidez do dia. Por vezes, o sol brilha, mas o entusiasmo desse seu sorriso é escasso. No céu, as nuvens passam devagar, traindo na sua caminhada o cansaço que as anima. Como elas, também eu estou cansado. Pego num livro, mas não encontro sentido ou prazer na sua leitura. Fecho-o e espero que o tempo passe. A algaravia volta aos meus ouvidos, mas a criança é inexorável e não abre a boca. Agora, oiço na rua uns adolescentes a imitar um rapper, mas logo desistem da aventura e calam as vozes à falta ritmo e de sentimento. O destino de todas as palavras é desaguar no oceano da mudez. Também eu, penso, devia emudecer.

domingo, 14 de abril de 2019

Domingo de Ramos

Domingo de Ramos. O mais espantoso do tempo que me foi dado viver – penso, enquanto olho a cinza nebulosa do céu – foi ver desabar tudo o que, durante muitos séculos, deu sentido à vida dos homens. O dia não está convidativo para este tipo de meditações. Crepúsculos dos deuses são coisas que não faltam, mas eles voltam sempre com a sua luz e as suas trevas. As pessoas passeiam na rua, agarram-se à ideia de que hoje é domingo como quem, num barco à deriva, se segura à bóia que o há-de levar a terra. Há pouco fui ver a minha mãe. Comunicou-me que fora a S. Pedro à missa do meio-dia e que até trouxera um ramo de oliveira. E estas pequenas coisas encheram-me de uma alegria melancólica, o revérbero de um tempo onde ela se limitava a ir sem que isso merecesse a atenção de uma narrativa. Talvez não seja Deus que tenha declinado, mas eu, com as mil fantasias a que chamo realidade, esteja cego e preso ao meu inexorável anoitecer. Lá fora, a tarde está quente, apesar do céu sombrio que poderia ser o prelúdio de uma tempestade que a tudo lavasse.

sábado, 13 de abril de 2019

Das coisas absurdas

Mal chegam aqui a casa, as netas ocupam-me parte do escritório. Nem sequer acham que têm de negociar comigo a sua presença. É uma ocupação selvagem sem o mais leve questionamento pelo direito. Perguntam-me se vou trabalhar e depois tomam a outra secretária. Pedem-me folhas e brincam aos colégios. Uma faz de encarregada de educação e a outra de directora. Enquanto as oiço, penso que um saber instintivo, sabe-se lá vindo de onde, as afasta de quererem brincar às professoras. E fico tranquilo e grato. Com a sua presença vejo o sábado deslizar. Lá fora, o arvoredo está hirto, como se tivesse sido petrificado por algum deus vingativo. Só hoje comecei a descomprimir dos dias disparatados da última semana. Vivo num mundo onde, como numa distopia, existe um ministério de produção de coisas insensatas, e quanto maior a insensatez mais essas coisas são prementes e glorificadas. Depois penso que cada um tem o que merece e que eu não mereci mais do que ser subjugado aos grandes produtores de tolices. De tão treinado que estou, olho-me ao espelho e não deixo de rir da minha triste e absurda figura. O que me vale é que a directora não pode receber a encarregada de educação, que terá de marcar a entrevista para outra altura.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Perder-se

Caminhamos rapidamente para Domingo de Ramos. Se esta pobre cidade fosse uma Jerusalém perdida neste fim do mundo a que se dá o nome de Península Ibérica alguém entraria nela montado num jumento? O mais certo é que se alguém aqui entrasse não viria nem a cavalo nem num jumento, mas montado numa mula. Não traria nem a guerra nem a paz, mas a viscosidade informe que tolhe as almas, as dobra sobre si mesmas, para as prender na mudez das palavras trocadas sem propósito. No bar do outro lado da avenida, as pessoas estendem-se para a rua, bebem cerveja, conversam, enquanto a noite cai com as suas garras de pez e golpeia o flanco argênteo do dia para o devorar. Uma aplicação do telemóvel informa-me que estou a melhorar, que hoje cumpri o meu programa diário, como se eu tivesse um programa diário de caminhadas e uma inclinação para o cumprir. Com tanta melhoria, o melhor será ir beber uma cerveja e perder-me na ociosidade de sexta-feira à noite.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Enlouquecer

Ainda há pouco, as árvores da Sá Carneiro tiritavam despidas e melancólicas, tolhidas numa penúria ancestral. Ao espreitá-las agora descubro-as envoltas em cintilantes vestidos verdes, tomadas por uma sensualidade jovial, esquecidas da frugalidade que os dias frios e cinzentos lhe impunham. Indiferentes à verdura tépida que cobre as ramadas, os homens seguem o seu caminho. Vão descarnados e o seu andar, ao contrário do tremor irrequieto do folhedo, parece já devorado pelo efémero que as garras viscosas do tempo vão fiando sem parar. Se eu enlouquecesse, pensei nesse instante, tudo seria mais fácil. Do parapeito onde habitam, as orquídeas, lúbricas e castas, abrem aos olhos o fausto das suas cores e apontam-me o dedo acusador de não as olhar. Perdido neste mundo vegetal, faço contas à vida e penso no IRS como quem pensa nas penosas tardes de tédio de um Verão no Ribatejo. Enlouqueço lentamente, enquanto desfolho uma a uma as pétalas da minha razão.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Golo

Na praceta entre os prédios, um bando de rapazes joga à bola sob o sol de Abril. Como eu, as nuvens esparsas param e olham-nos estupefactas. Também joguei inúmeros e decisivos jogos de bola na rua, com regras inventadas e jogadores preocupados apenas que passasse um polícia e que, para assegurar o princípio da sua autoridade, nos ficasse com a bola. A folhagem das árvores da escola ao fundo da rua inclina-se, tocada pelo vento, batida pelo sol. Um cão ladra, pessoas entram e saem do café, e eu penso nesses jogos onde todos os sonhos eram possíveis e toda a honra estava ao alcance de um pontapé certeiro ou toda a perdição no estilhaçar de um vidro atingido pelo excesso de empenho do jogador. Um poema de Eugénio de Andrade diz-me que em abril / os dias são /frágeis, impacientes e amargos, mas eu já não acredito. Aqueles rapazes, uma projecção perdida no tempo da minha infância, julgam os dias de Abril gloriosos e eternos, pois toda a glória e toda a eternidade se resumem ao momento em que o pé encontra a bola e a garganta grita golo.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Desencontros

Uma mulher caminha contra o vento, os cabelos parecem querer voar em sentido contrário ao do corpo, enquanto a roupa, tornada indiscreta pela impiedade de Éolo, lhe desenha, sem propósito, os contornos, já tocados pelo passar dos anos. Um casal atravessa a passadeira, arrasta atrás de si duas malas como se fosse apanhar o avião, mas aqui não há aeroporto, lembrei-me de imediato. O desejo de partir é tão grande que as pessoas não conseguem impedir-se de ostentar pelas ruas os sinais de quem se liberta. A melancolia da província é tomada de assalto pela tristeza do dia e as duas dançam dentro dos meus olhos. Eu, enquanto observo tudo isto, luto por me lembrar de uma palavra que viria a propósito do que queria dizer, mas ela foge-me, corre, dança e, depois, ao longe, acena-me e torna a esconder-se. Hei-de apanhá-la quando já não precisar dela. A vida é feita de desencontros, consolei-me. Os pombos voam em círculos, os carros passam sem pressa, e eu vivo o êxtase de me ver roubado das palavras que fui comprando, o mais certo em saldo, nesses grandes armazéns onde se compra tudo aquilo que nos há-de escapar.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Ociosidades

Talvez tenha sido por ver o sol brilhar uns instantes, talvez por um súbito assalto de nostalgia, talvez devido a outro motivo qualquer, mas na minha cabeça começou a ressoar uma canção francesa – uma versão de outra portuguesa, na verdade – que tem por título Avril au Portugal. E enquanto atravessava a cidade, embalado pelo ronronar do carro, a canção fazia finca-pé e não me abandonava. Não sem vergonha mas com a atenuante de ir sozinho, confesso que cheguei a trauteá-la. O mês de Abril parece fadado para a mitologia, pensei. As mitologias mais antigas, com o avançar da idade, tendem a sobrepor-se às mais recentes, digo-me. E a cançoneta, que tinha desaparecido no fundo da minha memória há décadas, persistia sob um céu que estava longe de ser de Verão. Quando a realidade se torna absurda, é possível que o organismo se defenda e produza idealizações ou clame pelo mito. Tudo isto, porém, são pensamentos ociosos. E se o ócio, no tempo dos gregos era o lugar da sabedoria, hoje é a fonte de todos os vícios. O melhor é dedicar-me às coisas absurdas que me competem e deixar que Maio venha manso com as suas garras de calor para me sufocar, culpado que sou do amor ao ócio e dos vícios que ele acarreta às suas perversas costas.

domingo, 7 de abril de 2019

A Sulamita

Descobri num artigo de Vargas Llosa que, apesar de fazer parte do Antigo Testamento e de ser recitado na Páscoa judaica, o Cântico dos Cânticos, com as suas imagens voluptuosas e a sacralização da sensualidade, só podia ser lido pelos judeus depois dos quarenta anos. Enquanto olhava pela janela as águas de Abril não deixava de meditar não sobre a atracção de Salomão pela Sulamita, mas na sapiente interdição que impediria a leviandade de cair sobre os tortuosos rios do desejo. Se naqueles dias só aos quarenta anos se estaria apto para ler o Cântico dos Cânticos, hoje em dia, apesar da sexualização da sociedade e da precocidade das experiências amorosas, nem aos sessenta se estará capaz para ler o texto bíblico. Uma coisa é a mecânica dos corpos alimentada pelo fluxo hormonal, outra é a sabedoria que permite perceber que também no desejo se manifesta qualquer coisa que está para além daquilo que é meramente humano. E ao pensar em tudo isto não deixei de me rir. Não do mundo ou do poema de Salomão, mas de mim mesmo. Quem, neste tempo feito de impulsos e certezas primárias, quer saber daquilo que é mais que humano? O melhor, sinto, é não pensar em nada e deixar Salomão, ele que teve setecentas mulheres e trezentas concubinas, preso nos encantos da Sulamita.

sábado, 6 de abril de 2019

Sacralidades

Ontem, numa daquelas hamburguerias da moda na baixa lisboeta, um jovem padre e, presumidamente, a sua mãe jantavam. Denunciava a condição sacerdotal o cabeção, o que não deixou de me espantar e acabou por os fixar na minha memória. Interroguei-me se ele teria comido um hambúrguer de carne, já que era sexta-feira e estamos na Quaresma. Os presumidos mãe e filho estavam muito bem vestidos para jantar num daqueles sítios. Tornei a vê-los quando terminou o concerto, comemorativo do 150.º aniversário do nascimento de Calouste Gulbenkian, na Igreja de S. Roque. Como a generalidade dos espectadores, eu estava de traje casual, como agora se diz, mas senti, perante aquelas duas figuras, que alguma coisa se perdeu na democratização das roupas em certas actividades culturais. O Lamento de Adão, de Arvo Pärt, e o Requiem, de Tigran Mansurian, encontraram em S. Roque um lugar perfeito para a sua audição. Mesmo ao lado do Coro da Gulbenkian, estava o andor do Senhor dos Passos, carregando a cruz e o roxo das vestes, e durante a execução das duas peças muitas vezes se percebeu que a arte tem uma dimensão de sacralidade que não se coaduna com a displicência do vestir. Quando saí para o frio da noite lisboeta, pensei que só o jovem padre e a sua mãe se tinham preparado devidamente para o que iria acontecer.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Sem metafísica

Ainda há pouco a chuva dava às árvores uma aura que o declinar da luz apaga. A noite nunca deixa de se rebelar contra a santidade do dia, penso. Espreito a rua e deixo a tristeza do entardecer fazer o seu caminho para os meus olhos. Um homem atravessa vagaroso a passadeira e entra no bar do outro lado da avenida. Podia ser o Esteves sem metafísica, aquele que entra e sai da Tabacaria, mas não é. Esse já terá morrido há muito, e sem metafísica pode ser outro qualquer. Um casal corre emparelhado, fugindo da água, mas logo se separa para cada um entrar no carro pela porta que lhe cabe. A vida é feita deste modo. Uns entram dentro dos bares, outros correm para dentro de carros, outros saem das tabacarias, quando as há, e o mais importante é que a cada um seja dada uma porta por onde possa entrar e sair. O pior é quando se fecham todas as portas e a metafísica definha à falta de luz. Também a minha metafísica, constato, definhou à falta de luz natural da razão. Resta-me comer chocolates e olhar o crepúsculo neste mundo sem tabacarias, que se apaga no fundo dos meus olhos como a ponta de um cigarro esmagada contra o fundo do cinzeiro.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Sinestesias

Ainda hoje vejo aquela voz perturbante, oiço ao passar por um grupo de pessoas e fico encadeado pela sinestesia. Ouvem-se coisas extraordinárias nos sítios mais improváveis. O que faria daquela voz algo visível não deixou de me amofinar durante a curta caminhada pela avenida. Era ainda nisso que pensava quando entrei no café. Se tivesse espírito de coleccionador, coisa de que careço por completo, coleccionaria sinestesias. Ver o cheiro de uma rosa ou saborear o amarelo de um limão, isso sim mereceria ser coligido, arrumado em prateleiras, para depois ser mostrado ao público em grandes exposições, para as quais imagino já catálogos multissensoriais. E enquanto escrevo isto, o computador informa-me que as definições de um programa estão desactualizadas. Respiro fundo, pois também eu estou desactualizado, incapaz de ver vozes ou de ouvir a fragrância que ressoa no corpo daquela mulher ali ao fundo. Um upgrade era o que precisavas, digo-me não sem complacência, enquanto aguardo que o programa se actualize, nesse seu mistério digital de onde foram banidas todas as sinestesias.

terça-feira, 2 de abril de 2019

Improbabilidades

Num dos livros que comprei num alfarrabista encontrei um daqueles papéis que os bancos enviam aos seus incautos clientes com o código secreto pessoal de um cartão multibanco, presumo. Pela coloração do papel, esse cartão já deve ter sido desactivado há muito. Tudo isto é irrelevante, como todas as coisas sobre as quais escrevo, mas não deixa de haver um fascínio nessa tira envelhecida de papel. O código tem a extraordinária sequência de algarismos 1234. Ao vê-la fiquei a pensar que essa sequência é tão improvável como qualquer outra. E perdido nestas divagações sobre improbabilidades ocorreu-me que, provavelmente, o dono do cartão já terá morrido e que os herdeiros lhe terão vendido os livros. Na verdade, nem uma sequência improvável nos livra da morte. Depois de uma breve hesitação, tornei a colocar o papel entre as páginas do livro, para que um futuro proprietário o encontre e tenha um motivo para escrever sobre improbabilidades e outras coisas inúteis com que, à falta de melhor, preencho a vida. Como eu, o dia declina para se esconder no esconso desvão da noite.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Troveja

Um dia para esquecer, digo entre dentes e rio. Qual dos meus dias não foi para esquecer? Talvez meia dúzia, uma dúzia será já um excesso. Todos os outros saíram pela porta por onde entraram sem que eu me lembre deles. Sento-me à secretária e, para me lavar das necessidades da vida, pego num livro de Nuno Júdice, onde leio “Nenhum pássaro regressou do sul / aos seus ninhos vazios”. Esta poética do abandono, porém, não me comove e fecho o livro. Troveja, mas parece coisa longínqua. Ah se chovesse torrencialmente, que bom seria, murmuro. Como tudo ficaria mais limpo: as ruas, as casas, os carros, a vida e as almas, tão suadas que elas estão, tão fora do jejum que a Quaresma obriga, tão exaustas de serem almas e de arrastarem atrás de si a vileza do corpo. Oiço outra vez o ribombar de trovões. Talvez a trovoada se esteja a aproximar. Há nuvens negras, mas o horizonte é de um azul pálido que se suspende sobre as serranias. O dia despede-se ao toque do tambor e eu entro na noite pelo desfiladeiro maculado do silêncio.