domingo, 27 de agosto de 2023

Um simulacro

Leio um poema de Rainer Maria Rilke. Corrijo, leio uma tradução de um poema de Rainer Maria Rilke. Desconfio de algumas palavras usadas pela tradutora. Procuro o original e encontro-o online. O alemão é-me incompreensível, mas recorro a traduções automáticas e confirmo que há palavras acrescentadas. Servem para compor a rima e, o pior de tudo, dar uma pretensa tonalidade poética à linguagem da tradução. É esta tentativa de simular uma poeticidade que constitui o núcleo central da traição que existe em toda a tradução de poesia. Poder-se-á pensar que só poetas deveriam traduzir poetas, mas mesmo isso é incapaz de assegurar a transposição de um poema de uma língua para outra. Um poema é um acontecimento irrepetível, um caso em que um certo som se combina com um certo sentido. Enquanto num texto em prosa é possível que a sonoridade não seja essencial, num poema ela é uma condição necessária. Ler um poema só é possível na língua original. Quando se lê uma tradução – e faço-o com frequência, pois são poucas as línguas em que posso ler o original – já se lê outra coisa, eventualmente, um poema, mas já não o mesmo, mas um sucedâneo ou, melhor, um simulacro do original.

sábado, 26 de agosto de 2023

Versatilidade

Acabo de bocejar, isto é, abri a boca com sono. Podia ser um sinal de aborrecimento, mas nada nem ninguém nesta hora me aborrece. O facto de não estar a fazer nada poderia aborrecer-me, mas não é o caso. Por outro lado, estando sentado à secretária sem vivalma por perto, também não posso imputar a outrem um aborrecimento. Resta-me o sono. Há razões para crer nessa solução. Um almoço tardio e generoso, um consumo no limite da moderação de um tinto, uma pequena sombra de calor, tudo isto torna verosímil o facto de ter aberto a boca involuntariamente com sono. O mais sensato seria dormir em vez de estar a escrever isto. Contudo, tenho de o confessar, estar a escrever tem, neste caso, uma função instrumental. Faz parte da luta contra a preguiça e a sonolência que, mancomunadas, me invadem o corpo. Parte desse combate está também na leitura de Chesterton. Diz ele que Carlyle terá afirmado que os homens eram maioritariamente idiotas. Isso faria parte de uma argumentação a favor da aristocracia. Contudo, o criador das aventuras do Padre Brown discorda. Na sua perspectiva, derivada do Cristianismo, todos os homens são idiotas. Parece-me uma correcção razoável e, tanto quanto se refere a este narrador, plenamente corroborada pelos factos, pelos actos, pelos escritos e pelos ditos. Não esquecer as omissões, pois também se peca por estas. Uma coisa que me espanta – para ser franco, que me assunta – é a minha versatilidade. Começo o texto pela fisiologia do bocejo e arriscava-me a acabá-lo numa meditação teológica, não fora terem-se intrometido considerações de ordem psicológica. Tudo matérias que, versatilmente, ignoro.

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Meditações linguísticas

O Word tornou-se um processador de texto com ambições de grande educador dos desqualificados que utilizam a língua nacional. Não se contenta já com sublinhar a vermelho – ou será a encarnado? – os erros ortográficos, nem o descansa o tracejar a azul as frases onde desconfia uma infidelidade gramatical. Está, agora, na fase professoral de chamar à atenção dos indígenas para o uso de chavões e plebeísmos. Parece incompatibilizado com a linguagem ao gosto popular. Perante plebeísmos e frases feitas, põe-lhes por baixo uma espécie de pesponto – seja lá isso o que for – também a azul, como quem usa um sarcasmo perante uma inabilidade social. Este amor à correcção, todavia, é um inimigo encarniçado da língua, pois mata a possibilidade de evolução, que se faz, sob a designação da lei do menor esforço, por sucessivas infidelidades e traições. Não vou aqui discutir se o uso de infidelidades e traições é uma redundância, embora o Word também se agaste com ela, a pobre redundância. Aliás, este é um lugar onde a discussão foi banida, pois as opiniões expressas são tidas como dogmas inabaláveis, mesmo que no dia seguinte ou até na frase seguinte se diga o contrário ou, para ser logicamente mais rigoroso, se formule uma proposição contraditória. Note-se, contudo, que a palavra dogma é muito mais complexa do que se pensa. Aparentemente, um dogma é uma opinião imposta pela autoridade e aceite sem exame crítico, mas isso é uma aparência. Na origem da palavra dogma está o vocábulo grego dógma, que significa decisão, decreto. Como qualquer um sabe, toda a decisão pode ser anulada e todo o decreto, revogado. Na origem de qualquer dogma está a possibilidade da sua anulação e revogação. Se ele se mantém é porque resistiu às tentativas críticas de o pôr de lado, às tentativas de falsificação, para usar um chavão popperiano. O mais sensato é parar o escrito por aqui, antes que seja pronunciado por heresia lexical.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

A tragédia da escolha

Decidi-me pela leitura de Mistérios, de Knut Hamsun. O escritor norueguês é um caso curioso. A sua biografia tem aspectos, no campo político, nada recomendáveis, pelos quais pagou, embora um preço muito mais baixo do que o pago pelo escritor francês Robert Brasillach. Do ponto de vista literário é um dos precursores – senão mesmo dos cultores – do modernismo, ao mesmo tempo que, enquanto pessoa, era um anti-moderno, embora afirmando, de forma hiperbólica, uma das características da modernidade, o individualismo. É possível que seja desta amálgama ideológica que nasça o poder de atracção que têm as suas narrativas. Pode-se pensar que escolher entre duas obras qual ler em primeiro lugar é uma aventura irrelevante. Sê-lo-á apenas na aparência. Nunca se tem em contra nem o drama da deliberação, com o seu pesar dos prós e contras, nem a tragédia da decisão, que implica sempre eliminar todas as alternativas menos uma. Em toda a escolha há um elemento trágico, uma negatividade que se consuma. E tudo isso traz consigo um enorme cansaço e uma indisposição para partilhar os pensamentos íntimos e as feridas a sangrar no recôndito da alma, caso este tenha veias e artérias.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Despovoamento

Até aqui, onde o Inverno começa a 1 de Agosto, está calor. Exultam os viciados em areia, raios solares e água do mar. Caem em bando pelas praias em vez de procurarem uma clínica para tratamento da adicção. Fui a uma esplanada, apenas com o nobre intuito de classificar o pastel de nata que por lá se vende, mas não me demorei, pois, mesmo sob uma sombra protectora, estava calor. O pastel de nata era bom, mas não me parece, contra outras opiniões, que mereça estar no top five ou top ten dos pastéis de nata. Contudo, não sou especialista no assunto. Recebo um email e penso que a paisagem se está a despovoar. Sou informado que morreu alguém que conheço há décadas. Não era pessoa com quem tivesse grande proximidade, mas tínhamos uma relação cordial de conhecidos de há muito. A última vez que falámos foi num serviço de lavagem de automóveis, quando esperávamos que os nossos carros ficassem com um aspecto civilizado. Não tornaremos a falar. É isso que a morte tem de tenebroso. Impede as pessoas de continuarem a falar ou de se ver. Introduz o martelo da certeza num ambiente feito de acasos e incertezas, esmagando todas as possibilidades que poderiam existir. Numa estante ao lado da secretária, está Mistérios, um romance do norueguês Knut Hamsun, a única obra traduzida do autor que ainda não li. O livro tem a capa e a contracapa pretas, mas a lombada é azul. Foi isso que me perturbou. Uma lombada azul num livro de capas pretas. Ao considerar aquele azul, designei-o como azul-cobalto. Fiz uma pesquisa para avaliar a minha designação e descubro, consternado, que são legião os azuis designados desse modo. Entre tantos, também se encontrava o da lombada, o que me pacificou. Enquanto não acabo a leitura do primeiro volume de Crónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge, tenho de decidir se o próximo livro a ler será o de Hamsun ou o de Gyula Krúdy, As aventuras de Sindbad. Antes disso, porém, terei de almoçar.

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Tal como eu

Hoje já fiz uma viagem de ida e volta de doze graus Celsius, mais doze para lá, menos doze para cá. Mesmo cá, porém, há graus a mais. Isto impede-me de caminhar, de fazer quilómetros e pontos cardio, coisa que o meu coração, suponho, agradeceria, embora eu só vejo a minha cara, e quem vê caras não vê corações, segundo a sabedoria popular. Resta-me beber água, para me hidratar. Até comprei uma garrafa daquelas que os bebedores inveterados de água usam. Como tenho sempre uma certa inclinação para o cepticismo, não sei se quem transporta esse tipo de garrafas, em vez de água, tem lá xarope de limão ou groselha, talvez aguardente. Por exemplo, as garrafas que têm pretensão a serem garrafas-termo podem conter um belo Alvarinho fresco e a pessoa vai-se hidratando sem descurar o prazer. Este é o problema da hidratação. A água é, lamentavelmente, incolor, inodora e insípida, ao contrário do Alvarinho, que tem cor, odor e sabor. No términus da viagem, decidi ir almoçar a um lugar na moda por aqui. Não bebi um Alvarinho, mas um rosé da Bairrada, que fez muito bem o seu papel. Não apenas tinha odor e sabor, mas uma cor belíssima, discreta. O sítio tem uma garrafeira, ao lado do restaurante, de boa qualidade. Tinha à venda umas garrafas de vinho clarete, coisa que, depois de décadas de abandono, parece estar em recuperação. Custavam 41 euros e eu pensei que tinham endoidecido. Dei uma volta pelo mercado online e descobri que há garrafeiras a pedir quase 50 euros por uma dessas garrafas. Tentei perceber as razões e lá descobri que o vinho foi produzido num processo relativamente complexo e que merece ser guardado, pois promete muito com o envelhecimento. Não me deixo tentar, pois olhando para a minha experiência, o envelhecimento não me tornou melhor em nada. O mais avisado é ficar por alguma coisa que seja incolor, inodora e insípida, tal como eu.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Consultório matrimonial

Descubro que as redes sociais – pelo menos aquela que, por desfastio, visito, mas imagino que as outras também – estão ao rubro por causa de um beijo público, e logo nos lábios, entre uma jogadora de futebol e um presidente da federação daquele desporto. Sobre o assunto, não tenho qualquer opinião, pois não conheço as circunstâncias, e como ensinou Ortega y Gasset, já que o caso se passa entre espanhóis, o homem é o homem e a sua circunstância, o que também se aplicará à mulher. Depois do post de ontem, onde abordo a difícil temática da dissolução do matrimónio, também posso, no de hoje, dar conselhos para o caso daquele beijo acabar em casamento. Consta – ou constou-me em tempos através de fonte bem informada – que, antigamente, quando não havia astrólogos intelectuais cheios de cursos e pós-graduções, as previsões astrológicas dos jornais, incluindo os de referência, eram entregues aos jornalistas estagiários. Faz aí os horóscopos, diziam-lhe, para acalmar a ansiedade dos caranguejos, dos touros, dos leões e, acima de todos, dos virgens. Assegura-lhes que é agora que... e acabavam a frase sempre nas reticências, o que causou engulhos em alguns candidatos, pouco dados à hermenêutica astral. Já não tenho idade para estagiário seja do que for, mas posso exercitar-me como conselheiro matrimonial, com o mesmo grau de competência que os jornalistas estagiários tinham em astrologia. Para começar, não me parece boa ideia um casamento entre uma jogadora de futebol e o presidente da respectiva federação. O motivo é kantiano. A relação hierárquica existente destrói a reciprocidade que, segundo Kant, deve existir em qualquer casamento. Daí, ele ser contra os casamentos de pessoas de classes sociais diferentes. Não por preconceito, mas por defesa da igualdade daqueles que dão esse terrível passo – o matrimónio – para poderem desfrutar do sexo do outro. Mantenho-me na linguagem de Kant, note-se. É verdade que este em matéria de casamentos tinha tanta competência quanto os tais jornalistas estagiários em astrologia, se é que neste campo pode existir qualquer competência. Provavelmente será mentira  mais um dos mitos que se criou à volta do professor Kant  mas quando, em velho, lhe perguntaram por que motivo não se tinha casado, terá respondido: quando precisava de uma mulher, não tinha dinheiro para ela; agora que tenho dinheiro, não preciso dela. Juro que me contaram isto. Munido destas informações, talvez abra aqui um consultório matrimonial, a que por certo não faltará sucesso. Tenho uma alma de empreendedor.

domingo, 20 de agosto de 2023

Exclusões e omissões

A Ípsilon e o Capa separaram-se, informaram-me. É pena, respondi, gostava dos três. Dos três? Sim, da Ípsilon, do Capa e do casal que ambos faziam. Eles é que, parece, deixaram de gostar do terceiro elemento, daquilo que os fazia um casal. Isto, porém, são suposições, acrescentei, para evitar distorções comunicacionais. Sabe-se lá as razões que os outros têm para os seus actos. Nem as nossas, quanto fará as alheias. Não sei bem a causa, mas lembrei-me de uma passagem do livro de contos Ficções, de Jorge Luís Borges, onde alguém estreita com outro alguém uma dessas amizades inglesas que começam por excluir as confidências e que muito em breve omitem o diálogo. Não sei se a citação é completamente fiel, mas presumo que sim. O que se pode discutir é se a exclusão das confidências e a omissão do diálogo são condições de possibilidade da amizade – pelo menos na modalidade inglesa – ou se são uma consequência dessa amizade. Nunca esqueci esta frase e sempre a achei uma ideia reguladora das relações humanas. Fundamentalmente, na parte que diz respeito à exclusão de confidências. Pergunto-me, agora, se esse ideal das relações humanas não poderia salvar o casamento da Ípsilon com o Capa. Talvez, especulo, por defeito de formação, se desde o início excluíssem confidências mútuas e em breve tivessem omitido o diálogo, o casamento fosse mais robusto e não tivesse naufragado. A maioria das confidências que dois seres, ligados pelo desvario de Eros, fazem entre si são inúteis, e aquelas que não são inúteis, o melhor é não as fazer. Que cada um guarde para si aquilo que tem de perturbante na vida. A omissão do diálogo, numa era em que toda a gente pretende expressar-se e comunicar, terá as suas vantagens. Não havendo diálogo – isto é, não havendo recurso ao logos a dois, ao esgrimir de razões – não se dizem coisas que depois abrem buracos no pano cru da vida comum. Eu sei que esta omissão é difícil, pois todos nós temos uma acentuada inclinação para a tagarelice, mas a troca de palavras não tem de ser um diálogo. Por outro lado, e esta é a minha tese para hoje, os seres humanos têm outros recursos para além de usar os órgãos que conduzem directamente à discussão e à dissensão. Um casamento não é um parlamento.

sábado, 19 de agosto de 2023

Sem impunidade

Não é raro, pelo contrário, durante a noite, naqueles momentos que antecedem a queda no sono, ser invadido por ideias extraordinárias, assim me parecem naqueles breves instantes, sobre coisas a escrever. São projectos que estão longe da insensatez. Depois, adormeço e, ao acordar, não consigo encontrar o menor indício desses pensamentos. Julgo que a noite passada, depois de ter fechado o livro de Alexander Kluge e apagado a luz, essas ideias claras e distintas assaltaram-me, mais uma vez, motivadas, imagino, pelo que acabara de ler. Hoje não me lembrava de nada, como é hábito. Da Cónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge, estão publicados, em Portugal, dois volumes. Cada um deles ronda as quinhentas páginas, mas estas são de pequenas dimensões. Parecem livros de bolso, embora com um tamanho de letra decente. Por curiosidade, fui procurar a edição francesa e tive um choque. Os dois volumes publicados em França ultrapassam, cada um, as mil páginas. Procurei, depois, a edição alemã. Também a soma das páginas dos dois volumes ultrapassa as duas mil. Parece que, enquanto português, só tenho direito a uma selecção dos textos originais. Sempre posso comprar a edição francesa, é verdade. No início do segundo volume da edição portuguesa, num texto com cerca de uma página, Kluge, a certa altura, escreve: Um dos castigos de Deus é o do afundamento no terreno da realidade. Há os que perdem todas as ilusões (perda de realidade). E há os que perdem o tempo em que vivem (perda da História). Ambos os casos crescem a olhos vistos. Ora, há muito que eu descobri que tanto a realidade como a História são coisas pouco frequentáveis, ambas umas megeras do pior. Por isso, nada tenho contra cair para fora da realidade e da História. O problema, porém, é que ambas, após cada queda, voltam a entrar pela porta dentro, ainda uma pessoa está na cama envolvida por ligaduras que escondem as terríveis escoriações, pois cair para fora da realidade ou da História é sempre um grande trambolhão. Mesmo os padres do deserto, uma forma antiga de cair fora da realidade e da História, apesar da vida pura de oração e de combate feroz ao demónio, tinham marcas assinaláveis das quedas sofridas. Nunca se cai impunemente.

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Em ordem

Uma garrafa de água, quatro folhas A4 de cartolina preta, duas caixas de óculos, uma coluna redonda, um marcador de livros, uma revista Electra, um telemóvel, uma ficha para ligar cabos USB à rede eléctrica, um monitor, tudo isto para além de um teclado, de um tapete e o respectivo rato. Por outras palavras, a secretária está um caos. Detesto o mundo caótico, pertenço à tribo daqueles que preferem o cosmos ao caos. Consta que será devido à posição dos astros no momento do nascimento. A verdade, porém, é que não faço ideia nenhuma do momento do meu nascimento, quanto mais da posição dos astros nessa hora. Depois de um almoço de sardinhas assadas, a disposição para fazer alguma coisa que me interesse é nula. Resta-me enumerar a desarrumação e pensar que tenho por finalidade, no dia de hoje, pôr a secretária em ordem, o que me levará alguns, poucos, minutos. Ficará como uma casa de um país escandinavo, ou, pelo menos, como a ideia que tenho sobre as casas nesse mundo longínquo. Não há quem não tenha mitologias privadas. Também as possuo. Uma delas é que sou habitado por um gene nórdico. Este manifesta-se, entre outros sinais, pelo conflito com o tempo quente do Sul, um ódio persistente ao Verão, para ser mais exacto. Contudo, há coisas que desmentem essa ideia. Por exemplo, o prazer que certos produtos mediterrânicos me dão. Haverá coisa mais extraordinária do que o vinho e o azeite? Não, não há. Ora, naquelas paragens onde teria habitado, em tempos, esse meu suposto gene, não há possibilidade de fazer azeite, nem sequer vinho, pelo menos com decência. Não passo de um sulista com fantasias nórdicas, que sonha com as paisagens de certos filmes de Ingmar Bergman, como as de Os Morangos Silvestres, obra que já vi não sei quantas vezes, talvez tantas quanto Um Táxi Cor de Malva. Vou entregar-me ao suplício da arrumação.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Uma questão genética

É possível que seja genético. Aliás, não há mal que não seja creditado na conta-corrente dos genes, da herança genética, para ser mais preciso. A situação não deixa de ter a sua curiosidade. A herança social, seja cultural, de status ou económica, tem sempre uma certa possibilidade de reversão. A genética, não. Isso deixa-nos uma certa tranquilidade, pois se os genes são maus, aquele que os recebeu em herança nada fez para os ter. Não somos, por enquanto, responsáveis pelos genes que temos, apenas por aqueles que transmitimos ou pelo facto de os transmitirmos. Tenho o discurso à deriva. Quando escrevi É possível que seja genético, tinha uma certa intenção. Queria sublinhar que todos nos comprazemos, por semelhança genética inerente à espécie, na partilha de certos males. É um modo de combater a solidão. Isto vinha a propósito de um assunto que, entretanto, esqueci. Queria falar sobre ele, mas imagino, agora que ele me abandonou, que não deveria ter qualquer importância, o que faz lembrar a fábula da raposa e das uvas. Esta fazia parte de um livro de leitura da escola primária. Como é possível lembrar-me disso e não daquilo que tinha, há instantes, pensado como motivo deste texto? A versão que li não foi a de Esopo, nem de La Fontaine, mas de Bocage, em verso. Também eu volto o focinho, quando cai alguma parra, pensando que era um bago, o que se desprendia da alta latada. Talvez este texto estudado tão lá atrás tenha contribuído para que um dia me tivesse interessado sobre a distinção entre a aparência e a realidade e como a raposa tenha sempre confundido a primeira com a segunda. Será, também, genético.

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Falta de luz

Tinha por objectivo escrever sobre o facto de não ter objectivos. O problema é que a noite está a cair e perdi a oportunidade de o fazer. Para meditar sobre a vexata quaestio de não ter objectivos é necessário que a luz do sol brilhe. Para quê? Para iluminar a meditação e evitar que me arraste por caminhos tortuosos. Leio ao acaso, num livro que hei-de começar a ler um destes dias: As voltas e reviravoltas dialécticas da Fenomenologia de Hegel constituem sem dúvida uma doutrina esotérica. Também algumas considerações que faço por aqui constituem partes de uma doutrina esotérica, mas que é de tal modo secreta que nem o seu autor, talvez por ser destituído de inclinação dialéctica, a consegue decifrar, apesar de ter sido, noutros tempos, iniciado em diversas dialécticas, entre elas a do senhor Hegel. Há quem ache, porém, que o problema do autor reside no facto de possuir uma mente confusa, uma mente a que falta clareza e distinção, como se pode ver pela proposição tinha por objectivo escrever sobre o facto de não ter objectivos. O livro onde Hegel é trazido à colação tem por título Sinceridade e Autenticidade, de Lionel Trilling, publicado em Portugal pela Imprensa da Universidade de Lisboa, uma editora com um belíssimo catálogo, apesar de relativamente exíguo. O que me levou a comprar o livro foi o índice. Este contém a designação de seis conferência dadas pelo autor em Harvard, no ano lectivo de 1969/1970. Por exemplo, a segunda conferência, ou palestra como é designada, denomina-se “A Alma Honesta e a Consciência Desintegrada”. Agora, é noite escura, altura pouco propícia a meditações luminosas, apesar da opinião contrária de S. João de Ávila.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Livre-arbítrio

Este é o feriado menos visível no conjunto dos dias em que a realidade quotidiana dá lugar a uma outra realidade, onde se distingue a marca da excepcionalidade. Nos dias que correm, a excepcionalidade não provém da sacralidade do dia ou do seu significado cívico, mas do facto prosaico de o tempo ser propriedade da própria pessoa. Nos outros dias, as pessoas alugam o seu a terceiros ou a si próprios, pois possuem corpo e este tem um conjunto de necessidades que exigem o mergulho no tédio da quotidianidade, com a sua procissão de horas de trabalho. Uma das grandes questões da existência é a da negociação que cada um tem de fazer para ser proprietário do seu próprio tempo, para o poder dispor segundo o seu arbítrio. Isto supõem que este, o arbítrio, seja livre. Caso não exista livre-arbítrio, então nada do que foi dito faz sentido. Tudo se inscreve numa cadeia causal e aquilo que acontece a cada um está determinado de tal modo que a sua vontade vale rigorosamente zero. Hoje, no uso do meu livre-arbítrio, fiz um número significativo de pontos cardio. Começo a fazer caminhadas, agora que o pé direito se está a libertar das consequências da intervenção a que foi sujeito. As minhas netas estão a fazer as malas e não tarda vão-se embora. A casa vai ficar mais vazia. Perante o facto, começo a desconfiar da minha crença no livre-arbítrio. Talvez exista uma incompatibilidade entre os diversos livres-arbítrios e será ela que nos dá a ilusão de que o determinismo é verdadeiro. Vale-me ser feriado. Não se perde tudo.

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Sem moralidade

Não sei bem a razão, talvez a fome devido ao atraso do almoço, mas na minha mente, até eu tenho uma, dançou a ideia de falar sobre a teoria do flogisto e os processos de combustão e de calcinação decorrentes da libertação dessa matéria imaterial que seria o flogisto. Apesar do esforço do Georg Ernst Stahl, um médico alemão e também químico, para fortalecer a sua teoria, pois foi ele que a criou, embora não do nada, pois ex nihilo nihil, Antoine de Lavoisier, um francês e químico, mostrou que Stahl vivia num mundo fantasioso e explicou a razão por que as coisas entram em combustão. A vida, contudo, nem sempre é justa para quem se entretém a fazer descobertas acertadas. Consta, pelo menos em certa enciclopédia geral produzida por autores anónimos e benévolos, que o matemático Joseph-Louis de Lagrange disse: Não bastará um século para produzir uma cabeça igual à que se fez cair num segundo. Ora, a cabeça que se fez cair num segundo foi a de Antoine Lavoisier, no dia 8 de Maio de 1974. Vivia-se uma época em que, por França, as cabeças rolavam em quantidade e a grande velocidade. Não consta que Stahl tenha perdido a sua, apesar do erro que ela produzira. Pelo contrário, acabou a vida – talvez na cama – como médico de Frederico I da Prússia. Esta história, apesar da aparência, não contém qualquer moral que se possa extrair para edificar os leitores. É uma descrição de factos e nos factos, por muito que se procure, só existem factos e não ideias morais. Lá dentro qualquer coisa se agita, as adolescentes fazem-se ouvir, talvez tenha chegado a hora de almoço. O que também não contém qualquer moralidade.

domingo, 13 de agosto de 2023

O amor à conspiração

Imagino que todos nós amemos conspirações. Há aqueles que fazem desse amor uma razão de vida. Em tudo vêem conspirações e por detrás destas descobrem agentes obscuros, embora possam ser nomeados, que conjugam uma inteligência diabólica e uma vontade malévola. Não vale a pena dar exemplos. Contudo estes amantes das teorias da conspiração são péssimos na arte de as amar. Um autêntico amante de conspirações, um daqueles que não apenas leu, nas versões aplicadas ao amor do conspirativo, a Arte de Amar, de Ovídio, mas também a Metafísica do Sexo, de Julius Evola, sabe que tudo é conspiração e que essa omni-conspiração se funda na conspiração das conspirações, a conspiração essencial. O modo de vida que agora se leva resulta de uma conspiração contra o modo de vida que se levava na infância. Toda a conspiração – para os amantes autênticos e letrados de conspirações – está assente no objectivo de nos destruir a infância. É evidente que nunca ninguém teve uma infância, pois quando estamos nela não temos consciência de que aquilo é a infância, e quando saímos dela já a perdemos. Então, o organismo, guiado pelo cérebro, põe-se a inventar a infância e, ao mesmo tempo, descobre a terrível conspiração contra essa infância fantasiada, conspiração que visa matar-nos a boa vida e os bons tempos em que éramos infantes. Se se reparar com atenção, todas as teorias da conspiração – tratem elas da terrível conspiração que nos quer fazer crer que os homens foram à Lua ou pretendam alcançar a dominação mundial através da disseminação da ideia de que Terra é redonda ou que houve uma pandemia do COVID-19 – são reconfigurações dessa conspiração contra a infância que cada um inventa. Por isso, estamos constantemente a dizer que eles estão a fazer isto e aquilo. O isto e aquilo não interessa o que seja, o que interessa mesmo é que o eles se refere a esses conspiradores que estão em toda a parte e cuidam não de nós, mas da destruição da nossa infância, isto é, de uma coisa que nunca tivemos.

sábado, 12 de agosto de 2023

Do sublime

Um dos capítulos, pequenos capítulos, diga-se, termina assim: Portanto, é essencial dirigir todos os olhares para essa cena terrível. A questão, porém, é se todos os olhares suportam cenas terríveis. Como se sabe, existem olhares fracos e fortes, olhares impiedosos e olhares grávidos de piedade. Será que todos eles são capazes de enfrentar cenas terríveis? A ideia de quem escreveu a frase é de que os olhares, ao depararem com o terrível da cena, ficariam horrorizados e rejeitariam a peça que ali conduz. Eis um erro de perspectiva. Haveria olhares, talvez mais do que se pensa, que ficariam fascinados pela visão, e o fascínio seria tal que nasceria na vontade de muitos o desejo de repetir, senão mesmo de multiplicar, aquela cena tida como terrível, pois neste reside também o sublime e este, por pavoroso que seja, tem poderes encantatórios sobre as almas, e não apenas sobre as mais fracas. De que estou a falar? Isso é irrelevante e não vem ao caso. O particular é apenas o exemplo de uma lei universal. Pensamentos destes, inúteis e confusos, nascem em certos sábados de Agosto, em que o almoço se prolonga mais do que é devido, onde o passar das horas tem o condão de aniquilar a censura que todos trazemos dentro do coração ou que ostentamos por decoro.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Em quarta mão

Vender produtos em quarta mão. O produto para venda é a ideia de que, em certa altura, no mercado parisiense de Les Halles se produzem mais figuras de estilo num só dia do que em toda a Eneida. Porquê quarta mão? Porque vi a afirmação num artigo de António Guerreiro no Público. Este repetia o gramático Pierre Fontanier (1765-1844), que por sua vez ecoava (sic) o poeta Nicolas Boileau, nascido em 1636. O assunto que motiva o texto de AG não me interessa, mas a frase orienta o olhar para uma realidade diferente daquela que esperamos. Cremos que a linguagem comum seja mais dada à referencialidade directa, menos propensa à equivocidade semântica, enquanto a literária seria um trabalho de jardinagem em que se cultivaria o adorno discursivo através do recurso às figuras de estilo. A realidade poderá ser outra. A linguagem comum – e haverá linguagem mais comum, mais corrente ou vulgar, do que aquela que se usa num mercado? – será um lugar borbulhante de inovações semânticas, uma espécie de fogo-de-artifício contínuo, onde a linguagem se inventa, se cria e recria, além de se recrear, enquanto o trabalho literário é um exercício de contenção desde borbulhar, a troca da exuberância de um vinho espumoso, por um denso e austero tinto, com uma longa vida ainda pela frente. A arte poética não estaria tanto no metaforizar, mas no conter da metáfora dentro de uma frugalidade rigorosa. Com tudo isto quero apenas dizer que produtos em quarta mão podem ajudar muito bem a pensar e que a sabedoria reside na reciclagem e não na produção contínua de desperdício.

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Animação extramusical

Como temia, repetiu-se no concerto de ontem a cena do de domingo. Quem comprou os bilhetes online tinha-os com indicação de lugar, ao contrário de quem os comprou na bilheteira. A organização ainda tentou sentar, no seu lugar, a pessoas com lugares marcados, mas em vão. No meu, estava um senhor que, fui de imediato informado pela funcionária da organização, se recusava sair daquele lugar, aquele era o dele, desse por onde desse. Teria mais uns vinte anos do que eu. Só pedi que nos dessem quatro lugares seguidos e que não fôssemos incomodados pelos detentores daqueles lugares. Uma confusão sem fim, que atrasou o concerto em quase vinte minutos. De vez em quando, o pianista, Artur Pizarro, espreitava, meio divertido, a confusão. Tudo acomodado, a organização pediu desculpa, mais uma vez, mas a responsabilidade era da empresa que vendia os bilhetes online. A tradição ali é não haver lugares marcados, o que dava razão ao senhor que ocupara, de modo selvagem, o lugar que deveria ser o meu. Depois de agradecer o aplauso do público no fim de tocar as peças de Fauré, o pianista informou os presentes de que o cachet para solista era maior que o dos artistas de música de câmara e que ele tinha contas para pagar, precisava de receber como solista. Disse-o em português e em inglês. Depois, pediu para desligarem os telemóveis. Alguém se entreve a receber mensagens enquanto o concerto decorria, num diálogo com a música de Gabriel Fauré. Para além do desempenho de Pizarro, o programa extramusical foi dos mais interessantes a que já assisti e as minhas netas estavam divertidíssimas com a animação ou talvez com a expectativa de irem à feira andar de carros de choque, que nunca se sabe o que vai na cabeça de qualquer adolescente.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Perplexidades

Há um quadro famoso do pintor florentino do século XVII, Lorenzo Lippi, que alimenta inúmeras controvérsias, a começar pelo título da obra, Mulher com Máscara ou Alegoria da Simulação. São múltiplos os ensaios interpretativos, com a exploração da simbólica presente no quadro – a máscara, na mão direita, e a romã, já fendida, na esquerda – e também da figura da jovem mulher. Há duas coisas que me deixam perplexo. Em primeiro lugar, a indecisão sobre a acção representada. A mulher está a tirar ou a pôr a máscara, ou nem uma coisa nem outra, apenas a exibe sem intenção de a utilizar? O mesmo se passa com a romã. Foi acabada de receber ou, pelo contrário, está a ser oferecida, ou é apenas uma exibição do fruto? A segunda perplexidade deve-se ao estranho afastamento entre os dedos anelar e médio da mão direita, a que segura a máscara. Olha-se e fica-se com a sensação de que ali caberia outro dedo ou que falta um dedo entre aqueles dois. Estas duas perplexidades parecem-me ser a porta que fecha para sempre o mistério do quadro, o que tem um efeito interessante. Quebra a tentação narrativa, a ideia de contar uma história interpretativa da obra, obrigando à suspensão do discurso para dar lugar à pura contemplação da obra. Agora, depois deste discurso contra o discurso, vou recolher-me para tomar uma decisão. Será que devo tomá-la fazendo o caminho da deliberação, o raciocínio prático do velho Aristóteles, ou suspendo o discurso e deixo que uma intuição me ilumine na decisão a tomar? Não se pense que é uma coisa importante, apenas se devo ou não comprar um certo produto. Se a deliberação estiver errada ou a intuição me iluminar mal, não perderei grande coisa.

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Por uma Teologia científica

Não admira que a Teologia seja, nos tempos que correm, uma área científica menosprezada. A culpa, ao contrário do que pensam mentes pouco iluminadas – seja pelo espírito das Luzes, seja pelo Espírito Santo, seja pela luz eléctrica – não está no êxito transbordante das chamadas ciências empírico-analíticas, que com o seu sucesso permitem conhecer a realidade e encher o mundo de dispositivos que servem para tudo e mais alguma coisa, inclusive para dar cabo do mundo. A culpa desse longo ocaso da Teologia reside no pouco interesse, ou mesmo nulo, que os teólogos profissionais votam aos problemas teológicos verdadeiramente pregnantes. Por exemplo: que distância vai do vestíbulo do inferno à antecâmara do paraíso? Se os teólogos se interessassem pelo problema, diriam, por certo e dentro da sua previsibilidade, que sendo o inferno e o paraíso, a priori, locais incomensuráveis, a distância entre ambos é infinita. Não precisamos de recorrer à experiência para saber uma coisa que até a razão natural sabe. Embora não sendo teólogo, posso dar um contributo para uma Teologia científica, matematicamente fundamentada e que coloque os teólogos no devido lugar. A distância entre o vestíbulo infernal e a antecâmara do céu é de dezassete graus celsius, medida hoje entre dois locais onde estive. Num, por acaso o sítio onde entretenho a minha existência, estavam 41o. No outro, aquele onde me refugio do bafo atenazador dos diabos, o termómetro marcava 24o, por certo a temperatura do Éden quando o Senhor Deus dava por lá os seus divinos passeios e Adão e Eva se escondiam, já encalorados, sabe lá bem porquê. Como se demonstra aqui, não apenas a Física pode ser matematizada, mas a própria Teologia se deve constitui como uma Teologia matemática. Prova-se assim que a distância entre o inferno e o paraíso é uma distância térmica, mensurável por qualquer aluno do ensino básico. Fica aqui o meu contributo para o desenvolvimento da ciência. Amanhã, caso me lembre, irei reflectir, no campo da linguística, sobre o estranho caso da palavra pregnante. Sou um poço de sabedoria, onde me afundo a toda a hora.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Com e sem lugar marcado

Comprar livros em segunda mão online não tem só vantagens. Também há inconvenientes. Tive em tempos, embora nunca tenha chegado a ler, um romance de Julien Green denominado Moïra. O que lhe aconteceu, não sei. Decidi comprar outro exemplar num alfarrabista que vende em plataformas tipo olx. O livro veio em bom estado. O único problema é que o antigo proprietário deveria ter uma fixação na sua rubrica. Muitas páginas – quase metade, por certo – está rubricada. Gostava de perceber o que terá passado pelo cabeça da pessoa que decidiu, por amor à propriedade, afirmar a posse daquela maneira exuberante. O cuidado foi inútil, pois o livro voltou para o mercado e aquela assinatura já não serve para nada, a não ser para estragar o livro. Ontem, com as minhas netas, fui ver um concerto com o pianista japonês Jun Kanno. Mozart, Chopin e Debussy. Uma viagem do classicismo ao impressionismo, com passagem pelo romantismo, embora nada disso tenha uma grande importância. Elas, as minhas netas, aproveitam estas ocasiões para fazerem, com os avós, um programa complementar ao agrado delas. O pior do concerto foi o facto de o público estar dividido em duas facções. Os que compraram bilhete na bilheteira e os que compraram online. Os primeiros não tinham lugar atribuído. Os segundos, pelo contrário, traziam inscritos nos bilhetes o lugar que lhes competia. A interpretação da organização era de que não havia lugares marcados, o que gerou uma bela confusão na sala. As coisas lá se compuseram sem grandes atritos, o pianista entrou na sala e a confusão desapareceu. Foi uma experiência nova e interessante. Estou expectante com o que vai acontecer no concerto de quarta-feira.

domingo, 6 de agosto de 2023

A nódoa

A única vez que falei aqui do assunto, um dos mais fundamentais na existência da humanidade, foi a 1 de Setembro de 2019. Isso, devido àquela história da pandemia, significa que foi noutra era. Sobre ele, o assunto, há várias teses, embora não tenha a certeza de que sejam incompatíveis entre si. Existem teses negativas e teses afirmativas. Um exemplo de uma tese negativa diz-nos que as mulheres, às refeições, nunca põem uma nódoa na roupa que trazem vestida. Talvez existam alguns casos esporádicos, o que mostraria a tese como falsa, mas há outra possibilidade para interpretar esses escassos eventos. Nesses fortuitos encontros entre a nódoa e a roupa feminina, a mulher não estava a ser mulher, mas sofria de um súbito toque viril e, nesse instante, estava possessa por uma substância que lhe é estranha. Portanto, acontecimento raro e que não refuta a tese. As teses afirmativas dizem respeito aos homens ou a algum em particular, neste caso eu. No campo das teses gerais, há uma que diz que a propensão a pôr nódoas na camisa é inerente ao cromossoma sexual ípsilon. É uma tese respeitável, corroborada por muita gente. A tese particular, a que me diz respeito, sublinha que sou um praticante desastrado e desatento da arte de comer sem se sujar. Por vezes, são retirados corolários que põem em evidência o meu desacerto com a realidade. É possível que seja assim, mas há coisas que têm uma atracção fatal por mim. Melgas, moscas e nódoas. Deixemos os insectos para outra ocasião. Como se sabe, a nódoa é um ser parasitário. Sem um hospedeiro, não existe. Quando uma nódoa ainda não o é, mas existe já em projecto, observa os circunstantes à mesa e, por norma, escolhe a roupa que eu trago vestida. Posso aceitar que todos os homens sejam potencialmente hospedeiros, mas faço-o contrariado. Quero pensar que elas, as nódoas, têm uma terna inclinação por mim e me escolhem para virem ao ser, tornando o mundo mais rico e variado.

sábado, 5 de agosto de 2023

Expulsão do paraíso

Em tempo de férias, tiro o relógio e esqueço o calendário. A desmemoriação, porém, não é tarefa fácil. Não faltam por aí relógios a debitar as horas e não é empreitada simples esquecer a sequência dos dias da semana. Não tenho a certeza, mas penso que foi no primeiro dia da escola primária que o tempo entrou na minha vida. Até aí, não havia dias úteis e dias inúteis, não havia horas ou minutos, apenas a regulação maternal das horas de dormir e de estar acordado, ou os tempos das refeições. Não me consigo recordar, mas imagino que não separaria as manhãs das tardes, apenas o dia e a noite se mostravam no seu antagonismo. Dos primeiros dias dos anos lectivos que vivi, e não foram poucos, só me lembro do primeiro, de ser acompanhado à escola pela minha mãe e de lá haver uma turbamulta azougada. Não percebi que, nesse instante, eu era um pobre Adão a ser expulso do paraíso, cujas portas foram irremediavelmente fechadas. O facto de não perceber não significa que o ferrete não se tenha inscrito duradouramente em mim, de tal modo que estou agora, passadas tantas décadas, a falar dele, num tributo ao princípio e irresponsabilidade que toda a infância significa. Pior do que eu, está o meu neto. Ainda antes de entrar na escola, já se encontra na escola travestida de pré-escola, o que significa que o progresso educacional da humanidade é feito à custa de uma expulsão do paraíso sempre mais precoce, como se se cometesse o pecado original cada vez com menos idade.

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Contra a abdução

Poderia recorrer à abdução, a um argumento a favor da melhor explicação. Contudo, acho a melhor explicação destituída de espírito. Oiço – e não estou com alucinações auditivas, embora não o possa provar – o ruído insuportável de um aspirador. Como poderia justificar a tese de que o aspirador é ruidoso? A melhor explicação seria que a mecânica do aspirador não é suficientemente sofisticada para o tornar silencioso. Isto, porém, é justificação que se dê? Claro que não. O aspirador é ruidoso por dois motivos. O primeiro é que faz parte activa e consciente de uma conspiração contra o meu estado de descanso contemplativo. Não existisse uma conspiração contra mim e o aspirador seria uma das máquinas mais silenciosas ao cimo deste pobre planeta. Uma segunda razão, talvez tão fundamentada quanto a primeira, diz-nos que caso o aspirador fosse silencioso, este narrador não teria o que escrever. Eu sei que os lógico-dependentes acharão as minhas razões estapafúrdias, pouco plausíveis, como eles logo afirmariam. Contrariam o natural bom-senso e o argumentário a favor da melhor explicação, uma estratégia lógica com a finalidade de fazer prevalecer o bom-senso sobre a falta de senso. Ora, o que é o mundo e a vida mundana senão falta de senso. A minha tese é que se tudo se regesse pelo bom-senso, o mundo não existiria, implodiria devido à pasmaceira universal instalada. Não há como uma citação apócrifa para demonstrar a minha razão. Apesar de não ter sido proferida por Tertuliano, apesar da absurda e contumaz insistência, a proposição Credo quia absurdum (Creio porque é absurdo) é um fundamento indestrutível da minha crença de que a falta de senso é superior ao bom-senso. Enquanto se mantiver a conspiração contra o meu estado de descanso contemplativo e eu não encontrar motivo para escrever, os aspiradores continuarão apostados – sim, eles têm vontade própria – em escolher das ondas sonoras aquelas mais desprezíveis e mais malévolas do que a Rainha da Noite. Por mim, tenho encontro marcado com a Rainha de Copas, que me convocou. Seria falta de senso não respeitar uma convocação de Sua Alteza.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Ver o Papa

Ontem acabei a postagem com a referência à visão – literal – das minhas netas da pessoa do Papa. Só mais tarde recebi a notícia de que o meu neto também viu sua Santidade. Imagino que ele, a caminho dos cinco anos, não faça a mínima ideia de quem seja o Papa. O primeiro Papa de que me lembro foi de João XIII. Não propriamente dele, mas da sua morte, portanto já não era ele. Era coisa que os noticiários não calavam. Nunca esqueci esse facto, mas era mais velho que o meu neto é agora. Ele irá esquecer o acontecimento. Constou-me que Lisboa está uma animação. Francisco parece-me um desafiador de dragões, mas não estou certo de que seja um S. Jorge, apesar do nome civil. Os dragões são uns finórios dissimulados e fingem que as estocadas que caem sobre o seu corpo escamoso nada têm a ver com eles, convencidos de que possuem um poder de regeneração mais forte do que a ousadia daquele que conspira para os liquidar. Esperam que o Papa se torne, como este narrador, num cavaleiro da triste figura, um D. Quixote de que se rirão. Longe da capital, entrego-me à difícil tarefa de nada fazer. É preciso ser claro. Não me devoto ao lazer, nem ao ócio, tão pouco à preguiça ou sequer sofro de acédia. Obrigo-me à suspensão de fazer seja o que for. Nem praxis, nem poeisis. Isto é, nem me entrego a pôr em prática uma teoria ou ideia, nem a dar origem a qualquer coisa que antes não existia. Poder-se-á discutir qual dos vocábulos gregos - πρᾶξις ou ποίησις – é esteticamente mais agradável à vista. Por mim, prefiro a contenção da ποίησις. O ξ dá à πρᾶξις uma exuberância desnecessária. Imagino que o Csi (ξ) seja uma espécie de antena, talvez um antepassado do Bluetooth, que liga a teoria que está na mente à vontade que impele a materialidade do corpo a fazer qualquer coisa, que, por norma, não devia ser feita. Portanto, uma transferência de dados, o que me parece ultrapassar o decoro com que nos devemos pautar, pelo menos nos dias de Agosto, ainda mais quando somos visitados por um Papa que combate dragões. Mais logo, terei de fazer uma ronda pelos netos, para saber qual deles viu hoje o Papa. Talvez isto seja já um pecado contra a minha decisão de nada fazer. Por certo, se confessado, será perdoado.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Vida quotidiana

Por aqui, o Sol ainda não deu um ar da sua graça, remetido para lá da muralha de nuvens. Estas deixam coar uma luz esbranquiçada e indecisa, que o vento faz rodopiar, antes de a levar para outras paragens. Parece que há, no que escrevi, uma incongruência. Que eu saiba, o vento, com o seu passo arrastado, mesmo se sopra a muitos quilómetros por hora, não tem o condão de arrastar consigo as ondas-corpúsculos que constituem a luz. Ora, se eu escrevesse apenas coisas com congruência, o mais certo seria não escrever nada. O que me impede de imaginar os fotões a serem empurrados pelo vento? Hoje, após quase um mês calcei sapatos, sapatos a sério e fui com eles ver o mar. Estava orgulhoso de ter os pés calçados como deve ser e ser levado por eles desde o carro até à esplanada, como se tudo tivesse voltado à normalidade, o que é quase verdade. Durante a estadia na esplanada, chegou um grupo de jovens casais espanhóis, carregados com filhos pequenos. Elas foram tirar uma fotografia num barco que faz parte da decoração do estabelecimento, enquanto eles tomavam conta da criançada e lhe aprontavam a comida. Falavam num castelhano sem exuberância e apenas uma criança, ainda no carro de bebé, chorou. Depois, acabaram por se ir sentar fora do alcance da vista e fiquei sem história para contar. Tenho de suspender estas idas à esplanada, pois caio sempre na tentação de comer um pastel de nata, coisa que, com a minha idade, seria de bom tom evitar. Por volta do meio-dia, no retorno da tal malfada esplanada, as minhas netas ligaram. A mais nova estava eufórica, pois quando caminhavam não sei bem para onde, viram o Papa. Gritaram, elas e as amigas, e ele voltou-se para elas, certamente para perceber que barulho seria aquele. Um acontecimento, para contarem aos netos. Tenho de diminuir a verborreia.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Para canto

Fiz uma nova viagem de uma centena de quilómetros, mas agora a conduzir. Ao aproximar-me do destino, constatei a realidade do ditado da zona Oeste: Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Apanhei chuva na estrada, e à chegada esperava-me um céu cinzento carregado, embora sem chuva. A manhã correu-me bem. Só esperei cerca de vinte minutos pela consulta com o cirurgião. Quando entrei, abriu-se num sorriso. Já saiu o resultado da anatomia patológica, está tudo bem, anunciou. Com estas coisas, acrescentou, nunca se sabe. Eu não lhe disse que sabia que nunca se sabia, sabia-o até por deformação formativa, o que parece uma contradição. Aliás, tinha já notado, nas duas consultas anteriores, alguma ansiedade dele em relação ao resultado das análises dos materiais recolhidos. Respondi apenas que a espera pelos resultados é como a angústia do guarda-redes antes do penalty. Ficou suspenso, depois disse: bom, essa espera é menor. Anuí. Ele ficou a pensar que sou um maluquinho da bola e eu fiquei a saber que ele não faz a mínima ideia de quem é Peter Handke ou Wim Wenders, ou a relação deles com a marca da grande penalidade. Isso, porém, não interessa. É um rapaz mais novo que os meus filhos, bem-disposto e que até acabou por me fazer o curativo no pé para me orientar o tratamento nos próximos dias. Eu, com as minhas referências pseudo-eruditas, é que pertenço a um mundo muito mais antigo e decadente, um mundo sem futuro, enquanto ele ainda tem um futuro diante de si. Quando saí do consultório, respirei fundo, embora não tenha sido o único. Esta foi desviada para canto, pensei.

domingo, 30 de julho de 2023

Ter

Um domingo de Verão é sempre uma tarefa difícil. Depois de almoço, tomado pela preguiça, adormeci. Se sonhei, não dei por isso, como é habitual, mas talvez o meu psiquismo seja dotado de um princípio de realidade que se impede a si próprio qualquer devaneio. Outra possibilidade é que a instância censuradora seja de tal modo poderosa que elimina o vestígio das coisas que fantasio ao dormir. Não tarda, terei de fazer uma viagem de uma centena de quilómetros. Ainda não conduzo, vou sentado ao lado, contemplando a estrada e os campos que a estrada atravessa. Não são verdes. Ressequidos, terão cor de palha. Tenho de me preparar e tenho pouco a dizer. É estranho o verbo ter, mas não tenho paciência para pensar sobre a sua estranheza, a sua inquietante estranheza.

sábado, 29 de julho de 2023

Mais livros da minha vida

Como estou sem assunto – coisa, aliás, recorrente – e como não me apetece falar do clima, retorno a um assunto abordado no outro dia, os livros da minha vida. A certa altura, os livros de aventuras no longínquo oeste norte-americano foram substituídos pelas aventuras da Enid Blyton. Talvez exista aqui uma imprecisão. É possível, muito possível, que tenham sido coevos. Contudo, não é essa fileira que me interessa aqui, mas uma outra que me acompanhou mais tempo, mesmo quando já lia coisas sérias, muito sérias, e pensava que era existencialista e que o absurdo dominava o mundo. Imagino que isso seria para fazer número. Essa fileira é a do romance policial. Contudo, não admirei apenas as forças do bem, os Holmes, os Poirot, as Marple, os Mason, os Wolfe, os Maigret. Todos estes tinham um génio orientado para tornar manifesto os maus que praticavam o mal. Confesso que gostava imenso do gentleman gatuno Arsène Lupin e do sociopata, mestre em disfarces, Fantômas. Apesar das horas passadas na sua companhia, nunca me senti impelido para os imitar. O mal que eles praticavam nunca me pareceu o bem. Há relativamente pouco tempo comprei e li dois ou três romances de Arsène Lupin, mas não tiveram qualquer impacto sobre mim, nem negativo, nem positivo. A certa altura da minha existência, ainda com relativa pouca idade, li algumas obras de Hermann Hesse. Na altura, fiquei fascinado, mas por volta dos trinta anos, quando tentei lê-los de novo, senti uma enorme estranheza por aquela literatura e perguntei-me como tinha conseguido ler aquilo. Talvez me devesse perguntar outra coisa: como consegui ser aquilo que era para gostar de ler aquilo. Contudo, essa pergunta poderia levar-me a um trabalho excessivo para encontrar uma resposta e fiquei pela primeira. Diante de mim tenho um romance de Maurice Leblanc, Arsène Lupin Joga e Perde. Será que o vou ler?

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Mistérios

Há mistérios indecifráveis. Não me refiro, claro, aos segredos que o Pentágono ocultará de naves e restos biológicos alienígenas, coisa que não terá qualquer mistério. Há pouco, ao abrir um livro, deparei-me com um bilhete de entrada numa casa-museu existente no Ribatejo, antiga propriedade de um importante republicano, filho de um acérrimo monárquico, coisa que acontece muitas vezes. É um bilhete curioso, pois tem o preço de entrada em escudos e em euros, o que me leva a presumir que terei feito a vista nesse tempo em que ainda não nos tínhamos esquecido dos escudos, mas que já só circulavam os euros, o que está de acordo com a minha memória. O mistério está nos números escritos a lápis no verso do bilhete. Reproduzo: 284-355; 357-385; 243-255; 125-153. Descobri que indicavam excertos específicos do livro. Até aqui não há mistério. Este surge quando considero aquela caligrafia. Aqueles números não foram escritos por mim. Ora, o livro em causa não foi adquirido em segunda mão e não me lembro de alguma vez o ter emprestado a alguém, até porque quem poderia interessar-se por ele também o terá. Quem terá escrito aqueles números? A caligrafia é marcadamente feminina, mas não conheço ninguém do sexo feminino que se interesse por aqueles temas, e as mulheres que se interessam por ele não me conhecem e, por isso, não me poderiam ter dado sugestões de leitura. Restam-me hipóteses metafísicas. Por exemplo, alguma mulher me enviou uma mensagem codificada, que eu terei guardado no livro, mas cujo código de decifração esqueci, assim como o envio da mensagem e a própria mulher. Outra hipótese é a da existência de anjos do sexo feminino. Uma delas, querendo que eu lesse aquelas páginas deixou-me a mensagem no interior do livro. Parece-me uma hipótese bastante plausível. Não consigo, porém, perceber qual o interesse desse anjo feminino em orientar-me na leitura de coisas tão terrestres. Vou ler aquelas páginas e talvez descubra a razão de a mensageira me ter deixado tal mensagem. Talvez o mistério não seja indecifrável, embora, lamentavelmente, eu não seja um Sherlock Holmes.

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Falta de asas

Por aqui está um tempo estupendo. O céu coberto de nuvens, um ar fresco, mas não gélido, mesmo o vento quase frio sopra com sensatez. Nem sequer chove. Para um dia de Dezembro está mesmo muito bom. A perfeição não é coisa que faça parte da minha natureza, por isso sou inclinado ao egoísmo. Eu sei que os veraneantes se sentem deprimidos, alegam faltar-lhes sol, para que possam mergulhar no oceano e depois deitar-se na areia, mas com tantos lugares para uma pessoa se deitar, por que razão terá de ser na areia? Eu sou um banhista não praticante. Creio firmemente que a água do mar faz muito bem, que o iodo faz ainda melhor, mas a fé não me leva a pôr um pé na praia. Este ano estou ainda mais limitado, pois suspendi as longas caminhadas junto ao mar. Um défice na acumulação de pontos cardio que se aproxima da dívida pública. O pé, o meu pobre pé direito, continua em convalescença, com visitas semanais ao cirurgião e, com mais assiduidade, às salas de enfermagem, onde é submetido a esmerada atenção e a comentários que vou registando. Pois, dizem, é um sítio difícil, logo aí, ah, pois, de novo, vai demorar tempo a cicatrizar. Olhe, abriu um pouco. Olho, mas não vejo nada. Eu digo que sim e oiço: o melhor é evitar andar. Dá-me vontade de perguntar se tenho de voar, mas contenho-me. Esqueci-me de trazer as asas e se me dissessem para voar, sentir-me-ia vexado por não ter como fazê-lo. A memória já teve melhores dias, como é possível esquecer as asas em casa? Porque está um excelente dia de Inverno, vou almoçar na rua, sob um telheiro. Se chover, estarei protegido.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Os livros da minha vida

Os livros da minha vida. Esta frase esconde uma enorme presunção, a de que a minha vida tem alguma importância para nomear os livros que fizeram parte dela. Apesar disso, hoje dedico este episódio, pois estes textos não são mais do que episódios de uma história sem nexo e mal contada, aos livros da minha vida. São livros singelos, obras cujos autores desconheço, mas que me ocuparam longas tardes de Verão. As aventuras de Texas Jack, na revista Mundo de Aventuras, ou do Major Alvega, na revista O Falcão, as histórias que eram contadas no Condor ou no Ciclone, e aqueles romances do Oeste das colecções 6 Balas, Cow Boy, Gatilho e Fúria de Bravos. Estas colecções, ao contrário das referidas antes, revistas de banda desenhada, eram compostas por livros com dimensões minúsculas (8,5 cm x 12,5 cm) e letra que, nos dias de hoje, me seria indecifrável, mesmo com óculos. Tinham 64 páginas e seis delas eram preenchidas com desenhos alusivos à narrativa. Foram estes livros que me fizeram gostar de literatura. Talvez me tenham influenciado mais do que aquilo que eu imagino. A histórias, tanto quanto me recordo, tinham dois pólos. Um primeiro, em que uma injustiça introduzia a desordem numa comunidade, e um segundo, no qual o herói, um herói singular, restabelece a ordem e faz triunfar a justiça. Estes são os livros da minha vida, pois são os alicerces sobre os quais fui construindo outras leituras.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Mesmerização

Um azul cintilante brilhava para os meus olhos. A pequena ondulação abria nas águas rasgões por onde emergia um sangue branco e espumoso, que logo desaparecia. Não se avistavam barcos. Algumas pessoas, empequenecidas pela distância, entravam no mar na orla das praias. Não se ouvia os gritos dos veraneantes nem o rosnar estrepitoso das gaivotas. Vista da esplanada, a baía apresentava-se como uma realidade fantasiosa, a produção de um génio benigno. Não sei quantos minutos me absorvi na contemplação do quadro, até que uma notificação do telemóvel me trouxe para a realidade. O café esfriara e reparei que à minha volta havia pessoas, todas elas, pensei, mesmerizadas pela mesma paisagem. Talvez já ninguém use mesmerizar para falar de fenómenos de fascinação, mas haverá ainda quem dê crédito ao médico alemão Franz Anton Mesmer, morto há mais de 200 anos, e à sua teoria do magnetismo animal. Esta ideia de magnetismo animal, agora transformada em energia universal e com certo cariz sexual, ou pan-sexual, foi retomada, já no século XX por um dos ídolos da juventude contestatária dos anos sessenta e setenta do século passado, Wilhelm Reich, através da teoria do orgone. Este seria uma substância destituída de massa, presente em todo o lado, uma espécie de energia vital. Tanto quanto me lembro, pois entre as coisas sem sentido que li, os livros de Reich foram uma delas, o discípulo desavindo de Freud criou um dispositivo para acumular o orgone. Serviria para curar tudo e mais alguma coisa. Seja como for, apesar da perda de tempo da leitura, o orgone nunca me mesmerizou. Talvez por não ter magnetismo animal, coisa que poderia existir, esta manhã, na baía que me fez deixar arrefecer o café.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Lentidão

Um dia sem história, nenhuma acção valorosa para acrescentar à gesta que vou narrando. Nem todos os dias há oportunidade para se ser um Cid Campeador, ou, em caso de desespero, um Quixote ribatejano, pois isto do Ribatejo não é menos povoado de gigantes e outros seres maléficos do que as terras manchegas. A verdade é que não me faltou, neste dia, viagem por esse Ribatejo lezirioso, embora não me tenha abeirado do Vale de Santarém e, por isso, não me tenha deparado com a Joaninha e os seus olhos verdes. Sei, a fonte é segura, que seriam esses olhos que Camões cantou uns séculos antes de eles terem visto a luz nesta terra. Como se sabe, Camões, para além do dom poético, tinha também o de perscrutador de futuros. Ele pôs-se a perscrutar, a perscrutar, e zás: Verdes são os campos / De cor de limão: / Assim são os olhos / Do meu coração. Eram os olhos da Joaninha que, vindos do futuro, ofuscaram com a sua verdura o coração do poeta, que, ao que consta, se ofuscava com facilidade. Estou a desviar-me do assunto, a minha gesta gloriosa. Repito, nenhuma acção para me ilustrar. Se tivesse chegado ao Vale de Santarém, talvez ainda fosse a tempo de tomar parte na peleja entre liberais e miguelistas, uma peleja que começou no século XIX e ainda não acabou. Talvez, num dia destes, ainda vá a tempo de participar nela. Em Portugal, tudo é, felizmente, muito lento, e eu aprecio cada vez mais a lentidão.

domingo, 23 de julho de 2023

Uma força do Passado

Domingo de Verão. Um acaso – mas haverá acasos? – conduziu-me a um belíssimo poema de Pier Paolo Pasolini. No Youtube, oiço o poema na voz do poeta, mas a experiência é desagradável. Prefiro ser eu a soletrá-lo a meia-voz, num italiano que não sei vocalizar. O poema começa assim Io sono una forza del Passato. / Solo nella tradizione è il mio amore (Eu sou uma força do Passado / Só na tradição está o meu amor). O poema acaba por ser uma elegia por essa tradição, o que se manifesta logo no segundo verso. Só se ama aquilo que não se é. Ama-se a tradição porque já se está fora dela, ama-se uma reminiscência. Os três últimos versos confirmam o diagnóstico: E io, feto adulto, mi aggiro / più moderno di ogni moderno / a cercare fratelli che non sono più (E eu, feto adulto, vagueio / mais moderno que qualquer moderno / em busca de irmãos que já não existem). Há um terrível julgamento sobre a condição de ser moderno. Ser um feto adulto, isto é, ser alguém que envelheceu sem ultrapassar a condição fetal, alguém que continua como uma potência que nunca se consuma num acto, que nunca chega a ser um homem. Eu sou uma potência do passado, mas que nunca chego a ser aquilo que essa potência traz em si. Talvez os domingos de Verão sejam também eles uma potência que é incapaz de se tornar um acto, pois também eu trago comigo esse amor por uma tradição composta por inúmeros domingos estivais que desapareceram para sempre.

sábado, 22 de julho de 2023

Um ateísmo contumaz

Por aqui, Deo gratias, está uma manhã sombria. O Sol escondeu-se atrás das nuvens e, enquanto oiço murmurações contra a gestão do clima por estes lados, rejubilo. Talvez isto seja vergonhoso, talvez me falte empatia pelos seres adoradores de areia e sol, talvez seja um egoísta refastelado numa cadeira. A situação, porém, não será particularmente dramática. Os raios solares romperão a cortina nebulosa, os adeptos das orlas marítimas terão oportunidade de ir molhar o pé e eu estarei resguardado desse culto pagão. Por aqui, há um velho ditado que enuncia, sem pudor, primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Há na máxima acentuado exagero, mas terá alguma verdade. Talvez não se trate de uma máxima, mas de uma caricatura oral, com tudo o que as caricaturas têm de hiperbólico. As minhas netas estão por cá, o meu neto não tardará. Também não faltam cães, mas com esses a minha relação é de respeitosa distância, embora um ou outro insista em ser meu amigo. Explico-lhe que não fomos feitos para a amizade, mas eles não se comovem com a minha racionalidade e continuam a tentar estabelecer contacto. Uma vez por outra, cedo, mas não faço parte dos cultores dos animais de estimação. Nada tenho contra eles, claro, mas que sejam outros a praticarem a religião. Neste caso, sou ateu. Aliás, depois de a religião tradicional ter sido vítima da rasura dos costumes, surgiu um número incalculável de deuses, todos a exigirem fé inabalável e ritos abstrusos. Tento manter, perante todos eles, um ateísmo contumaz. Agora, alguém chama pelo meu nome. Posso fingir que não oiço, mas o mais sensato será ir ver o que se passa.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Suportar-se

Há três dia junto ao mar e só hoje olhei bem para ele. Continuo de pé entrapado, embora já tenha substituído a cadeira de rodas pelas canadianas, com as quais fiz um pacto de não agressão. O mar estava ao fundo e este narrador permanecia longe da areia. Há muitos anos que a minha relação com o oceano se tornou meramente contemplativa. Nada de aventuras, quero dizer mergulhos e banhos, essas coisas que fazem os banhistas. Este ano está-me interdito um dos prazeres da época balnear, as longas caminhadas com as águas à vista. Troquei-as, como se pode depreender do que foi escrito ontem, por sestas em frente ao computador ou sentado numa cadeira com um livro entre mãos. Esta afirmação é quase falsa. Entre mãos não tenho um livro, se por isso se pensa um objecto de papel com capas e folhas. Tenho um dispositivo electrónico, onde existem muitos livros que não são livros, mas simulacros de livros que se deixam de ler como tal. Prefiro os simulacros aos livros. Posso negociar com eles o tamanho da letra e nunca são pesados. Depois, se me apetecer sublinhar alguma coisa ou fazer uma anotação, nada disso perturbará a imaculada pureza da obra, pois não tem a irreversibilidade das anotações no papel, mesmo que sejam feitas a lápis. Eu sei que muita gente reprovará o meu gosto, mas eu não tenho nenhum fetiche com o cheiro do papel ou com a sensação táctil que certas capas proporcionam. Eu sei que é defeito meu, mas cada um tem de suportar não apenas as suas virtudes, caso tenha alguma, como os seus vícios e defeitos.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Procrastinar

Depois de almoço, tendo-me sentado em frente ao computador para levar a cabo algumas tarefas, o corpo foi bem mais sensato e decretou que deveria cabecear e dormir, num equilíbrio instável. É uma decisão arriscada, a do corpo, pois pode ter como consequência ganhar uma desagradável dor no pescoço, o que não veio a acontecer. Agora, desperto e com energia renovada, tomo a feliz decisão de procrastinar e deixar para amanhã o que posso fazer hoje. Num dos meus livros de leitura da escola primária, talvez da terceira classe, havia um texto em que um camponês foi pedir um conselho a um advogado famoso. Este respondeu: não deixes para amanhã, o que podes fazer hoje. Durante décadas pensei que o conselho era uma criação do autor do texto ou a referência a alguma máxima da sabedoria popular. Mais tarde, bem mais tarde, vi que era atribuída a um tal Ralph Maxwell Lewis. É assim que a internet destrói o encantamento do mundo. Consta que o tal Lewis foi um importante Rosa-Cruz, nascido em 1904, embora não imagine o que seja um Rosa-Cruz. Uma coisa é certa, o senhor era um inimigo dos procrastinadores, pois não contente com o não deixes para amanhã, o que podes fazer hoje, ainda lhe acrescentou o não deixes para a tarde, o que podes fazer pela manhã. Talvez um Rosa-Cruz seja, por natureza e destino, workaholic, sempre a correr para cumprir tarefas, evitando adiamentos e ultrapassagens de prazos e essas coisas que um europeu do Sul reconhece como a essência da sua cultura. Portanto, insisto na procrastinação. Amanhã, logo se verá.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Metafísica

Acabei de descobrir mais um livro repetido. Esta repetição, porém, não é recente. Os dois irmãos gémeos jaziam lado a lado na prateleira de uma estante. É um livro que utilizei em tempos, mas se me perguntassem se eu o tinha, a resposta seria não. A relação dos seres humanos com a realidade é sempre de desconcerto, mas este vai crescendo conforme os anos se vão somando. Para não pensar nestas coisas, ontem e hoje, tenho passado algum tempo a ver o Tour de France. Não que o ciclismo me interesse. As filmagens paisagísticas são sempre excelentes e aquele esforço de subir e descer montanhas quase me faz lembrar Sísifo. Não é que os homens da bicicleta não a consigam fazer rolar até ao cume dos montes. Conseguem, mas logo têm de descer até ao sopé para muitas vezes voltar a subir até a um outro cume. Não é uma pena eterna, pois nada nesta terra é eterno, mas a mim parece-me um arremedo de eternidade. Esta coisa de falar de Sísifo parece ser um truque para dar um ar erudito ao escrito, uma tonalidade metafísica ao pedalar terra fora. Ora, quem prestar alguma atenção aos comentários desportivos, descobre que cada modalidade contém em si uma metafísica, a do ciclismo será a metafísica da roda pedaleira. Imagino.

terça-feira, 18 de julho de 2023

Opiniões

Até certa altura da existência, uma pessoa espanta-se por haver opiniões diversas das suas. Depois, espanta-se pelo facto de existirem, sobre o mesmo assunto, diversas opiniões verosímeis. Por fim, espanta-se por existirem opiniões sobre seja o que for. Como é possível que um ser finito e limitado tenha a ousadia de ter opinião? Não faço ideia o que me terá dado para escrever o que escrevi acima. Ou talvez saiba. Não foram as abstrusas opiniões alheias que se encontram espalhadas por todo o lado, foi o cansaço com as minhas próprias opiniões. As pessoas gostam muito das suas opiniões. O melhor seria que tivessem vergonha delas e as guardassem dentro de si. Para começar, pode-se fazer uma dieta de opiniões. Por exemplo, evitar ter mais do que uma opinião por hora. O ideal regulador seria chegar à perfeição e não ter opinião sobre nada. As acácias que vejo daqui não têm qualquer opinião, mas são belas, dão sombra e oferecem o tronco a algum cão que necessite de alçar a perna.

domingo, 16 de julho de 2023

Via crucis

Um carro ronca no vazio da tarde. O condutor, por certo um homem, confunde-se com o vazio das ruas e pensa que está no circuito de La Sarthe, onde se correm as 24 Horas de Le Mans, e não numa pacata cidade de província, onde as pessoas, nos domingos do Estio, almoçam tarde e ficam por casa à espera que a soalheira passe. Há um problema qualquer com o QI dos portugueses, que se manifesta mais acentuadamente quando têm um carro nas mãos. Nunca deixa de me espantar a Electra, a revista cultural da Fundação EDP. São 250 páginas de grande qualidade. Desde o papel, aos artigos, passando pela reprodução de fotografias e de pintura. O mais impressionante é o preço, nove euros por número. A assinatura fica por vinte e sete euros/ano, quatro números. A do Verão de 2023 traz algumas reproduções de quadros do pintor suíço Felix Valloton, de que gosto bastante. Traz artigos sobre o wokismo e ócio e lazer, assim como um trabalho sobre o escritor italiano Carlo Emilio Gadda. Este é considerado um dos grandes clássicos do século XX, ao lado de figuras como Proust, Musil, Joyce, etc. Nunca li nada dele e não encontrei rasto de traduções em português de Portugal, embora existam algumas em português do Brasil. Um dos destaques do artigo de Luca Mazzocchi reza assim: É inegável que ler Gadda é tarefa difícil e espinhosa, mas as dificuldades que se apresentam ao leitor nunca são arbitrárias, nem criadas para fazer efeito. Pelo contrário, são coerentes com a sua visão filosófica da realidade enquanto sistema de sistemas, onde cada um deles existe em relação aos outros, e é modificado e deformado pelos outros, tal como a realidade continuamente se modifica e deforma. Neste momento, lamento não saber italiano para me confrontar com as obras de Gadda. Resta-me o recurso a traduções em línguas amigáveis para tentar essa tarefa difícil e espinhosa, isto é, dolorosa. Talvez a leitura do escritor italiano seja uma via crucis, um caminho de salvação.

sábado, 15 de julho de 2023

Pecados provinciais

Quando é que está bom do pé para irmos jantar naquela brasserie com nome de bairro nova-iorquino? Foi assim, à queima-roupa, que o padre Lodovico Settembrini começou a conversa desta manhã. Está de férias, pensei, na casa da Companhia, e trocou o sábado pelo domingo. Respondi-lhe que a gula ainda constava na lista dos pecados capitais. Ele desconversou, afirmou que estava na província e não em Lisboa. Os pecados cometidos fora da capital são pecados provinciais, o que o autoriza, sem sentir o peso da perdição eterna sobre os ombros, agradecer ao divino criador ter permitido que o homem prodigalize os pequenos prazeres que atenuam o calvário existencial. Ainda não sei quando vou para aí, está dependente da evolução das opiniões do cirurgião, as quais podem ser adversas. A casa, como sabe, não se presta a cavaleiros andantes montados numa cadeira de rodas. Seja como for, continuei, no próximo sábado, estaremos lá, toda a família, para comemorar o aniversário da…. Está convidado, obviamente. Quanto anos faz ela, perguntou. Quarenta, informei. E a ementa? Surpresa, retorqui. Sem essa informação, não me sei orientar nos vinhos que gostava de levar. Não se preocupe. Está tudo tratado. Sem essa preocupação, tenho mais tempo para me concentrar no presente para ela, sempre são quarenta anos, acrescentou. É verdade, disse-lhe, e mais tempo para se dedicar à oração e aos deveres do seu estado. Riu-se e pronunciou uma frase em italiano, cujo sentido não percebi, mas que a entoação me deu a certeza de ser mais um pecado provincial no rol do padre Lodo.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Relações causais

Os baloiços do parque infantil aqui em baixo voltaram a ranger. Conforme as crianças vão e vêm, o ferro das roldanas, ao rodar no ferro do eixo, emite um grito angustioso, a que se segue, passados instantes, um eco também ele lancinante. Não se pense, porém, que o ambiente é pungente. As crianças riem, gritam, chamam umas pelas outras, correm. Ouvem-se pontapés numa bola, vozes maternais a chamar pelos filhos, admoestações leves e benevolentes, encorajamentos assertivos, mas o ferro não se cansa de gritar a dor que o acomete. Quando a luz solar incidir no parque, tudo voltará ao silêncio. Alguém, uma voz adolescida, gritou golo e o ranger dos baloiços calou-se. Haverá uma relação causal entre os dois fenómenos? Quem sabe? O ruído voltou e como ninguém grita golo, promete continuar. Pouco depois das três da tarde, a cavalo do Rocinante, terei de ir fazer uma visita. Tenho de enfrentar esse desafio, logo eu que não li o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela, o que me teria habilitado para os mais desafiantes concursos hípicos e preparado para as justas equestres, função que cabe a qualquer cavaleiro que se preze. Irei assim timorato, sem preparo, a não ser uns treinos domésticos, enfrentar os desafios do vasto mundo. Os baloiços não param de ranger. Que raio, ninguém grita golo?

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Presunções e ensejos

Vasculho com atenção os dois livros que recebi. Datam de 1937 e formam um romance histórico de um autor português que já ninguém sabe quem é. O nome dele não vem ao caso. O que procuro são sinais de antigos proprietários da obra. Umas notas numa página, uma carta esquecida, um postal recebido e deixado entre as folhas, umas contas para pagar, sei lá o que mais poderia ser. Nada, nem uma simples dedicatória, uma assinatura com data de aquisição. Este deambular metafísico pelo estranho país de um passado que me é desconhecido não me deu assunto. Hélas! No romance, a certa altura, o autor informa: Francisco de Padilha saiu como um louco. O mal dos autores é presumir que os leitores sabem certas coisas. Como sairá um louco? Ponho-me a imaginar, mas não consigo chegar a um acordo comigo mesmo, tantas são as possibilidades de um louco sair do lugar onde se encontra. Seja como for, não posso deixar de sublinhar as razões que poderiam enlouquecer a personagem. Ser rejeitado por uma mulher seria, naqueles dias, uma desgraça. Parece-me, todavia, que é excessivo estabelecer um nexo causal entre uma rejeição e enlouquecer, ainda que seja apenas como metáfora. Paro as considerações por aqui, antes que entre por caminhos ínvios e escreva frases carregadas de aleivosias, o que poderia dar ensejo a alguém para instruir um processo de cancelamento deste narrador sem narrativa.

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Jogar xadrez

Apesar da natureza encantatória do título A insustentável leveza do ser, nunca fui um kunderiano. Li algumas obras, entre elas a supra referida, mas a que mais me agradou foi a Arte do romance, que não é um romance, mas uma reflexão sobre essa modalidade narrativa. Tanto quanto me lembro, entre a minha leitura e a escrita de Kundera nunca se estabeleceu um efectivo contacto. Talvez sensibilidades diferentes. Coisa muito diferente sucedeu com autores da Europa central, como Kafka, Musil, Broch ou Thomas Mann. Talvez um dia volte às obras do agora desaparecido escritor checo. Continuo numa espécie de confinamento, devido à indisponibilidade do pé direito. Entretenho-me a gincanar pela casa. Uma crise atingiu as minhas netas com o drama dos bilhetes para um concerto, mas são coisas que coloco à distância. Não faço ideia quem é a cantora que gera lágrimas e suspiros, mas sei que a adolescência é uma doença aguda, embora passe com relativa rapidez. Num jornal online, vejo que em certas zonas da Estremadura espanhola a temperatura do solo atingiu os sessenta graus Celsius. Tudo indica que a coisa não vai acabar bem. Isso recordou-me um poema de Ricardo Reis. A primeira estrofe reza assim: Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia / Tinha não sei qual guerra, / Quando a invasão ardia na Cidade / E as mulheres gritavam, / Dois jogadores de xadrez jogavam / O seu jogo contínuo. Tornámo-nos todos jogadores de xadrez e nem o incêndio do mundo nos retira da contemplação do tabuleiro, não vá a nossa rainha fugir com o rei adversário, e, por causa disso, tenhamos de ir de novo montar cerco a Tróia.

terça-feira, 11 de julho de 2023

Um jardim

Em 2018, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han publica um livro com o título Louvor da Terra – Uma Viagem ao Jardim. Na origem da obra estariam razões que se podem resumir no seguinte: Um dia senti uma profunda nostalgia e, além da nostalgia, uma necessidade premente de proximidade da terra. Por isso tomei a decisão de praticar diariamente jardinagem. Apesar da nostalgia e da necessidade que terão assaltado o filósofo, a ideia de cultivar o seu jardim não é uma novidade no mundo da filosofia. Também Voltaire, no Candide, se refere a essa necessidade. Contudo, ela não é impulsionada por uma nostalgia da terra, mas pela necessidade de protecção dos males provenientes do mundo da acção política. Uma outra diferença entre ambos os filósofos é que o jardim do francês é uma horta, o sítio onde se produzem vegetais, o do coreano contém plantas ornamentais. Não se pense, todavia, que não há uma linha que una as duas intencionalidades. Cultivar um jardim é trazer um princípio de ordem ao caos do mundo, essa ordem que, miticamente, existia no Éden e para a qual os homens não foram suficientemente sensíveis. Talvez cada ser humano traga, no fundo de si mesmo, a imagem de um jardim que deveria cultivar.

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Capitais

Mais uma viagem à capital de distrito, que deve também ser capital de outra coisa qualquer. Uma epidemia atingiu com ferocidade as vereações municipais, pois não deverá haver cidade, vila, vilória ou aldeia deste país que não seja capital de alguma coisa, por certo apoiada na generosa imaginação de quem preside aos destinos de cada concelho. Eu diria que tanta imaginação é uma pena capital que cai sobre as terras, cobrindo-as de ridículo, mas isto sou eu a pensar, cavaleiro da triste figura, desfasado no tempo e no espaço, um ser anacrónico e atópico. As nossas duas principais cidades poderiam ser as capitais da alface e das tripas. Espero, não sem ânsia, que as respectivas edilidades as proclamem como capitais de tão importantes produtos, o que lhes daria uma marca distintiva e lhes abriria um nicho de mercado, atraindo o investimento estrangeiro, e ainda mais turistas desejosos de conhecer esses produtos existentes apenas em Portugal. Tendo nós uma capital do feijão-frade ou da couve-penca, por que razão não devemos ter uma da alface e outra das tripas? São estes problemas que me ocupam nas tardes quentes de Julho. Há em tudo isto uma metafísica, pois tudo o que diz respeito à cabeça, o significado de capitāle em latim, tem uma natureza não apenas física, mas também metafísica, pois seria, segundo Descartes, num certo sítio da cabeça, a glândula pineal, que corpo e alma se ligariam. Basta.

domingo, 9 de julho de 2023

Ser pessoa

Um domingo de clausura, como se ainda estivéssemos no tempo dos confinamentos. Deixei as horas deslizar, coisas em que elas são de uma competência inexcedível. Troquei telefonemos com amigos e familiares, dormitei, enfim um dia sem história. Peguei num ou noutro livro, abri-os ao acaso. Num desses encontros acidentais li: Qualquer pessoa musical consegue distinguir melodias de meras sequências de sons.  Não foi o conteúdo da proposição, da autoria de Roger Scruton, que me fascinou, mas o sujeito dessa proposição, a pessoa musical. Haverá pessoas não musicais? Imagino que dizer pessoa musical será redundante. Ser musical é uma condição necessária para ser pessoa, mas, reconheça-se, não será suficiente, pois consta que animais que não são pessoas são musicais.  De Scruton saltei para Montaigne. No ensaio sobre a amizade, a certa altura, diz não sem graça: Ao convívio à mesa, associo gracejo, não seriedade; na cama escolho a beleza antes da bondade; na conversação, a competência mesmo sem a virtude. Há na frase uma prosápia insuportável, a manifestação pública de uma imagem hiperbólica de si como sujeito refinado, de bom gosto e espirituoso. Em qualquer circunstância escolho sempre o meu prazer, isto é, escolho-me. Este parece-me, todavia, um caminho para alguém perder a sua musicalidade e, sendo esta condição necessária de ser pessoa, para se perder enquanto pessoa.

sábado, 8 de julho de 2023

Um Rocinante

Ao fim de umas miseráveis trinta e seis horas dependente de canadianas, decidi ir em busca de um Rocinante que me levasse aonde eu quisesse ir, ou quase. Uma cadeira de rodas, onde me transporto sem temer cair. Descobri que não tinha vocação de funâmbulo. Bem tentei equilibrar-me, bem tentei aproveitar as lições online, mas o resultado foram dores no pescoço e um dedo do pé esquerdo preto, motivado por um inesperado encontro com uma das canadianas. Quase ia caindo, mas lá me encostei a uma parede. Sempre tive vertigens e nunca achei que seria boa ideia pôr-me a fazer equilíbrios na corda, fosse ela bamba ou não. O culpado deste desvario foi o cirurgião, quando me disse olhe, tem de usar canadianas por uns tempos. Confesso que olhei, mas não vi nada, não percebi o filme em que estava metido. Poderia ter dito olhe, use uma cadeira de rodas para se transportar e chame-lhe Rocinante. O mal do médico, um rapaz novo e talvez um pouco azougado, é desconhecer quem foi o Rocinante e não perceber que também eu sou um cavaleiro da triste figura. Agora, faço gincanas pela casa. Isto não melhora a minha figura, mas para isso é já demasiado tarde.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Instruções

Como D. Quixote, tenho à minha frente um mar de desafios que farão parte da gesta que será cantada até ao fim dos tempos. Não são coisas ilusórias como moinhos tomados por gigantes ou feiticeiros e encantadores que geram os males do mundo, mas canadianas reais em que me apoiarei, durante as próximas duas semanas, sem que o pé direito, pobre dele, tenha direito (uma contradição nos termos) a suportar o corpo de que faz parte. Desde ontem à tarde que tento estabelecer com os dispositivos de suporte uma aliança e um tratado de paz e cooperação. Não me têm parecido particularmente cooperantes, mas com o passar do tempo, como se deseja nos casamentos por conveniência, as canadianas e este candidato a cavaleiro andante talvez cheguem a amar-se e estabeleçam uma relação harmoniosa, apesar de efémera. Como se fosse ler uma arte de amar, vou ver uns vídeos onde se explica como estabelecer uma boa relação matrimonial com as canadianas. Neste mundo, que é o melhor de todos os possíveis, há vídeos com instruções para tudo, até para as mais inusitadas núpcias.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Remeter-se ao silêncio

O Verão tem sobre mim um efeito nefasto. Já constatei isto milhares de vezes, e já o anunciei aos ventos quase outras tantas. Cheguei à idade em que uma pessoa está condenada a repetir-se. Este pendor para a iteração nada tem de misterioso. É uma forma de luta contra o esquecimento. É verdade que essa propensão tem um poder especial de irritar os outros, os que não podem fugir dos nossos discursos, mas a memória lá se vai aguentando à tona de água. Há também uma outra possibilidade. Remeter-se ao silêncio. Esse silêncio cria um espaço onde a pessoa rememora continuamente aquilo que lhe dá prazer. Se, um acaso, traz uma memória desagradável, basta um encolher de ombros ou um franzir de sobrancelhas, e ela vai-se embora, para que aquilo que é radioso ocupe o palco. E é isso que vou fazer a seguir, remeter-me ao silêncio e contemplar as paisagens luminosas que a memória me traz.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Errância

A certa altura dos Parerga und Parlipómena, Schopenhauer diz: O ponto em que se dissociam em primeiro lugar as virtudes morais e os vícios do ser humano é essa oposição de ânimo fundamental em relação aos outros, que assume o carácter da inveja ou o da compaixão. Como salienta o filósofo alemão, estes atributos opostos nascem da comparação que cada um faz do seu estado com o dos outros. A inveja, fonte da actuação viciosa, levanta um muro entre o eu e o tu, a compaixão torna esse muro menos espesso, mais transparente, podendo mesmo derrubá-lo. Contudo, parece-me, há invejas virtuosas e compaixões que traem a marca do vício. Quando alguém admira o desempenho de alguém excelente, nunca deixa de ressoar uma ponta de inveja. É virtuosa, contudo, porque não deseja eliminar o outro, mas superar-se a si mesmo. Por outro lado, certas formas de compaixão não são outra coisa senão afirmações de uma superioridade, e ser compassivo é uma forma viciosa de prender o outro na sua suposta inferioridade. Imagino que, quando nos prendemos à oposição entre virtude e vício, já nos perdemos no caminho. Perdemo-nos quando cedemos à tentação de nos compararmos com os outros, de aferirmos a nossa singularidade pela de terceiros. Nesse momento, entramos na errância de onde raramente, muito raramente, se sai. Nem todos têm um destino como o do filho pródigo, perdendo-se uns na inveja, outros na compaixão.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Dragões

Julho manifesta a exuberância com que foi dotado. Ri-se com gargalhadas quentes, da sua boca saem baforadas de fumo. Julho é um dragão disfarçado de mês para poder figurar no calendário. Os dragões, como é do conhecimento geral, são seres esquivos, por isso disfarçam-se e metamorfoseiam-se. Ao virar da esquina podemos deparar-nos com um transformado em automóvel ou camião, de preferência. Quem não se deixou enganar foi S. Jorge. Trespassou com a lança um dragão que tinha ultrapassado as marcas. A princípio, como é hábito de todos os dragões, pedia apenas que lhe dessem duas ovelhas por dia para deixar os homens em paz. A certa altura, todavia, em vez de ovelhas quis a filha única do rei da Líbia. Foi a sua perdição, o que está de acordo com a tradição. S. Jorge, imagino que na altura ainda não estivesse canonizado e, por isso, sem direito a título, surgiu do nada, que é o sítio de onde surgem todos os verdadeiros heróis, e zás. Matou a dragão. Não sei se o derrotado teve direito a funeral ou ficou abandonado aos cães selvagens e às aves de rapina. Também não tenho informação sobre se S. Jorge, que ainda não o seria, casou com a filha do rei. Se não casou, é uma pena. Era uma história que além de acabar em bem ainda envolvia a marcha nupcial, apesar de nem Mendelssohn nem Wagner terem escrito as suas, mas na terra onde existem dragões tudo é possível, mesmo a existência de coisas antes de terem sido criadas. Está calor.

domingo, 2 de julho de 2023

Uma demanda falhada

Uma saída de manhã em busca de um produto que, afiançaram-me, estaria num certo sítio. Chegado ao lugar designado, dou conta de que o artigo será tão elusivo quanto o Santo Graal. Como acontece com muitos daqueles que demandam o Graal, acabei por descobrir um sucedâneo e, conformado, troquei o objecto da aventura por aquele que encontrei à mão de semear. Afinal, não sou nenhum cavaleiro da Távola Redonda. Aliás, aquilo que procurava não seria tanto o graal, mas o que se poderia pôr dentro dele. Apesar de tudo foi uma viagem instrutiva. Aprendi que não se deve confiar em certas informações, por mais fiáveis que pareçam ser. A realidade é de tal modo mutante que aquilo que ontem era verdade, hoje será mentira. Depois, a experiência da atmosfera seca que envolve estes sítios recordou ao corpo a realidade, corpo que tinha andado protegido dos calores por terras mais amenas. Tudo se paga. Hoje é domingo, mas não consigo imaginar o que isso significa, tão lassos estão os meus neurónios. Escrevi, sem incorrecção, lassos, mas se escrevesse laços também não estaria incorrecto, pois a lassidão neuronal que me acomete arredonda-me os neurónios, que se curvam sobre si, formando laços e remetendo-se a uma implacável greve ao contacto com os parceiros. Uma tragédia. Pelo WhatsApp recebo um vídeo. O meu neto deu as primeiras pedaladas na bicicleta sem cair. Valha-me isso.

sábado, 1 de julho de 2023

Nêspera

A França, como pertence à sua natureza, está efervescente. Nessa efervescência reflecte-se a tragédia europeia e a morte de um sonho, de uma utopia que não se constituiu a partir da destruição das liberdades e de uma vida de perseguições. Um célebre sociólogo francês, Raymond Aron, publicou, em 1981, um livro de entrevistas com o título O Espectador Comprometido. A expressão assenta num oximoro. A imparcialidade parcial. Na ideia de espectador manifesta-se aquele que observa imparcialmente o que se passa, o filósofo, no dizer de Pitágoras. No compromisso declara-se a parcialidade de tomar partido, de enviesar o olhar para afirmar o bem. Talvez a posição do filósofo seja insuportável. Olhar sem tomar partido parece o desígnio de um deus e não de um homem. Por isso, fantasio, Aron foi um sociólogo. A pergunta perturbante, perante o panorama de uma Europa em convulsão, é se se deve ser apenas um espectador ou se se acrescenta ao acto de olhar a ideia de compromisso? Quem pensa em comprometer-se fica refém da parcialidade do compromisso. Quem se decide por permanecer como espectador poderá ter a sorte da nêspera do poema de Mário-Henrique Leiria: Uma nêspera / estava na cama / deitada / muito calada / a ver / o que acontecia // chegou a Velha / e disse / olha uma nêspera / e zás comeu-a // é o que acontece / às nêsperas / que ficam deitadas / caladas / a esperar / o que acontece. Como narrador, tenho o destino de uma nêspera, ser comido por uma Velha. Talvez, medito, não seja pior destino do que o compromisso, o qual está longe de assegurar que no caminho não existam Velhas que gostem de nêsperas.