Tenho uma tendência não desprezível para a iteração. Volto uma e outra vez aos mesmos assuntos, preso por um fascínio difícil de explicar. Um dos meus preferidos é a crença – a estranha crença – de que um dos elementos do Juramento de Hipócrates, a base mítica da deontologia médica, é a prescrição de que um médico nunca deve cumprir a hora agendada para a consulta. Esta ideia foi-se tornando em mim uma certeza devido à constatação da diferença abissal entre aqueles que não cumprem e os que cumprem, excepções raras e preciosas, mas que não devem estar dispostos a ler o Juramento de Hipócrates. Eu também não li, mas não sou médico. A maioria dos médicos deve tê-lo lido e, confrontada com a prescrição – ou será um imperativo categórico? – de deixar o paciente na dúvida sobre se o médico existe ou se a sua estadia ali é fruto de uma alucinação, obriga-se a cumprir religiosamente a máxima de atender o paciente no momento em que este desespera por pensar que talvez o médico – ou a médica – seja o verdadeiro Godot, embora nunca tenha imaginado um Godot feminino. Talvez o objectivo do médico seja salvar o paciente, se não da doença que o aflige, pelo menos do desespero de pensar que está a sofrer de alucinações. Não falo por falar. Um acaso – infeliz, por certo – determinou que tivesse duas consultas com médicos diferentes, e em sistemas de saúde diferentes, em dois dias consecutivos: ontem e hoje. Nos dois casos, por outro infeliz acaso, esperei uma hora e um quarto, setenta e cinco minutos para ser atendido, isto é, para descobrir que aqueles médicos existiam mesmo, que não havia nenhum Godot, com calças ou com saias, e que eu não estava louco. Em ambos os casos, entrei desesperado e saí agradecido.
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