No Livro dos Provérbios e das Reflexões, Arthur Schnitzler tem um pequeno conjunto de dísticos, a que deu o nome de dísticos ateus. O quinto diz: Humedece-vos os olhos, a compaixão… mas receio bem que a segunda lágrima / Já a verteste, com extrema comoção, pela vossa própria bondade. Esta desconfiança perante a bondade dos homens é um lugar-comum muito antigo. Isso levou Kant a declarar que as acções bondosas feitas por uma inclinação natural para o bem são destituídas de valor moral. A pessoa não cumpre o dever de fazer o bem por amor ao dever, mas por, digamos assim, um prazer egoísta de satisfazer a sua natureza. De outro modo, de um modo poético, é o que diz o escritor austríaco. O mundo não seria um lugar pior do que é, pelo contrário, se todo o egoísmo humano se revelasse num prazer de alguém se sentir comovido com a sua própria bondade. Mesmo que o acto bondoso tivesse, no agente, uma raiz patológica, ele seria, para o paciente da acção, uma bênção. E para o agente talvez o seu destino não fosse o inferno, pois um egoísmo fundado no bem dos outros não apenas é melhor do que um egoísmo ancorado no mal de terceiros, como há nele um passo, talvez pequeno, para fora desse mesmo egoísmo.
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