sexta-feira, 2 de maio de 2025

Sem vocação

Quase me esqueço, mas hoje é sexta-feira. Estranhei o barulho na praceta em baixo: uma série de rapazolas adolescem à volta de uma bola, com as bocas incapazes de suster aquilo que lhes sai da garganta. Depois de algum esforço, consegui sintonizar o dia: estão apenas a fazer horas para entrarem para o instituto de línguas, onde aprenderão, por certo, inglês. Os pais ainda acalentam a crença de que o inglês é a língua-franca do mundo. Talvez seja já uma convicção anacrónica, apesar de parecer que é uma língua do futuro. As aparências têm, contudo, um estranho destino: o de caírem e rebolarem no chão, até que um coveiro desocupado as recolha e enterre bem fundo no túmulo da história. Haverá quem pense que este narrador, ao escrever “túmulo da história”, está a metaforizar. Não está. Fala literalmente. A história não é mais do que o túmulo onde se enterram todas as ilusões que deram sentido à vida, bem como as decepções que a aproximaram do pesadelo. A história é uma Arca de Noé ao contrário: nesta, recolhia-se a vida; naquela, a morte. Acabei de acordar, depois de ter adormecido em frente a este texto. Acordei com um gesto da mão, mas apenas um gesto que fazia parte do sonho em que tinha mergulhado, e não de um acto físico. A literalidade da minha fala — no caso, escrita — é soporífera. Nem eu lhe resisto. Começo a escrever e afundo-me. A consciência prefere apagar-se a ler aquilo que sai dos meus dedos quando chocam com o teclado. Depois, entrega-se a fantasias oníricas, mas estas não se conseguem fixar quando transito para o estado de vigília. Os adolescentes continuam a exercitar a garganta. Também o vento decidiu tamborilar nas persianas. É a música do mundo, deste em que me encontro. Sim, hoje é sexta-feira e vamos entrar nos dias inúteis, nos quais não há institutos onde se aprendam línguas-francas. Bocejo, esfrego os olhos, reparo nas acácias a ramalhar, impelidas por uma energia invisível. Diante de mim jaz, entregue à morte, Marat, numa reprodução do quadro de Jacques-Louis David, que serve de capa ao livro de Richard Sennett, The Fall of Public Man. Dentro do livro, descubro um bilhete de cinema. Pelas 18:15, de um 25 de Março, terei ido ao Nimas, ver O Grande Silêncio. Preço: cinco euros. Contudo, o bilhete não consegue dar-me a informação que procuro: em que ano? Sei bem qual é o filme. Um documentário sobre a Grande Cartuxa nos Alpes Franceses, onde é mostrado o quotidiano dos monges. Claramente, os aprendizes de línguas-francas não têm vocação de cartuxos. Hélas!

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