domingo, 1 de abril de 2018

Na rua


Oiço crianças a gritar. Estão lá em baixo, correm e gritam como se fossem crianças a correr e a gritar. Nunca deixo de me espantar por ainda existirem crianças a correr e a gritar nas ruas. A vida é tão asséptica que o que era normal tornou-se excepção, acontecimento. O sol parece sofrer de anemia, e assim não se ouve nenhuma mãe a ordenar que ponham o chapéu. Talvez as mães já não se importem com chapéus e se ocupem de outra coisa sentadas à mesa do café. Novos gritos. Espreito pela janela mas não vejo as crianças, estarão do outro lado. Num canteiro relvado há um círculo de madeira no centro, o que ficou de uma palmeira cortada rente ao chão. Uma nuvem mais forte passa diante do sol e parece Sexta-feira de Paixão e não Domingo de Páscoa. O dia levita e inclina-se sobre a cidade. Vai devorá-la, desconsolado, até que a noite chegue e o liberte deste seu pesar. Gritaram, mas não percebi o quê. E tudo se enrodilhou na ratoeira do silêncio.