Tudo o que vou contar é falso. Se o leitor acreditar numa palavra que seja, fica por sua conta e risco. Eu bem o avisei. Ontem fui visitar a minha mãe e, em vez de poluir a atmosfera com os gases do carro, pus os pés ao caminho. Saindo de casa dela, decidi que, também eu, tal como o velho genebrino Jean-Jacques me entregaria às minhas rêveries du promeneur solitaire. Pus-me a caminhar pela cidade, por sítios onde raramente ou nunca passo a pé. A certa altura a imaginação começa a importunar-me e a perguntar por que motivo, em dado momento da história do país, qualquer vilória, com poucos milhares de habitantes e uma existência tão cosmopolita como uma paróquia perdida sabe-se lá onde, quis tomar o nome de cidade. Não lhe soube responder e continuei a promenade. Quando passava diante de um cemitério, numa avenida que leva de uma rotunda a outra rotunda, que por sua vez levará a uma terceira, ocorreu-me um episódio da semana que tinha passado. Recebo uma chamada no telemóvel. Estou, respondo. É o senhor e declinam o meu primeiro nome. Ainda com bonomia digo o próprio. Aqui fala a Doutora… Ah, respondi, o seu pai conseguiu pôr-lhe o nome de Doutora. Deve ser muito nova. Quando fui ao registo civil para registar a minha filha também quis pôr-lhe o nome de Doutora, mas não me deixaram. Cheguei lá e disse quero registar a minha filha recém-nascida. E o nome, perguntou-me o funcionário já entradote. Quero que se chame Doutora e acrescentei dois apelidos da mãe e dois do pai, só para ela treinar a letra quando, na escola, escrevesse o nome. Não pode, retorquiu. Doutora não consta da lista de nomes autorizados. Não? Olhe, acrescentei, não estava preparado para isso. Que nome lhe hei-de pôr? Pode chamar-lhe Isabel, Madalena, Teresa, Sofia, Fátima ou Maria, que era o nome da Nocha Chenhora, foi assim que ele pronunciou. Eu respondi, se era o nome da Nocha Chenhora, fica Maria, e Maria ficou. Os tempos mudaram e agora há muitos pais a porem como nome aos filhos Doutor e Doutora. Lembrei-me de uma outra história, tão verídica como esta, de um rapaz também ele doutor e presidente da junta, mas talvez a conte num dia destes, se numa nova promenade me entregar a nova rêverie. Tudo o que narrei é falso, repito. Se acreditou numa só palavra, não culpe este pobre narrador, um mitómano contumaz, cuja papel é inventar coisas que nunca se passam.
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