terça-feira, 31 de maio de 2022

Demolições

Sem glória nem proveito, Maio fina-se hoje. Várias pessoas da minha família escolherem este mês para nascer. Não se queixam nem protestam por ele, em certos anos, não ostentar a aura que o nome anuncia. Talvez todos nós sejamos seres resignados com o mês em que nascemos. Habituamo-nos a ele e até chegamos a pensar que seria impossível nascer num outro. Por desfastio, triste pelo destino de Maio, pus-me a ler A Tragédia da Rua das Flores. No primeiro capítulo, Eça de Queirós, linha a linha, demole a boa sociedade da época. Não fica pedra sobre pedra. Usou não o florete da ironia, mas o camartelo. O segundo acto terminava. O regente, aos pulinhos, brandia a batuta; os arcos das rabecas subiam, desciam, com o movimento de serras apressadas; agudezas de flautins sibilavam; e o bombo, de pé, de óculos, com o lenço tabaqueiro deitado sobre o ombro, atirava baquetadas à pele do tambor, com uma mansidão sonolenta. Sobre o palco, Carlota, muito escangalhada, arrastando aos sacões através da corte a sua cauda enxovalhada, gania. Temo, contudo, que um dia destes seja posto no índex, por escrever coisas como esta: E o episódio aristocrático da sua carreira sentimental fora em Sintra, quando o social Padilhão o surpreendeu nos Capuchos com a Condessa de Aguiar. A Condessa era, é ainda, como um prato de mesa redonda: o que a recebe do seu vizinho da direita, serve-se e passa-a ao seu vizinho da esquerda. Desde então Dâmaso fitava as mulheres de frente, torcendo o buço. Sempre me pareceu que os sociólogos desperdiçam um vasto campo para o seu trabalho. Uma sociologia da literatura não com o fim de compreender as condições sociais onde foram produzidas as obras literárias, mas a investigação da sociedade que essas obras constroem. Isto não teria por finalidade perceber a sociedade do tempo de Eça de Queirós, por exemplo, mas a sociedade que Eça cria para nos levar a pensar que está a demolir a sociedade do seu tempo. E eu, ingénuo, suspendo a descrença e acredito mesmo que ele estava a demoli-la. Não estava, claro. O mundo social onde os homens habitam e o mundo social das obras literárias são como duas rectas paralelas, mas que nem no infinito se encontram.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Da regulação

Há que ser reconhecido ao santo regulador dos desvarios do clima. Por hoje, S. Pedro merece a nossa gratidão. Uma máxima de 24 graus é caso para romaria. Se nós olharmos para os reguladores existentes na terra, percebemos as suas dificuldades. Por exemplo, os reguladores financeiros são especialistas a não regular coisa nenhuma. Mal se olha para o lado e estamos todos metidos numa alhada dos diabos, pois os reguladores desregularam ou foram fazer outra coisa qualquer. Se regular as finanças é o que é, imagine-se o trabalho de regular o clima, os humores deste, as altas e as baixas pressões, os ciclones e os anticiclones. Chegaram-me hoje uns livros comprado online num alfarrabista. Quatro livros, para ser exacto. Abro-os para ver se neles me chega alguma comunicação de outro tempo, uma dedicatória a um amigo, um papel esquecido com uma lista de compras, alguma carta de amor por ali deixada. Nada. O passado está mudo e resiste em alimentar-me estes textos. Um desses livros é um romance de um antigo crítico literário, uma autoridade na matéria há umas boas dezenas de anos. Consta que, enquanto escritor, a sua sorte e o seu talento nunca impressionaram ninguém. Não o posso dizer, pois nunca o li. Tenho agora oportunidade. Um dos outros livros foi publicado por uma editora já desaparecida, a Sociedade de Expansão Cultural. Esta era o resultado de um trabalho quase de militância editorial de um escritor hoje completamente desconhecido, Domingos Monteiro. Naqueles tempos, era visto como um dos grandes novelistas nacionais. As cevadilhas da escola aqui ao lado estão exuberantes, cobertas por uma floração rósea. A tarde está cor de cinza e isso refresca-me a alma.

domingo, 29 de maio de 2022

Pequeno-burgueses

Diante de mim jaz o romance de Carlos de Oliveira, Pequenos Burgueses. Aguarda que a realidade se desanuvie para que eu prossiga na sua releitura. Ler é reler, alguém terá dito, mas não me ocorre quem. Voltando ao romance de Oliveira, o título levou-me a uma associação com um poema de Mário Cesariny. Aquela que começa e acaba com a seguinte quadra: Burgueses somos nós todos / ou ainda menos. / Burgueses somos nós todos / desde pequenos. Quando tinha escassa idade, mas já a suficiente para me interessar por coisas que talvez não me devessem interessar, a vexata quaestio da pequena-burguesia, com hífen, estava muito na moda. Havia debates e vitupérios em torno dessa inconsolável e inconsolada classe social, bem como da definição e extensão do conceito que a deveria definir. O poema do Cesariny mostrou-me a solução do enigma dos pequeno-burgueses. São aqueles que são burgueses desde pequenos. Por pequeno pode-se pensar aqueles que são crianças, aqueles que são pequenos de altura, aqueles que o são de carácter, aqueles que o são de rendimentos. A poesia abre as palavras à polissemia e essa salva a alma de quem a lê, ou a relê, mesmo que a finalidade seja tresler. Hoje é domingo, já cumpri um conjunto diversificado de tarefas, mas ainda tenho mais algumas para realizar. Hoje, por hoje, sigo aquele sábio conselho – de claro teor pequeno-burguês – não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Nada de procrastinar.

sábado, 28 de maio de 2022

Imprevistos

São grandes os dias e as tardes prolongam-se numa doce rêverie como se tivesse retornado, por instantes, aos Verões da longínqua infância. Uma quase desadequação à realidade. Ainda não se está no Verão, falta quase um mês para a sua chegada oficial, embora a infância esteja cada vez mais longínqua. O almoço não me predispôs a qualquer actividade nas horas que se lhe seguiram. Há coisas simples que parecem tocadas pela eternidade, como carapaus fritos – pequenos, mas não mínimos – e arroz de tomate. A culpada foi a minha neta que fez um pedido formal para este almoço. O resultado não foi venturoso. Sentei-me em frente da televisão, para ver o que se passava no Giro de Itália e adormeci, embora acordasse a tempo de ver o fim da história, isto é, da etapa. Eu não sou um adepto contumaz do ciclismo, mas acho-lhe alguma graça, se visto na televisão. Por norma, as paisagens são magníficas, vêem-se coisas que nem indo lá se conseguem ver. Quem ganha ou perde, quem dá à perna com mais ou menos vigor, isso pouco interessa. Havia um português nos primeiros lugares, mas parece que foi apanhado pela COVID e foi obrigado a desistir. São estes imprevistos que nos impedem de ser uma grande nação. Há sempre um vírus ao virar da esquina à nossa espera. E esquinas são coisas que não faltam neste país. Somos um pobre país rico em esquinas. Um país esquinado. Quando fui ver a minha mãe, neste 28 de Maio em que faz 89 anos, estava, na cidade, um calor insuportável. Ela reconheceu os filhos, mas dos netos e bisnetos não se lembrava, como de quase nada. A vida parece apagar-se do fim para o princípio. Tem vislumbres, conseguiu acertar na idade, mas não fazia ideia que era dia do seu aniversário. Por vezes, parecia fazer recapitulações perguntando a cada se era aquele que ela pensava ser. Depois, entrava numa outra dimensão que só ela saberá qual é. Uma fuga para uma realidade paralela ou perpendicular, mas por certo melhor que esta.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Uma nódoa de capilé

Trinta e sete. Não, este número não representa a idade de ninguém, nem é uma chave para qualquer arcano da numerologia. Não faço ideia se arcano e numerologia combinam. Ele representa a temperatura máxima sentida por aqui. Na rua, mesmo à sombra, a pele parece estalar. Recolho-me em casa e bebo água. Devia ter comprado umas cápsulas de descafeinado para fazer mazagran. A ausência da cafeína deve-se à presença da minha neta mais velha que chegou há pouco para ser massacrada com umas lições de Matemática a cargo da avó. Telefonou anteontem esbaforida. Irá ter um teste com toda a matéria do oitavo ano. Acho que lhe chamou teste global. É o que faz a globalização, dá cabo da sensatez dos professores e põe as crianças de rastos. O Word, sempre solícito, decidiu, ali em cima, marcar como erro mazagran, propondo para substituição mazagrã. Não aceito. Perde-se a referência a um local na Argélia denominado Mazagran. Esta palavra, segundo a rápida investigação que fiz, deriva de uma expressão berbere ma (água) e zagran (abundância). Talvez fosse um oásis. A bebida faz jus ao nome, pois tem água em abundância. Recordei-me também das groselhas, o refresco, e do capilé. Por causa deste, tive uma decepção com um dos maiores génios da nossa literatura. Li que Eça de Queirós preferia capilé a qualquer outra bebida (leia-se vinho) para acompanhar o Bife à Marrare. Enquanto me lembrar desta revelação não lerei uma página dele. Pode ter composto Os Maias, O Primo Basílio, A Ilustre Casa de Ramires e até As Cidades e as Serras, esse romance proto-ecologista, que não apaga a nódoa do capilé. E o Arroz de Favas, aquele prato que o Jacinto cantava, era acompanhado com quê? Limonada? Por amor de Deus.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Espiga

Uma espiga. Até 1952, a Quinta-Feira de Ascensão, em versão católica, ou o Dia da Espiga, em versão pagã, era feriado nacional. O governo de então não resistiu aos cantos de sereia da produção, da necessidade de trabalhar, e acabou com essa interrupção da realidade que permitia às pessoas da cidade irem ao campo lavar a alma, encherem-se de poeira e colherem espigas e flores silvestres, com as quais compunham um belo ramo, para pendurar à entrada de casa ou colocarem atrás da porta da despensa. Não seria um belo ramalhete rubro de papoulas, coisas do Cesário Verde, mas este também não se punha à porta de casa. Se eu tivesse uma alma de político e entretivesse a vida em luta pelo poder, faria de imediato a promessa de restauração nacional do feriado da Quinta-Feira de Ascensão. Seria um acto restaurador, quase tão importante como aquele que correu com os Filipes e nos trouxe os Braganças. Isto apenas por solidariedade com parte dos portugueses, pois vivo num dos concelhos – e são em número interessante – que elegeu o dia de hoje como feriado municipal. Como não tenho propensão política, lá fica a maioria dos portugueses sem possibilidade de ir apanhar a espiga. Para dizer a verdade, acho que apenas uma vez fui apanhar a espiga, mas tanto quanto me lembro não era a espiga que me interessava, embora já não saiba o que era. Talvez um ramalhete rubro de papoulas. Dá sempre jeito, desde que não venha acompanhado de imposturas tolas.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

As quatro estações

Quando volto para casa, depois de uma manhã de múltiplos afazeres, fico especado em frente à porta. Revolvo os bolsos em busca da chave. Nada. Devo ter feito uma cara de estúpido, mas ninguém teve o prazer de a ver. Talvez a porta, mas essa é muda. Toquei à campainha. A porta abriu-se e fui olhado com ironia. Com que então a chave abandonada na porta durante quase cinco horas. Anuí e não disse mais nada para não engrandecer a heróica aventura de que tinha sido sujeito ou a que fora sujeito. Certamente, não foi uma aventura galante, como aquelas que preencheram a vida do Marquês de Bradomín, o mais admirável Don Juan, pois segunda uma tia, era feio, sentimental e católico. Contudo, pode haver não pouca galanteria num esquecimento, mas não foi o caso. O Marquês de Bradomín é uma personagem de Ramón del Valle Inclán, de uma série de romances dedicada às quatros estações. Estas, as quatro estações, têm um enorme sucesso no mundo da arte. Os concertos de Vivaldi, os romances de Inclán, os filmes de Éric Rohmer. É a estes que estou a dedicar os meus tempos livres. Já vi os filmes referentes à Primavera, ao Inverno e ao Verão (esta é a ordem). Falta-me o Outono, a minha estação preferida. Sou uma pessoa outonal e outonada, talvez mais do que o necessário. Estes filmes giram, como é hábito no realizador francês, à volta da equivocidade do amor ou, melhor, dos amantes. A minha homenagem de hoje, porém, não é para o amor, mesmo o galante, mas para as quatro estações, até porque vivo num lugar que ainda não as aboliu de jure, mas extinguiu-as de facto. Aqui só há duas. Ora é Inverno, ora é Verão. Isto é péssimo para a arte. Uma coisa são As Quatro Estações, de Vivaldi, que, aliás, fazem parte de doze concertos para violino, cordas e baixo contínuo, com o nome de Il cimento dell'armonia e dell'inventione. Outra, bem mais rasteira, seria As Duas Estações, sem os galanteios da Primavera, sem a prudente sabedoria do Outono. Ninguém me perguntou, mas eu informo. Prefiro o Marquês de Bradomín ao Marquês de Sade.

terça-feira, 24 de maio de 2022

Indícios

Acontecem coisas estranhas na vida das pessoas. Anda-se embrulhado numa incerteza sem fim sobre determinado assunto. Deve-se fazer isto ou aquilo? De um momento para o outro, um acontecimento inopinado fornece um indício e este torna-se a chave que conduz à decisão. Talvez isto contrarie a ideia aristotélica de raciocínio prático, desse processo de deliberação que conduzirá à melhor das opções. Ou, será uma hipótese mais interessante, existam duas formas de tomar decisão, não incompatíveis, apenas diferentes. Numa a razão delibera para escolher aquela que é a melhor das opções possíveis. Noutra, aguarda-se que um sinal fortuito forneça a indicação do caminho a seguir. Este último método não parece lá muito razoável, mas a vida tem muitas coisas irrazoáveis, havendo mesmo a possibilidade de ela ser também irrazoável. Seja como for, o assunto que me trazia na incerteza recebeu a solução graças a um indício fortuito. Curiosamente, sinto-me mais tranquilo e certo de ter feito a melhor escolha. Releio Pequenos Burgueses, um dos romances de Carlos de Oliveira. Este é um dos autores que mereceria mais atenção do público. Tanto na poesia como na prosa. Há nele uma contenção extrema e um desejo infinito de perfeição. O que mais impressiona nos seus romances é o modo como, limitando-se a um universo paroquial, fechado e sombrio, consegue uma escrita luminosa que está muito para além da paroquialidade. Por exemplo, este excerto de uma carta nunca enviada, como todas as outras que a antecederam, pela sua autora: Responda e deixe a carta dez metros para a esquerda do portão, entre as duas pedras do muro marcadas com uma cruz, mas ao responder ponha óculos escuros para o seu olhar não vir no papel e não tente escrever uma carta bonita, só em português, use a misturangada com que costuma falar, português e espanhol. Dá-lhe um ar de aventureiro viajado, que veio de longe. Se puder, ponha também o tom da voz, áspero mas agradável. É ele que não me deixa parar o coração quando esses olhos horríveis me gelam… Não faço ideia se hoje em dia, nas escolas, se lê Carlos de Oliveira, mas a leitura desta carta deveria ser obrigatória, não para ser esquartejada num exame, mas para os alunos aprenderem o prazer do texto, e ao aprender o prazer do texto descobrissem as forças subtis, cheias de indícios, que sustentam o jogo do amor. Acho que já escrevi demais. É preciso não abusar da paciência de quem, por acaso, lê estes textos.

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Encanar a perna à rã

Queixamo-nos muito dos atrasos, mas talvez isso faça parte de uma longa tradição que remonta ao início da nacionalidade. Por certo que todos sabemos que a 5 de Outubro de 1143, pelo Tratado de Zamora, Afonso VII, rei da Galiza, Castela e Leão, reconheceu o primo, Afonso Henriques, como Rei de Portugal. Ora, o reconhecimento papal, contudo, só chegou a 23 de Maio (faz hoje 843 anos) de 1179. Tivemos de esperar quase 36 anos. Isto é mais demorado do que um processo num tribunal português. Esta longa espera, este atraso entre os factos e o direito, tornou-se em nós, portugueses, um hábito e um hábito é uma segunda natureza, na opinião de Aristóteles. Nascemos atrasados e não é claro que queiramos recuperar esse atraso. Andamos há seculos com 36 anos de atraso. A culpa, porém, não foi nossa, mas do Vaticano, que andou a encanar a perna à rã. Isto prova que encanar a perna de uma rã é um exercício demoradíssimo, que pode levar dezenas de anos. Por falar em rãs, os pássaros meus vizinhos decidiram fazer um concerto. Mais harmonioso do que se fosse um composto pelo coaxar das rãs. Os sapos também coaxam, mas imagino que o coaxar destes seja mais grave, enquanto o daquelas mais agudo, uma variação entre barítono e soprano. As segundas-feiras são sempre dias difíceis. A realidade atira-se a nós e gruda-se na pele. Para a descolar é necessário um esforço hercúleo. A energia fica toda aí, não sobrando nada para ajudar a criatividade deste texto. Paciência. O concerto acabou.

domingo, 22 de maio de 2022

Das coisas efémeras

Um dos jacarandás de uma das pracetas está já em adiantado estado de floração. Julgo que a norma, por aqui, era a floração estar exuberante em Junho. Agora, as coisas adiantam-se. O espanto que provocam os jacarandás em flor provém não apenas da beleza da árvore, mas de estarem em conjunto. Um exemplar florido perde muito do impacto, como se a espécie tivesse por divisa a união faz a beleza. O domingo passou-se sem que uma nova aventura se possa adicionar à gesta gloriosa que vou narrando por aqui. Ao comprar uns croissants recordei-me da moda que assolou este país há umas décadas. Não havia lugar que não tivesse uma croissanterie.  Não me recordo se era assim que grafavam o nome do estabelecimento ou se aportuguesavam para croissanteria. Talvez existissem as duas modalidades. Foi um fenómeno galopante, tanto a espalhar-se como a desaparecer. Tudo o que deve permanecer necessita de uma longa incubação, caso contrário não passará de uma curiosa efemeridade. Também é verdade que vivemos numa era em que não há tempo para demoras. As coisas precisam de emergir rapidamente e rapidamente devem tornar-se obsoletas. A ideia de moda espalhou-se, como um vírus contagioso, por todos os aspectos da vida. Também o belo jacarandá terá uma glória efémera, embora para o ano ela possa voltar. Uma vantagem das árvores sobre os homens.

sábado, 21 de maio de 2022

Traduções

Hoje o dia não começou mal. A balança decidiu, ao fim de vários meses de recusa, devolver-me um peso um pouco mais baixo, dando-me a esperança – ou a ilusão – de que a trajectória descendente se torne efectiva. Também não precisará de descer muito. A situação não é catastrófica, nunca o foi. Há uns anos ou há uns quilos atrás, em Madrid, deparo-me, já não me lembro se no Museu do Prado ou no Rainha Sofia, com uma exposição, amplamente anunciada pela cidade, do pintor Alberto Durero. Não fazia a ideia quem era esse Alberto, embora houvesse qualquer coisa no nome que não me era completamente desconhecida, tinha um ar familiar. Vamos ao museu e aproveitamos para descobrir esse Durero, disse. Quando chego, descubro de imediato que não existia nenhum Alberto Durero e que a exposição era do pintor alemão renascentista Albrecht Dürer. Na minha ingenuidade (e ingenuidade depois dos quarenta não é ingenuidade, mas burrice, como dizia uma amiga), nunca pensei que mesmo os espanhóis se atrevessem a traduzir-lhe o nome. Pergunto-me como traduzirão eles Liev Tolstói. Por León Tostado? Lembrei-me dessa história porque vi, num blogue dado a efemérides, que Dürer nasceu a 21 de Maio, um dia que parece não ser mau para virem ao mundo pintores. Também a 21 de Maio nasceu Henri Rousseau, o pintor precursor da pintura ingénua. Talvez devesse usar a designação pintura naïf. As areias do Sahara retornaram. Já sabia. Esse saber evitou que ontem fosse pôr o carro a lavar. Tinha entrado nele e, olhando-o com alguma condescendência, pensei que era dia de o levar à lavandaria dos carros. Ia já a caminho, quando me lembrei que estava anunciada a visita arenosa do Sahara. Adiei. O dia tem uma tonalidade irreal, uma luz esbranquiçada, como se sofresse de anemia. A temperatura, porém, está acima dos 30 graus. Parece que tenho de ir às compras. A realidade é sempre pior do que a imaginamos.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Automóveis e adolescência

Um carro da Mercedes, do ano de 1955, foi leiloado por 135 milhões de euros. Consta que existem apenas dois carros dessa série. Nesse ano, nas 24 horas de Le Mans, o piloto francês Pierre Levegh despistou-se, tando morrido de imediato, num desses carros. A desintegração do automóvel atingiu o público tendo morrido 82 espectadores. Isto aconteceu ainda não tinha nascido, mas naqueles anos de adolescência em que era um apaixonado pelas corridas de automóveis, muitos pilotos morreram em competição ou mesmo nos treinos como aconteceu com Jochen Rindt, em Monza. Rindt, um austríaco, é até hoje o único piloto de Fórmula 1 que foi campeão mundial a título póstumo. A pontuação que tinha antes do Grande Prémio de Itália não foi alcançada por nenhum dos pilotos que lhe sobreviveram. Quando me interessava pelo automobilismo havia quatro corridas emblemáticas. As 24 Horas de Le Mans, o Grande Prémio do Mónaco, as 500 Milhas de Indianápolis e o Rally de Monte Carlo. Depois, a adolescência passou e com ela passou o interesse pelas corridas de automóveis. Nunca fui ver um Grande Prémio ao vivo e não retornei a ver passar um rally. Cheguei a ver passar o Rally TAP, que, naqueles anos, era uma das grandes competições de automobilismo de estrada. Depois, de um momento para o outro, o interesse passou, não tornei a ver um Grande Prémio na televisão e hoje em dia não faço a mínima ideia sobre o que se passa na Fórmula 1, em Le Mans ou se ainda existe um rally de Portugal, como o TAP. A adolescência é uma doença terrível, mas não é incurável. Penso eu, embora possa admitir que, nos homens, se torne uma doença crónica.

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Da adequação dos nomes

É tarde e estou cansado. Descobri-o porque dei uma ordem de impressão a um documento e este recusou-se a ser impresso. Dei uma segunda ordem, a recusa manteve-se inalterada. Desisti de imprimir. Amanhã, trato do caso. Um exemplo de procrastinação. Lembro-me, perfeitamente, da injunção que, num livro da escola primária, um advogado dava a um camponês que o consultou em busca de conselhos: não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Desconfio que nunca levei a sério aquele imperativo. Depois, descobri que me tinha esquecido de dar um novo comando à impressora e desprocrastinei. Como estou cansado, interessei-me por uma certa afirmação de Ludwig Wittgenstein: Sabemos muito bem que o nome “Schubert” não se encontra em nenhuma relação de adequação com o seu portador. Parece sensata a afirmação. O autor pretende mesmo justificá-la dizendo: O nome “Schubert” adequa-se completamente a Schubertnão significa nada. Não passaria de uma informação patológica sobre aquele que a dissesse. De facto, não é sintoma de boa saúde mental andar a dizer coisas que não significam realmente nada. Como posso, porém, saber que não há nenhuma relação de adequação entre o nome “Schubert” e a pessoa “Schubert”? A afirmação de Wittgenstein pretende dizer apenas que o nome da pessoa é uma mera etiqueta dada socialmente e não tem relação com aquilo que a pessoa é. Como poderei saber, porém, se aquela pessoa em vez de se chamar Franz Peter Schubert se chamasse Friedrich Wilhelm Nietzsche teria composto o que compôs ou mesmo se teria sido músico? Que sabemos nós do impacto que um nome pode ter no destino de uma pessoa? Imaginemos o seguinte: à pessoa x foi atribuído o nome Franz Peter Schubert, essa pessoa tornou-se o músico que conhecemos; por outro lado, à pessoa y, no mesmo dia, foi atribuído o mesmo nome e ela tornou-se um sem-abrigo. Não bastará isto para confirmar a justeza da teoria de Wittgenstein? Não, pelo contrário. Isto permite pensar que há atribuições adequadas e outras desadequadas. No primeiro caso, o nome conduz à realização de si; no segundo, o nome foi excessivamente pesado e a pessoa sucumbiu à carga que transportava. Talvez Wittgenstein tenha razão, e a minha mente esteja em avançado estado patológico. Amanhã, talvez tenha pensamentos menos idiotas. Há que não perder a esperança.

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Do absurdo

Estive a ler, numa obra de Alexander Kluge, um diálogo completamente absurdo entre dois agentes diplomáticos britânicos em Moscovo. Não, não... não era um diálogo actual sobre a vexata quaestio da guerra na Ucrânia, mas da época em que ainda existia a URSS. É possível que, nesses tempos, todos os diálogos entre agentes diplomáticos em Moscovo fossem absurdos. Também não é inverosímil que qualquer diálogo entre quaisquer agentes diplomáticos em qualquer época seja absurdo. A única coisa que há que decidir é se a inclinação para o absurdo se deve aos assuntos a que os agentes diplomáticos se dedicam ou ao facto de possuir uma natureza absurda ser uma condição necessária para se tornar agente diplomático. Este dilema – porventura, falso – poderá não ter em consideração uma outra perspectiva mais global, ou, para usar uma palavra que começa a dar-me náuseas, mais holística. Quero dizer o seguinte: qualquer diálogo entre dois representantes da espécie humana é tendencialmente absurdo. O absurdo nascerá, caso exista, de qualquer diálogo não passar de um duplo monólogo, uma conversa onde os participantes deslizam paralelamente cavalgando cada um o seu discurso. Quanto maior fidelidade ao paralelismo, mais compensador é o diálogo. Esta é uma lei, e, como tal, tem uma aplicação universal. Isto tem, por outro lado, uma consequência interessante. Qualquer um de nós poderia ou poderá tornar-se um agente diplomático. Pelo menos, preenche uma das condições necessárias. Escrevia que a palavra holístico e a ideia de holismo começam a nausear-me. A causa, presumo, é que pressinto sempre que alguém usa holismo, holístico, etc. que aquilo a que se refere não é o velho hólos dos gregos, mas o hole dos ingleses. Não está a falar de um todo, mas de um buraco. Aliás, o diálogo mencionado referia-se a buracos ou, melhor, a perfurações. Uma conversa esburacada, além de absurda, esta.

terça-feira, 17 de maio de 2022

Em contramão

Hoje seria mais um dia sem uma grande aventura, não fosse o caso de ter entrado em contramão numa rua em Lisboa, mesmo no bairro de Campo de Ourique. Vi alguém a fazer gestos, mas não percebi que era comigo. Outra pessoa repetiu esses gestos e pensei que alguma coisa estava errada. Quando vi um carro a vir em direcção ao meu tive a certeza de que havia um problema. Lá comecei a fazer marcha atrás e, aproveitando a entrada de uma garagem, fiz inversão de marcha e fui à minha vida, isto é, cortei à esquerda, na rua a seguir, que era o que deveria ter feito. O pior de tudo é que eu sei muito bem que não se pode cortar ali. Como é que o cérebro dá um comando que não devia? Estava distraído? Não. Estava cansado, mas isso não é razão suficiente. A viagem tinha sido muito cansativa, com muitos engarrafamentos a chegar Lisboa e dentro da cidade. Depois destas aventuras e feito o que tinha a fazer, retornei à minha pequena província sem infringir a lei. Bem, na auto-estrada talvez a não tivesse cumprido com excessivo rigor, como não deixaram de referir em comentário à velocidade a que circulava. Estou com fome, desculpei-me. Curioso, porém, foi a sensação de demora na viagem de retorno. Sem impedimentos, uma velocidade que não se compatibiliza com a existência de radares, e a viagem nunca mais acabava. Aventuras de um condutor que não gosta de conduzir. Com tantas coisas interessantes para ocupar o cérebro e este tem de estar atento aos sentidos proibidos, aos limites de velocidade, aos semáforos, ao pára e arranca, ao vê lá se não bates. Depois, entra-se em contramão e põe-se toda a gente a fazer sinais estranhos, como se quisessem comunicar com um extraterrestre.

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Tempo perdido

Maio já atingiu o meio. A volubilidade humana é terrível. Ao mesmo tempo, quero que o tempo passe depressa e que quase não se mexa. Ele, porém, é uma personagem cruel e impávida. Segue a um ritmo de que só ele sabe a cifra. Uma longa conversa ao telemóvel interrompeu-me os afazeres. Terei a noite para recuperar o tempo perdido. Tempo perdido, esta expressão recordou-me uma promessa feita a mim mesmo de reler o romance de Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido. Hesito se o leio em Francês ou se na tradução de Pedro Tamen. Talvez seja essa hesitação que me tem levado a adiar o projecto, pois ler os sete romances é mesmo um projecto existencial. Foi assim que o encarei ao lê-los, há muito, numa tradução dos Livros do Brasil, que acabei por oferecer, quando comprei as traduções de Tamen. A leitura de Proust é um daqueles casos que exige que o tempo passe muito devagar. Aquilo que tenho para fazer, todavia, seria bom que fosse feito tão rapidamente que nem desse por isso. Hoje é uma daquelas segundas-feiras em que não me ocorre nada de assinalável. Nem tortos para endireitar, nem gigantes para combater. Nada.

domingo, 15 de maio de 2022

O fim do mundo

Há muita gente que não crê no fim do mundo nem que estamos na idade negra, a alguns milímetros de cairmos no mais insondável dos abismos, o nada. Até hoje, eu fazia parte desse grupo numeroso de cépticos relativamente ao destino apocalíptico da humanidade. Até hoje, digo bem. Contudo, depois de um almoço num restaurante italiano em Campo de Ourique, alguém diz que o melhor seria dar um passeio a pé até ao Jardim da Estrela, ao que outro dos convivas responde: isso era o lugar onde os magalas iam namorar as sopeiras. Foi o momento da minha conversão. Como S. Paulo, também eu tive a minha estrada de Damasco. Passei acreditar no fim do mundo. Não porque os magalas namorassem sopeiras na Estrela, coisa sabida por muita gente, mas porque alguém, com menos de quarenta anos, não fazia ideia do que era um magala. Uma revelação de que o mundo está por um fio. Argumentou ainda que sopeira, sim senhora, sabia o que era, mas magala nunca tinha ouvido. O espanto quase me impediu de fechar a boca. O pior, o que só radicalizou a minha conversão, foi quando se explorou o conceito de sopeira. Nada nele correspondia ao conceito histórico de sopeira. O que anda esta gente a fazer nas universidades? Mestrados, doutoramentos, e não sabem o que é um magala e uma sopeira? Quando se ignoram os factos básicos da existência, isso só pode ser o prenúncio do fim do mundo. Eu creio – isto é, passei a crer – que estamos na mais negra das idades, na idade de ferro, no Kali Yuga dos hindus. Estamos na última e mais escura era do ciclo cósmico.

sábado, 14 de maio de 2022

Está de ananases

No mundo da saúde, há uma hierarquia explícita, talvez um regime de castas como aquele que vigora na Índia. Na base, estão os pacientes. Melhor, os pacientes estão abaixo da base, são a poeira sob os pés de Brahma. Não interessa se são ricos, pobres ou nem uma coisa nem outra. São os intocáveis que suportam o edifício que sobre eles se ergue. Utilizo o termo paciente no lugar de doente, não por paciente significar aquele que sofre, o que é a definição correcta do termo, mas por ser necessária muita paciência. A paciência deriva não da doença, mas dos tempos de espera que um qualquer paciente é sujeito numa instituição de saúde, e não me refiro às públicas. Um médico especialista – um verdadeiro brâmane – que se preze nunca fará esperar um paciente menos de uma hora. É uma questão de estatuto e, como se sabe, os médicos nasceram da cabeça de Brahma. Hoje descobri que um técnico – neste caso de cardiologia – tem direito a fazer esperar o paciente – no caso, eu – meia-hora, apesar de me terem contactado para estar lá a uma certa hora. Fiquei grato por não ser um médico a colocar-me um aparelho que dá pelo nome, ele ou o exame, de Holter. Agora, estou ligado a um dispositivo que me vigia o ritmo cardíaco durante 24 horas. É sempre constrangedor o momento em que a menina, pois é sempre uma menina, me diz que posso fazer a minha vida normal, menos tomar banho. Imagino que ela está a sugerir que, apesar de parecer um bombista suicida, se o desejo me assaltar a vida sexual não está impedida. Não faço ideia se haverá nisto algum voyeurismo. Pressinto o técnico e o médico especialista que assina o relatório a fazerem considerações sobre a performance amorosa, talvez a aplicar alguma escala desconhecida para avaliar não as irregularidades do meu coração, mas as da sexualidade. Remeto-me, sempre, à mais rígida continência, senão mesmo à pura castidade. Por aqui está um calor de ananases. Derrete os untos. Está de escachar. E assim acabo com uma homenagem ao autor da Correspondência de Fradique Mendes.

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Assédios

Estava eu numa grave crise de falta de assunto, quando leio uma notícia extraordinária. Os meritíssimos juízes de um tribunal britânico consideraram que chamar a um homem careca é uma forma de assédio sexual. Estabelecem os preclaros magistrados uma analogia na qual revelam uma imaginação não exígua. Comentar, no local de trabalho, a calvície de um homem é equivalente a comentar, no mesmo local, os seios grandes de uma mulher. Imagino que na base da analogia, a fonte que permite o transporte de uma situação para outra, será que cada uma das características é pertença de um só sexo. Assim, como só as mulheres podem ter seios grandes, também só os homens podem ser calvos. É evidente que os juízes não parecem ter grande formação em lógica informal. Há contra-exemplos gritantes que não foram tidos em conta no raciocínio analógico que subjaz à douta sentença. Há homens com seios grandes e mulheres carecas. Para lá deste pormenor, pode-se imaginar, segundo a jurisprudência agora inaugurada, que qualquer referência a uma característica especificamente masculina ou feminina – e sem contar com o próprio sexo – pode representar um acto de assédio sexual. O que vale é que hoje é sexta-feira e, ainda por cima, dia treze. Acabou de começar – esta é uma esplêndida expressão – o ensaio do conjunto da escola aqui ao lado. Não vou perder tempo com o assunto. Reparei que talvez existam adjectivos a mais neste texto. Isso não é uma boa notícia para o estilo, mas é um sinal emancipador para a classe dos adjectivos. Há que libertá-los da má fama e da sua evidente exclusão. Se os substantivos e os verbos podem ser usados sem limite, o que terão feito os adjectivos para ficar mal na fotografia? Preconceitos. Pior do que isso. Uma tentativa de cancelamento da realidade ontológica que essas palavras designam. Os inimigos dos adjectivos e da adjectivação hiperbólica são adeptos de um mundo sem qualidades. Não bastava o homem sem qualidades, temos também um mundo sem qualidades, sem determinações, sem relações.

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Colapsos

Acabei de dar uma vista de olhos pela imprensa. O mundo parece ter entrado numa espiral de turbulência da qual não se vislumbra saída airosa. Não foi isso, contudo, que me prendeu a atenção. Com a minha relutância relativamente à realidade, a qual é sempre pior do que aquilo que se imagina, deixei-me levar pela notícia do dia. Trata-se da primeira imagem do buraco negro que está no centro da nossa galáxia. Tem uma massa 4 milhões de vezes superiores ao Sol, mas não faço ideia o que isso significa. Há coisas que a imaginação humana – pelo menos, a minha – não tem capacidade de processar. A fotografia é desoladora, não me parece ser um sítio onde a realidade seja melhor do que aqui. Apesar de estar no centro, tem um ar de subúrbio. Uma grande cidade, daquelas que se prezam em ser cidade, tem um centro tão atraente que só alguns podem lá viver. Já nas galáxias parece dar-se o contrário. O melhor sítio para viver é nos subúrbios, bem afastados do centro. Um buraco negro forma-se, segundo li, quando a matéria entra em colapso sobre si própria. Isto talvez queira dizer que todos nós somos buracos negros em potência. Todos podemos colapsar sobre nós próprios, embora não faça ideia do que significa a expressão matéria colapsar sobre si mesma. Quando o dia dá lugar à noite, isso significa que o dia colapsou sobre si mesmo e se tornou um buraco negro? Agora, que o crepúsculo se aproxima, vou dar atenção ao colapso do dia.