terça-feira, 31 de maio de 2022

Demolições

Sem glória nem proveito, Maio fina-se hoje. Várias pessoas da minha família escolherem este mês para nascer. Não se queixam nem protestam por ele, em certos anos, não ostentar a aura que o nome anuncia. Talvez todos nós sejamos seres resignados com o mês em que nascemos. Habituamo-nos a ele e até chegamos a pensar que seria impossível nascer num outro. Por desfastio, triste pelo destino de Maio, pus-me a ler A Tragédia da Rua das Flores. No primeiro capítulo, Eça de Queirós, linha a linha, demole a boa sociedade da época. Não fica pedra sobre pedra. Usou não o florete da ironia, mas o camartelo. O segundo acto terminava. O regente, aos pulinhos, brandia a batuta; os arcos das rabecas subiam, desciam, com o movimento de serras apressadas; agudezas de flautins sibilavam; e o bombo, de pé, de óculos, com o lenço tabaqueiro deitado sobre o ombro, atirava baquetadas à pele do tambor, com uma mansidão sonolenta. Sobre o palco, Carlota, muito escangalhada, arrastando aos sacões através da corte a sua cauda enxovalhada, gania. Temo, contudo, que um dia destes seja posto no índex, por escrever coisas como esta: E o episódio aristocrático da sua carreira sentimental fora em Sintra, quando o social Padilhão o surpreendeu nos Capuchos com a Condessa de Aguiar. A Condessa era, é ainda, como um prato de mesa redonda: o que a recebe do seu vizinho da direita, serve-se e passa-a ao seu vizinho da esquerda. Desde então Dâmaso fitava as mulheres de frente, torcendo o buço. Sempre me pareceu que os sociólogos desperdiçam um vasto campo para o seu trabalho. Uma sociologia da literatura não com o fim de compreender as condições sociais onde foram produzidas as obras literárias, mas a investigação da sociedade que essas obras constroem. Isto não teria por finalidade perceber a sociedade do tempo de Eça de Queirós, por exemplo, mas a sociedade que Eça cria para nos levar a pensar que está a demolir a sociedade do seu tempo. E eu, ingénuo, suspendo a descrença e acredito mesmo que ele estava a demoli-la. Não estava, claro. O mundo social onde os homens habitam e o mundo social das obras literárias são como duas rectas paralelas, mas que nem no infinito se encontram.

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