quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Fevereiro e os anjos

Chegámos ao fim de Fevereiro num ápice. Talvez esta sensação seja fruto de o mês ser mais pequeno que todos os outros, mesmo na sua versão maximizada, a dos anos bissextos, como o actual. Não compreendo, e nisto serei acompanhado por muita gente, a razão por que Fevereiro aceitou sem grande contestação a exígua quantidade de dias que lhe foram atribuídos. Há, por parte dos autores do calendário, uma nula preocupação com uma distribuição equitativa dos dias pelos meses. Pergunto-me que concepções de igualdade haveria naqueles a quem Gregório XIII, imagino que cansado do calendário Juliano e desejoso de ter um com o seu nome, encomendou a repartição do ano por meses e dias. Hoje, no mínimo, deveria ser o penúltimo dia do mês e não o lamentável último. Quando se chega a certa idade, a um certo patamar da existência, o nosso espírito concentra-se nas coisas que são decisivas, como a dos dias de Fevereiro ou a do sexo dos anjos, um dos assuntos mais interessantes para discutir, pois consta que eles, os anjos, não o têm. Tê-lo-iam, estou certo disso, caso Fevereiro tivesse mais de 29 dias. A questão é fácil de explicar. Os anjos começaram por ter órgãos genitais, uns masculinos e outras femininos. Contudo, devido ao facto de serem, esses e essas anjos, de terrível beleza, o desejo do outro sexo angélico ocorria apenas nos dias 30 e 31 de Fevereiro, pois os outros dias do ano eles tinham de tomar conta de nós. O turbilhão dos amplexos era enorme e um grande desassossego ia pelas hierarquias angélicas. Chegado Março, o desejo cessava e ficava suspenso por um ano. Ora, a eliminação dos dias 30 e 31 de Fevereiro e quase do 29 teve como efeito a aniquilação dos amplexos sexuais angélicos. Com o passar dos anos, o desuso tornou os órgãos sexuais dos anjos inúteis e, estes, os órgãos sexuais, numa prova da evolução das espécies angélicas, acabaram por desaparecer. Quando se diz que os anjos são assexuados diz-se a verdade, mas nem sempre essa asserção foi verdadeira. Contudo e em relação ao tema dos anjos, não é a questão do sexo, aqui resolvida, que me atormenta. Maior e mais indecifrável é o mistério que atormentou, ou talvez não, os filósofos medievais, e me atormenta a mim, que sou um medieval perdido neste mudo contemporâneo, o mistério de saber quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete. Imagino que sejam legiões, mas há quem defenda que os anjos não dançam, o que torna risível o cálculo e me estraga o tormento.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O pastel de nata

Que posso dizer da mísera fraqueza que me habita? Nada. Sim, nada dizer é a melhor solução e conformar-me com o ser que me cabe. Tendo empreendido, não com muito denodo e entusiasmo, uma viagem numa dieta que me haverá de tirar meia dúzia de quilos que tenho a mais, ao que consta, hoje cedi à tentação de, antes de entrar num sítio onde se vende livros, comer um pastel de nata. Chegado a casa, fui verificar as orientações da nutricionista, e, infelizmente, não estavam lá mencionados os pastéis de nata dentro das coisas permissíveis. A minha primeira reacção ao ler o papel – sim, ela deu-me um papel com instruções, que eu faço o possível para não ler – foi de pensar que a senhora se terá esquecido. Depois, rememorei a consulta e não me lembro de em momento algum ela ter dito que pastéis de nata estavam autorizados. Uma coisa lamentável. Na próxima consulta, terei de lhe explicar que a sua estratégia para me tornar menos deselegante fere a minha identidade. Contar-lhe-ei, como narrador experimentado, que o pastel de nata era o único bolo que, na longínqua infância, eu admitia comer, embora a massa folhada que envolve a nata estivesse excluída, limitando a fazer figura de recipiente de onde, com uma colher de café, eu ia extraindo a nata, sob o olhar benevolente daqueles que me deram o ser. A senhora sempre há-de ter instintos maternais e compreenderá que a sua função não é destruir identidades. No próximo papel, lá virá o pastel de nata dentro das coisas permissíveis.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Silêncios

Alguém usa uma das paredes do prédio para se entregar à percussão, mas a batida é suave, embora com alguma rapidez. Talvez estejam a finalizar qualquer intervenção. Agora, os batimentos pararam e o silêncio é um lago de águas paradas que só o bater dos meus dedos nas teclas agita, desenhando círculos sonoros em expansão na superfície desse silêncio sem nome. Não será silêncio o nome do silêncio? Como é possível escrever silêncio sem nome? Não é muito difícil, respondo, bastará alinhar na sequência correcta as palavras silêncio, sem e nome. Eis uma graçola inútil, concedo. A palavra silêncio designa a ausência de ruído, pelo menos num dicionário de língua portuguesa de larga circulação. Seria melhor referir que o silêncio é a ausência de som perceptível pelo ouvido humano. Este silêncio, todavia, é bem diferente de um outro silêncio, mais fundamental, aquele que resultaria da completa ausência de vibrações sonoras por todo o universo ou por todos universos, caso haja mais do que um. O primeiro é um silêncio acidental; o segundo, essencial. Deveríamos ter dois nomes para designar estes dois silêncios. Teríamos então consciência de que aquilo a que damos inapropriadamente o nome de silêncio não passa de uma surdez circunstancial da espécie humana. Descobriríamos, depois e como corolário, de que não fazemos a mínima ideia do que será o silêncio essencial, o qual só será possível na pura imobilidade de tudo que existe, pois vibrar é já estar fora daquilo que é imóvel. Por isso, um certo evangelista que consta ter tido revelações na ilha de Patmos disse que no princípio era o verbo. Foi a vibração das cordas vocais divinas, presume-se, que, percutindo a matéria imóvel, a animou, a pôs em movimento e lhe insuflou a sonoridade por contágio. Foi assim que começou o mundo. Este é o meu começo do mundo. Se não gostar dele, eu tenho outros. Como se vê, este narrador é um groucho-marxista.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Uma boa decisão

Retornou a segunda-feira, um dia com o péssimo hábito de estar de volta todas as semanas, para obrigar os mortais, aqueles que tinham mergulhado no pequeno lago do fim-de-semana, a saírem da água doce do esquecimento e entrarem na azáfama ditada pela feroz necessidade. Foi o que aconteceu com este narrador. Vestiu-se à pressa e, ainda mal seco das águas do doce nada fazer, enfrentou, sem a espada de S. Jorge, o dragão. Enfrentou, mas não o derrotou, arranhou-o ao de leve com uma faca de cozinha, mas teve de fugir, por causa das labaredas que o maldito cuspiu pela boca peçonhenta. Estou a escrever porque o monstro não contou com a força do vento e o fogo foi arrastado noutra direcção que não a minha. Quando cheguei a casa, há pouco, sentei-me, ainda em sobressalto, e meditei longamente sobre a arte de enfrentar dragões, quando não se tem espada e não se é S. Jorge. O resultado da meditação foi esclarecedor. Se não se tem espada nem se é S. Jorge, então o mais sensato é não se atravessar no caminho de qualquer dragão que por aí ande à procura de confusão. Assim farei.

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Genes e objecções

Tudo seria mais fácil, a começar pela vida e aquilo que se faz com ela e dentro dela, caso Richard Dawkins tivesse razão. Para ele, nós, seres humanos, somos máquinas de sobrevivência, veículos robot cegamente programados para preservar as moléculas egoístas conhecidas como genes. Tudo o que eu sou e tudo o que fiz e possa vir a fazer resulta de uma programação prévia, da natureza, suponho, para que os genes persistam na existência, mesmo quando eu já não existir. Ora, vejamos um contra-exemplo ou uma objecção, como queiram. O daquelas pessoas que tomam a decisão de não se reproduzirem e, em consequência, não permitirem que os seus genes persistam além delas. Dir-se-ia, então, que essas pessoas estavam cegamente programadas para que os seus genes egoístas não se reproduzissem. Há aqui uma inconsistência do programador, pois umas vezes programa para a persistência dos genes egoístas e outras para a sua não persistência. Isto torna a questão interessante. Nós seres humanos temos a convicção de que fazemos escolhas genuínas, que não está programado ter ou não filhos, vestir uma camisa branca em vez de uma azul. Isso, porém, seria uma ilusão. Contudo, e esta é uma segunda objecção, é mais inverosímil atribuir liberdade de escolha a uma obscura instância programadora do que a nós, seres humanos. Isto para nossa infelicidade, pois se fôssemos o puro resultado de uma programação exterior a nós, estaríamos mais descansados quanto à nossa responsabilidade por aquilo que fazemos. Por exemplo, eu não seria responsável pelo conjunto de coisas idiotas que escrevo nestes textos. Fui programado por um autor que, por sua vez, foi programado pela instância programadora preocupada com a preservação dos genes dele. A idiotice não seria minha, narrador, nem do autor, mas do programador genético, digamos assim. Contudo, o que não se consegue perceber é a relação destes textos com a salvação dos genes do seu autor. Se olharmos para os seres humanos, eu sei que nem sempre o espectáculo é edificante, observamos que uma parte substancial das suas actividades em nada contribuem, directa ou indirectamente, para a persistência dos seus genes egoístas. E este é a terceira objecção à teoria do senhor Richard Dawkins. Em resumo, perante a angústia da página em branco, mal de que nunca padeci, tomei livremente a decisão de escrever estas patetices. Também é verdade que em vez de criar objecções à teoria do senhor Dawkins, poderia ter escrito a favor dela, caso o tivesse desejado, o que prova que ele não terá razão, apesar de nestes assuntos nunca se poder provar coisa alguma. Aguardo, não sem esperança, a hora de almoço.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

A vida em Königsberg

O dia não começou mal. A balança estava de bons modos, nada a irritava, por certo, e, ao ser por mim pisada, devolveu-me menos dois quilos do que a última vez. O pior é que Kant estava certo. A razão não foi dada ao homem para que ele atinja a felicidade, pois esta, não poucas vezes, aspira a coisas que são contraditórias. A minha felicidade ao ver o resultado na balança é o outro lado da minha infelicidade perante as coisas de que me tenho abstido nestes últimos dias. Não que fosse dado a excessos pantagruélicos, mas tinha prazer na despreocupação perante o que se come. Esse estar despreocupado é a antecâmara do prazer da mesa e de outros, por certo. Em resumo, ando irritadiço como acontece quando um fumador deixa de fumar. Tenho essa experiência. Aliás, repeti-a várias vezes. Nunca fui um grande fumador, mas há partes da minha vida em que fumei com algum afinco. Contudo, com um acto de vontade e alguns dias de irritação, deixava de o fazer sem grandes problemas. Posso fumar durante as férias, após as refeições, mas mal acaba o intervalo entre duas épocas de submissão à necessidade nem me lembro dos cigarros. Até aqui sempre me julguei imune a adicções, mas verei agora se isso é verdade. Aliás, essa imunidade pode ser um problema. Sou tão imune à adicção ao tabaco quanto ao do exercício físico. Mais uma vez, aquele senhor que nasceu em Königsberg parece ter razão. A felicidade de não ser adicto às coisas viciosas é o contraponto de o não ser às coisas virtuosas. O melhor é trocar a ideia de uma moralidade baseada na felicidade por uma de submissão ao dever. Devo fazer exercício físico e não devo fumar, nem comer o que sabe bem e faz mal. A vida em Königsberg devia ser uma grande chatice.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Nódoa

Temo mesmo que seja uma nódoa. Não, não se trate de mim, mas de uma mancha mais escura no punho esquerdo do pulôver que trago vestido. O cinzento mesclado não me dá a certeza, mas o formato da mancha inclina-me para uma quase certeza ou para uma ausência razoável de dúvida. Assim como as moscas e as melgas, também as nódoas têm uma viva atracção por mim. Caem sobre o que visto das mais inesperadas maneiras, numa volúpia que me deixa desconcertado. Já tentei, e não foi apenas uma vez, negociar com elas. Prometi-lhes compensações financeiras se elas me largassem de mão. Nada as comoveu. Submeto-me ao calvário da enodoação, ao opróbrio de ouvir os comentários condescendentes desta atracção fatal. Esta é a minha aventura do dia, a nódoa no punho esquerdo do pulôver cinzento, comprado há dias para logo ser sujeito à mancha, à mácula, ao borrão, enfim à desonra de ser minha propriedade. Podia narrar outras façanhas, a de uma certa visita que fiz, a de uma coisa a que assisti. Podia inclusive contar aqui a verdadeira façanha que foi conseguir comprar online bilhetes para o próximo jogo de Râguebi da selecção nacional. Vai a família toda e as mais entusiastas são as minhas netas. Contudo, nada disso se compara com o episódio da nódoa que ensombrece o punho esquerdo do meu pulôver cinzento. Espero que seja cinzento, pelo menos, tão cinzento quanto o céu desta sexta-feira.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Um motim

O tempo amotinou-se e o Inverno voltou. Olho para a frase e não sei o que fazer com ela, nem de onde veio. Há frases que têm esta natureza. Chegam sabe-se lá de onde e ninguém percebe a sua utilidade. O tempo não faz parte da marujada que segue nesta nau onde estamos todos embarcados, uns como tripulação, outros como passageiros. O tempo pode fazer parte da paisagem ou mesmo do oceano onde navegamos, mas marujo não é. Como podia ele amotinar-se? Não podia. Contudo, a frase permanece no início do texto, límpida e clara. A escrita, também a fala, tem destes mistérios. Vem à boca de cena uma frase e não se sabe como lidar com ela. Será que é para classificar como verdadeira ou falsa? Será que é para tomar como indicação de alguma coisa que ainda não percebemos? Será que resultou apenas de um feliz – ou infeliz – acaso, tendo-se juntado aquelas palavras e naquela ordem sem que houvesse um desejo de as juntar e de com elas significar fosse o que fosse? Quanto mais penso nisso, mais perplexo fico. A certa altura, penso mesmo em recorrer ao Guia dos Perplexos, de Maimónides. É o próprio autor que me desaconselha tal aventura. O objectivo deste tratado não é tornar compreensível o significado de palavras que aparecem nos livros proféticos para o leigo e o principiante, diz ele, pensando, nesses anos que levou a escrever a obra – 1185 a 1191 –, neste narrador. A frase inicial deste texto poderá fazer parte de um livro profético que ainda não foi escrito ou que tendo sido escrito, há muito se perdeu. Uma coisa é verdade. Não tenha ainda sido escrito o tal livro profético ou faça parte das obras perdidas, eu sou um leigo ou um principiante, ou nem uma coisa nem outra, dessa religião que ainda não existe ou que acabou há muito. Chego ao fim do texto e não consigo responder à pergunta que me obsidia, sempre que o tempo se amotina, o Inverno volta?

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Uma questão de grau

Estou num sítio onde, por vezes, exerço certas funções e oiço dizer é preciso ser objectivo ao analisar a situação. Fico a pensar nesse imperativo de objectividade expresso como se fora uma necessidade. Uma necessidade imperativa. Talvez todas as necessidades sejam imperativas. Sob a frase proferida encontra-se uma crença dissimulada. Essa crença sustenta uma oposição radical entre uma perspectiva subjectiva, visão privada de um sujeito, e uma perspectiva objectiva, visão do mundo tal como ele é. Por exemplo, oiço, neste momento, o irritante ranger dos baloiços do parque aqui em baixo. Será que aquilo que oiço, e que me irrita, é uma audição daquele acontecimento tal como ele é ou não passa de uma audição puramente subjectiva, como se eu estivesse a ouvir coisas, coisas que talvez nem existam. Um filósofo como Thomas Nagel deixa perceber que nem a objectividade nem a subjectividade são pólos opostos e incomunicáveis do modo como entendemos o mundo, por exemplo, como oiço o ranger dos baloiços. Objectividade e subjectividade estão num continuum e são uma questão de grau. A minha audição do ruído dos baloiços pode ser mais ou menos objectiva. Representar as coisas que se passam no mundo e as que se passam em nós, que também estamos no mundo, é deslocarmo-nos numa linha, talvez numa estrada que liga duas povoações relativamente distante. A situação que se deveria analisar objectivamente, nunca o poderá ser, pois ninguém tem qualquer possibilidade de se transformar nessa situação objecto, deixando de lado a subjectividade onde nasceu. A minha vontade ao ouvir a injunção era intrometer-me e explicar que analisar uma situação é fazer uma viagem, com avanços e recuos, entre a minha consciência e o mundo, no caso, a tal situação. De imediato, porém, ouvi em mim o eco de um ensinamento arcaico, não te metas onde não és chamado. Não me meti e falhei assim a produção de uma aventura que me enriqueceria a gesta e haveria de contribuir para a minha glória.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Despedir-se do esquecimento

Cheguei a casa já a noite tinha caído. Uma série de assuntos reteve-me. Entre eles, a compra de um livro na mais antiga livraria da terra. Há muito que não entrava lá. O tempo não melhorou o sítio, como se todas as coisas tivessem uma época. Comprei lá muitos livros. Depois, deixou de estar nos meus caminhos, como de muitos outros. Também os livros foram mudando à procura de leitores, de outros leitores, que talvez não existam ou não sejam leitores. O livro que por lá comprei não vem ao caso, mas faz parte da história local. Não foi um amor à paróquia que me impeliu à compra, mas uma certa curiosidade, não particularmente excessiva. Se fosse excessiva, tinha-o adquirido em 2021, quando foi publicado. Este deambular pela cidade, coisa que ocorre excepcionalmente, impediu-me de ir caminhar ao fim da tarde. Tive de adiar para depois de jantar ou talvez para amanhã. Não me sai da cabeça a livraria. Estantes, antigamente repletas de livros, estavam agora ocupadas por bugigangas, coisas para as quais não olhei mais do que uns segundos, apenas para me certificar do que estava a ver. Este tipo de morte é mais doloroso do que o súbito anúncio de um fecho. É uma agonia que se prolonga. Diante de mim está um poema de Herberto Helder. Começa assim: Há sempre uma noite terrível para quem se despede / do esquecimento. Para quem sai, / ainda louco de sono, do meio / de silêncio. Uma noite / ingénua para quem canta. Despedir-se do esquecimento foi o que me terá acontecido ao entrar naquela livraria. Imagino que rememorar e despedir-se do esquecimento não sejam, em absoluto, a mesma coisa. Contudo, o sono nunca me enlouquece.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Fevereiro estival

Está um dia esplêndido, oiço. Confirmo. Parece já uma Primavera adiantada. Fenómenos destes em Fevereiro não são inusitados. Lembro-me de há muitos anos, num Fevereiro em que era estudante universitário, ter rumado a Sesimbra. O motivo apagou-se. Dessa viagem, talvez com falta às aulas, mas não estou certo, recordo apenas que decidi ir ao mar. Tomei banho. O dia estava a pedir. Os efeitos secundários, porém, vieram depois. Nada de extraordinário, apenas dores nas pernas que se prolongaram durante algum tempo. A água estava fria, muito fria. Nesse tempo, eu era outro, gostava de ir à praia e de tomar longos banhos de mar. Depois, perdi qualquer interesse pelas idas à praia e por banhos de mar. Não rejeito sentar-me numa esplanada e olhar para o mar, como se olhasse para um mundo primordial. Desviei-me. Um dia de Fevereiro estival não é um acontecimento excepcional, tão pouco se poderá acusar as alterações que o clima vais sofrendo às mãos do homem. Contudo, um mês de Fevereiro quase todo ele a anunciar a Primavera é excessivo e talvez seja sinal de que alguma coisa vai mal. Vou caminhar, com a insensata esperança de me reconciliar com a balança, mas terei de esperar uma hora menos quente. Isto, penso, é um problema.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Inverosímeis e absurdos

Parece que se está numa Primavera já avançada, pronta a despenhar-se no abismo do Verão. Fui caminhar na serra, aquela que assombra este concelho, para desenfastiar e por causa de umas altercações com a balança, uma impertinente, que em vez de ficar grata por lhe ter comprado uma pilha e a ter ressuscitado, olhou-me de lado e devolveu-me um peso dos antigos. A manhã estava esplêndida e a serra não lhe ficava atrás. Nos caminhos que fiz havia ainda grandes poças de água. Algumas, verdadeiros lagos, que tinham de ser contornados por margens estreitas, nas quais mal cabia um pé. Não foi uma aventura, pois naqueles lagos não havia nem vikings nem piratas holandeses a que tivesse de combater. Foi apenas caminhar por aqueles caminhos que não levam a lado nenhuma, mas que me levaram para longe do carro e a ele me trouxeram, depois de uma dose razoável de vitamina D – consta que apanhar sol fomenta a vitamina D no organismo – e quase cinquenta pontos cardio. Isso não me impediu de, mais tarde, ler coisas como a seguinte: A arte do possível em grande escala gravita à volta do grande esforço que consiste em apresentar o inverosímil como inevitável. O autor da frase é Peter Sloterdijk e o contexto não vem aqui ao caso. Ao ler a frase fui assaltado por memórias de outras leituras e cheguei a uma frase apócrifa de Tertuliano, que por ser apócrifa não terá sido por ele escrita, credo quia absurdum, isto é, creio porque é absurdo. O inverosímil de Sloterdijk e o absurdo atribuído a Tertuliano têm poderes para gerar crenças e crenças tão fortes que parecem inevitáveis. Não é de admirar, nestes tempos, que existam exércitos de crentes das coisas mais inverosímeis e absurdas, exércitos esses que não descansarão enquanto não impuserem pela força, pois amam a decisão da violência, as suas crenças a todos os outros, não havendo lugar para ateus nem se quer para agnósticos. Ateus e agnósticos relativos aquelas crenças, entenda-se.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Cacografia

Há poucas coisas em que este narrador esteja de acordo com o autor que o criou e lhe faz escrever o que escreve, para perdição sua, por certo. Uma delas, talvez aquela onde há mais fervorosa concordância, é um desprezo visceral pelo acordo ortográfico parido em 1990. Hoje, no Público, José Pacheco Pereira torna a pôr em relevo o desprezível que é o linguajar nascido com essa infeliz entente. Num cartaz partidário, daqueles que enxameiam as campanhas eleitorais e cuja finalidade ainda ninguém conseguiu perceber, está escrito, em letras garrafais para se notar melhor, MAIS AÇÃO. Ora, e muito bem, pergunta o autor do artigo o que está ali a fazer a São, pois é já assim que muita gente lê ação. Também não faltam pessoas que lêem recessão quando está grafado receção. Sem querer, nem sempre o querer é poder, meter-me em política, esta história do acordo ortográfico – mais valia escrever o acordo cacográfico – é típica da política portuguesa. Esta tem, independentemente dos protagonistas, dois objectivos centrais. Acabar com tudo o que funciona bem e prolongar indefinidamente qualquer disparate. Como se vê, o autor tem algumas razões para proibir este narrador de se meter em política. Mal tem uma oportunidade, cai logo em generalizações precipitadas e entrega-se à hipérbole, como se uma hipérbole fosse a descrição exacta do mundo. Todo a gente sabe, depois de ler em Descartes o papel hiperbólico da dúvida metódica, que a hipérbole não é um tropo para levar a sério. Se somos tentados em extasiarmo-nos perante uma metáfora, uma metonímia, até mesmo diante de uma anáfora, só nos pode dar vontade de rir, ou chorar, se surge diante dos olhos uma hipérbole, e o acordo cacográfico de 90 não passa de uma hipérbole da insensatez ou, para ser mais preciso, da estupidez com que se tomam muitas decisões.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Mitos e crises

O conjunto musical da escola aqui ao lado continua a abrilhantar o cair das tardes de sexta-feira. Fá-lo como se estivesse a animar um baile de província dos anos setenta. Será que tocam movidos pela nostalgia de um tempo que se devorou ou tocam para que sintam essa nostalgia que a memória não consegue engendrar ao expressar-se sobre o que passou. A questão não é diferente daquele que parece animar antropólogos sobre se o mito deu origem ao rito ou foi o contrário. Há uma tese, disputada como todas as teses, que me agrada, pelo menos hoje. O rito é anterior ao mito. O rito é um conjunto de práticas que procuram uma certa eficácia sobre o mundo. Tem uma natureza prática e performativa. O mito nasceu quando as regras rituais se tornaram incompreensíveis e foi necessário encontrar explicações que enquadrasse os ritos. Se eu falasse com esses músicos que se tornam uns vizinhos exuberantes nas tardes de sexta-feira, por certo que encontraria neles uma mitologia, mas esta nasceu das suas práticas rituais ao longo destes anos. O seu ritual produziu a nostalgia dos tempos em que eram novos, alguns são da minha idade, que se transformou num mito relativamente privado. Perante mim, jaz um pequeno livro com três conferências do filósofo Leo Strauss. Uma delas, data de 1962, tem por título A Crise do Nosso Tempo. Contemplo-o e sinto uma absurda satisfação. Penso neste sentimento e encontro-lhe uma explicação. Viver em crise parece ser a realidade quotidiana não do nosso tempo, mas de qualquer tempo. Ora, se todos os tempos são tempos de crise, isso significa que não existe crise alguma e eu não vivo num tempo de crise. Refastelo-me nesta evidência e contemplo a noite que desaba sobre a cidade. Ouvem-se vozes na rua, mas tudo desfila em direcção ao silêncio.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O bocejo

Olho para a rua e fico indeciso. Não sei se fui eu ou o dia que bocejou. O acontecimento foi recente, mas a recência não é garantia de retenção pela memória. Haverá quem tenha certezas e afirme que o dia não bocejou. Os dias nunca foram vistos a bocejar. Isto, porém, não passa de uma falácia, uma das mais simplórias. O facto de algo não ser observado não significa que não aconteça. Fazemos demasiadas vezes uma transição injustificada entre o conhecimento e a realidade, ou, em filosofês, entre a epistemologia e a ontologia. Os dias também têm boca, de tal modo que o actual devorou o anterior, mas já se enfastiou e acabou por abri-la para expressar o sono que lhe ia na alma. Também têm alma os dias e não vale a pena clamar contra este narrador acusando-o de os, aos dias, estar a antropomorfizar. Assim como nos olhos se expressa a alma humana, também no céu se expressa a alma do dia. Olhamo-lo e, de imediato, percebemos a alegria ou a tristeza, o desejo ou a apatia, o amor ou o ódio. Ora, se vemos isso no céu, então os dias têm alma. Resta discutir a vexata quaestio se essa alma é mortal ou imortal. Se for mortal, é possível que se dissipe à meia-noite. Por isso, essa hora será perigosa, pois é nela que o dia perde a sua alma. Isto, todavia, é especulativo. O perigo da meia-noite pode vir de outro lado, pois a alma dos dias será imortal. Uma das possibilidades é existir no outro mundo, um coleccionador de almas dos dias da Terra. Ele guarda-as e ao guardá-las elas mantêm-se vivas, pois tudo o que recebe guarda permanece na existência. Acho que me desviei do ponto central. Quem, eu ou o dia, bocejou? Não me lembro de ter bocejado, mas isso também não prova que o não tenha feito. Inclino-me para que não tenha sido eu, mas que, estando sozinho, escutei um bocejo, lá isso escutei.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A grande substituição

Talvez exista progresso no mundo. Por aqui, há muito tempo, existia uma taberna famosa, frequentada pela classe média local, que se concentrava numa área apertada da vila, com os seus negócios, consultórios e outros interesses. Hoje, há, para o mesmo tipo de pessoas, mas num outro lado mais aberto da agora cidade, um bar de tapas, onde o vinho é seleccionado, a ementa está de acordo com os tempos modernos e o tipo de estabelecimento. Havia múltiplas padarias, que foram fechando devoradas pela boca informe das grandes superfícies. Abriu, porém, há uns tempos já, uma padaria muito diferente das antigas, que se preocupa com a qualidade e a diferenciação. Já falei dela por aqui. Havia uma casa, um ícone do comércio local, propriedade de dois irmãos, que fazia chaves e consertava chapéus de chuva. Fechou, pois os irmãos envelheceram e acabaram por morrer. Agora há uma casa, também de dois jovens irmãos, que não conserta chapéus de chuva, mas faz chaves, programa comandos, trata de fechos centrais de automóveis ou de portões de garagem que se movem devido à electrónica. Eis a grande substituição. As novas gerações tomam o lugar das mais velhas, cujos filhos nunca estiveram interessados nos negócios dos pais. A vida tende a reproduzir-se e por isso a persistir. Será isso o progresso, uma grande substituição.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Uma bonomia condescendente

Só agora, já passam das seis da tarde, é que me lembrei que é Dia de Carnaval. Na rua, não avistei qualquer movimento carnavalesco. Antigamente, sempre apareciam uns mascarados espontâneos que espraiavam a sua tristeza pelas ruas. Agora, cada um transporta a tristeza como pode, poupando os outros às suas figuras. Um avanço civilizacional, penso. É plausível pensar que o Carnaval seja uma reminiscência de festividades dionisíacas. Contudo, ao perder o carácter sagrado, o Carnaval alienou a sua natureza mais funda e tornou-se num divertissement profano e superficial, um exercício de comércio turístico. Por aqui, o dia tinha cara de Quarta-feira de Cinzas. Talvez esta tenha sido antecipada. Troquei a folia pelo trabalho, o que poderá ser visto como uma forma de penitência quaresmal, mas talvez a verdade seja outra, a minha incapacidade para ser um verdadeiro folião. Há pessoas que têm um dom, diria mesmo uma vocação para foliar, outras há, pobre delas, a quem o fado não concedeu essa inclinação e não sentem qualquer impulso para a exibição de uma alegria espaventosa. Talvez prefiram alegrias mais secretas, ocultas do público. Desprezam a gargalhada, preferem um sorriso. Impedem-se o escárnio e o maldizer e cultivam a ironia. Para estas, não há Carnaval, pois, há, muito descobriram que a vida quotidiana é um Carnaval, que olham de longe não sem condescendente bonomia.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A natureza recalcitrante

David M. Estlund abre o capítulo seis do seu livro Utopophobia – on the limits (if any) of Political Philosophy com uma citação de outro filósofo, Thomas Nagel, retira do de Equality and Parciality. A citação diz Assim um inicialmente atractivo ideal moral é bloqueado pela recalcitrante natureza humana. Este ideal moral tinha uma expressão política. Deixemo-la, todavia, de lado. O problema não é daquele ideal moral em particular. Existe sempre um conflito entre qualquer ideal moral e a natureza recalcitrante dos seres humanos. Aliás, só existem ideais morais porque a nossa natureza é aquilo que é, recalcitra sempre que vê os seus desejos limitados. Por vezes, ela é tão ardilosa que tenta mostrar como ideal moral o que é imoral. Nietzsche, na sua diatribe contra a moral platónico-cristã tentou convencer os leitores, e alguns terá conseguido persuadir, de que ela era a expressão da imoralidade, de uma moral de escravos para enlear nas suas artimanhas os senhores. Aqui o ardil estará do lado de Nietzsche, que talvez imaginasse pertencer a uma casta superior e que não estaria submetido aos imperativos morais do homem comum. Que tenha enlouquecido parece ser um argumento poderoso contra o seu pensamento, mas talvez este seja um pensamento de um escravo incapaz de perceber o super-homem e uma moral que está para lá do bem e do mal.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Coroas de canela e amêndoa

Acabei de comer duas fatias da coroa de canela e amêndoa. Podia – e deveria – ser frugal, mas a tentação foi forte e achei que o melhor seria consumar a tentação em vez de a evitar. O resultado parece convincente. Agora, não me apetece mais nenhuma fatia.  A padaria que um casal novo decidiu abrir nesta terra onde levo a minha obscura existência de narrador em busca de narrativa é um centro de tentações. Tanto pelo pão como pela pastelaria. Vê-se que tudo é pensado, que nada resulta de um hábito instalado, que, numa coisa tão prosaica como fazer pão, há uma grande vontade de inovação, sem que se encha a boca com palavras como inovação, empreendedorismo e outros mantras com que os portugueses disfarçam a sua falta de criatividade e a sua incapacidade para empreender seja o que for. O resultado é um discreto, mas efectivo, fomento da gula, com a desfaçatez de tornar um trivial pão de trigo num objecto propiciador de pecados mortais. Não estou a afirmar que tudo aquilo resulta de um pacto com o tinhoso, mas imagino que seja uma feliz exploração de alguma abertura que tenha havido no reino dos céus. Coloquei o problema, ainda há pouco, ao padre Lodo, na nossa conversa dominical. A resposta que me deu foi que quando fosse a Lisboa não me esquecesse de lhe levar um pão de trigo, outro de centeio e duas coroas de canela e amêndoa. Não compreendo, disse-lhe. É um excesso para uma pessoa e não me parece que seja suficiente para aqueles que partilham a residência da Companhia. Não se preocupe, respondeu, conheço bem as pessoas, as frugais, as moderadas e as que pouco se freiam. A encomenda está adequada à natureza dos residentes. Bem, respondi, não tenho nada que ver com o assunto, mas não queria ser o causador, ainda que involuntário, da perdição de ninguém. O pão, respondeu o meu amigo, é o Corpo de Cristo, e esse não perde ninguém. E as coroas de canela, perguntei. Não me parece que sejam coroas de espinhos, acrescentei. Do outro lado, apenas se ouviu um riso, e a conversa mudou para assuntos políticos, dos quais não me é permitido aqui falar.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Poupem-me as evidências

Seremos, de facto, um povo com QI baixo. Nos momentos em que vejo televisão, e são poucos, concentro-me num certo canal desportivo europeu. Não é que dê atenção aos desportos que por lá se exibem. Presumo que sejam aqueles que os canais comercias não querem. Dou alguma atenção ao snooker e ao ciclismo. Aos outros deixo-os ficar por ali, sem que lhes dê a mínima atenção. Infelizmente, os dois desportos que gosto mais de ver, o râguebi e o hóquei no gelo, foram comprados pelos canais comerciais. Ora, havia uma coisa que me agradava bastante no canal em causa. A qualidade da publicidade. Anúncios internacionais, muito poucos, e muito bem feitos, inteligentes e esteticamente apurados. Descobri agora que a política de publicidade da estação terá mudado e são passados anúncios portugueses. Também são, felizmente, poucos. Cada vez que vejo um sinto-me insultado. Parece que a publicidade dirigida aos portugueses é feita a pensar em mentecaptos que precisam de se babar com um engraçadismo soez. São anúncios dirigidos ao grande público, mas é preciso descer tão baixo na escala estética e moral? Se os publicitários assim organizam as campanhas publicitárias, então é porque quanto mais idiota for a publicidade mais consegue ela vender. Desconfio que a minha atenção, já reduzida ao mínimo, ao canal desportivo vai desaparecer por completo. Se nós portugueses temos assim um QI tão baixo, prefiro que me poupem às evidências.