terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Silêncios

Alguém usa uma das paredes do prédio para se entregar à percussão, mas a batida é suave, embora com alguma rapidez. Talvez estejam a finalizar qualquer intervenção. Agora, os batimentos pararam e o silêncio é um lago de águas paradas que só o bater dos meus dedos nas teclas agita, desenhando círculos sonoros em expansão na superfície desse silêncio sem nome. Não será silêncio o nome do silêncio? Como é possível escrever silêncio sem nome? Não é muito difícil, respondo, bastará alinhar na sequência correcta as palavras silêncio, sem e nome. Eis uma graçola inútil, concedo. A palavra silêncio designa a ausência de ruído, pelo menos num dicionário de língua portuguesa de larga circulação. Seria melhor referir que o silêncio é a ausência de som perceptível pelo ouvido humano. Este silêncio, todavia, é bem diferente de um outro silêncio, mais fundamental, aquele que resultaria da completa ausência de vibrações sonoras por todo o universo ou por todos universos, caso haja mais do que um. O primeiro é um silêncio acidental; o segundo, essencial. Deveríamos ter dois nomes para designar estes dois silêncios. Teríamos então consciência de que aquilo a que damos inapropriadamente o nome de silêncio não passa de uma surdez circunstancial da espécie humana. Descobriríamos, depois e como corolário, de que não fazemos a mínima ideia do que será o silêncio essencial, o qual só será possível na pura imobilidade de tudo que existe, pois vibrar é já estar fora daquilo que é imóvel. Por isso, um certo evangelista que consta ter tido revelações na ilha de Patmos disse que no princípio era o verbo. Foi a vibração das cordas vocais divinas, presume-se, que, percutindo a matéria imóvel, a animou, a pôs em movimento e lhe insuflou a sonoridade por contágio. Foi assim que começou o mundo. Este é o meu começo do mundo. Se não gostar dele, eu tenho outros. Como se vê, este narrador é um groucho-marxista.

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