sábado, 23 de outubro de 2021

Música vesga

Quando chegamos a eles, esperamos que sejam gloriosos e quase eternos, mas os sábados são tão triviais como quaisquer outros dias. Fazem a única coisa que um dia sabe fazer. Passar. Comecei com a ida ao centro de inspecção com um carro. Na verdade, um ancião. Descobri, ao atentar na documentação, que o pobre nem chega a fazer 2 000 km por ano. A maior viagem que faz é de 100 km para um lado e outros 100 km de retorno a casa. É verdade que nos últimos dois anos a pandemia o impediu de andar por aí, mas sem ela duvido que passasse dos 2 500 km. Tenho pena dele, pois sempre que são viagens a sério, é dispensado e deixado a dormir ao relento ou na garagem. Depois, de inspeccionado recebeu a aprovação, mas parece que terei de mandar regular os faróis de nevoeiro. A lei mudou e a incidência da luz ficou desactualizada. A inspectora comentou que sempre que a lei muda não é para favorecer o cidadão. Pensei que havia nela uma certa sabedoria e sorri. Ela não viu o meu sorriso, pois eu estava de máscara, como ela. Fiz um esforço e não consegui lembrar-me da última vez que usei, neste carro, os faróis de nevoeiro. Agora, o sábado entristece-se. Uma luz mortiça embate nas paredes e chega a mim como uma onda de melancolia. Descubro que um livro comprado há dias em Lisboa é exactamente igual a um que tinha comprado há uns anos. Maldigo a memória e deixo-me embalar pela música vesga das tardes de província.

4 comentários:

  1. Mas não é o melhor dia da semana?
    Sempre gostei deles, talvez pela reserva de tempo para café matinal e jornal. E uma fatia de bolo rainha não calhava nada mal:)
    ~CC~

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    1. Também os meus sábados foram assim. Café com jornais, de manhã. Deixei de ler jornais em papel e também suprimi a ida ao café, a não ser nas férias. Aderi à moda de beber café em casa, um café encapsulado. Também os velhos cafés morreram.

      Sim, o bolo rainha é uma tentação.

      HV

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    2. Oh...eu jamais abandonarei (só por motivos de força maior). O ruído, o cheiro, os dedos no papel...a observação humana...tudo isso é insubstituível pela máquina que também possuo.
      ~CC~

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    3. Em muitos lugares, os cafés morreram. Há apenas sítios onde se toma café, uns mais prosaicos, outros mais a armar a nem sei bem o quê, mas cafés, cafés, por aqui já não há. Curiosamente, lembro-me de ir a cafés desde muito cedo (ainda nem bebia café, nem lá perto), com o meu pai, aos domingos de manhã, talvez na hora em que a minha mãe ia à missa. Era um acontecimento, tinha direito a livros de banda desenhada, conhecidos como livros de cowboys, literatura não muito bem vista à época, mas que fez de mim um leitor. Esse mundo, porém, acabou.

      HV

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