domingo, 24 de outubro de 2021

Rainhas

Não é pequena coisa o espírito comercial e a livre iniciativa. Digo-o sem a mínima ironia. Operam verdadeiros prodígios e nunca deixam de nos maravilhar. Já hoje comi um recente doce tradicional de Natal e ainda nem chegámos aos Santos. Por aqui, ainda os particulares, neste caso as particulares, não se entregam aos rituais das broas, e já se vendem Bolos-Reis e Bolos-Rainhas. Foi um destes últimos que foi vítima da minha gula. Uma pequena parte, esclareça-se. Durante décadas só conheci o Bolo-Rei, depois a livre-iniciativa preocupada com a infracção aos princípios da igualdade de género introduziu o bolo consorte. Como acontece sempre, o que vem depois é francamente melhor. Também no acto da criação Deus deu vida a Adão, mas temendo algum desvio narcisista ou práticas indecorosas e solitárias, tirou-lhe uma costela e de lá nasceu a Eva, incomparavelmente mais interessante que o pobre descostelado. Mesmo no Xadrez as Rainhas são muito mais poderosas que os Reis. É certo que se este morrer de xeque-mate o jogo acaba, mas o coitado mal se pode mover pelo tabuleiro, enquanto a Rainha desloca-se por ele, grácil e ameaçadora, não havendo peça que o adversário mais tema. Se ela morrer ou for feita prisioneira, o que é o mesmo, o jogo não acaba e ela, por acto de magia, pode voltar ao tabuleiro pela promoção de um peão. Pena que Ovídio tenha escrito as Metamorfoses sem conhecer a do peão em rainha. Mais grave que isso é, porém, a possibilidade de um Rei, devido à promoção dos peões, ter mais de uma Rainha. O que pode ser concebido como um ataque à família monogâmica. Isto levanta sérios problemas e estes não se resumem aos aspectos teológicos da questão. O domingo afunda-se no mar da noite. Já estava com saudades de umas frases a cair para o kitsch.

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