Entrego-me ao anacronismo. Deveria contar uma aventura de hoje, mas não encontrei nenhum torto para endireitar, nenhum gigante para pôr na ordem. Resta-me narrar uma aventura na qual, no lugar de ser um glorioso agente, não passo de um glorioso paciente. Tudo começou há umas semanas quando, apenas para tranquilizar o espírito, talvez porque não fizesse meditação transcendental, um cardiologista, rapaz da idade dos meus filhos, achou por bem mandar-me fazer uma ressonância magnética ao coração. Disse-me que aquilo era um bocado chato, pois demorava cerca de quarenta minutos. Ontem lá fui fazer a coisa para tranquilizar o espírito. Descobri, no acto de pagamento, que afinal não era uma ressonância magnética, mas três. Uma morfológica, outra funcional e a terceira para estudo da perfusão do miocárdio. Quando olhei para a requisição feita pelo médico, confesso que não consegui ler coisa alguma do que estava escrito. Pensei que ele escrevia num alfabeto que eu desconhecia, mas que haveria nos centros de imagiologia hermeneutas especializados e infalíveis na interpretação. A aventura, que supera as do Cid e do Quixote, senão mesmo as de Ulisses, de Eneias e do peito lusitano, consiste em entrar numa espécie de túnel, onde se fica muito quieto, com uma buzina na mão para o caso de dar para o torto, e se ouvem ordens através de uns auscultadores. Ainda me perguntaram se queria música, mas declinei tendo em conta o que os técnicos estavam a ouvir. Que ordens eram essas? Eram muito claras. Um técnico dizia: encha os pulmões de ar, despeje-os, não respire. Ouvia uns sons cortantes e estranhos. Quando paravam, ouvia a mesma voz: pode respirar. A partir de certa altura comecei a contar as emissões sonoras. Desconfiei que estava perante uma mente caótica. A do técnico, claro. Umas vezes, apenas havia a emissão de um desses sons, outras vezes ultrapassavam as vinte – cheguei a contar vinte e cinco – sem que um padrão lógico se me apresentasse ao espírito. O meu medo – um herói também tem medo – foi que ele se esquecesse de dar a ordem para voltar a respirar. Cheguei a imaginar-me num sarcófago. O momento mais perturbador aconteceu, porém, por volta da meia-hora de exame. Estava à espera de ouvir o técnico a dar as suas ordens quando chega até mim uma voz feminina. Fiquei de tal maneira perturbado que nem percebi que também ela dava as mesmas ordens. Talvez o técnico tenha precisado de ir à casa de banho, pensei depois. Após uns instantes de confusão, lá me recompus, e fui obedecendo. Até que chegou o fim, entraram pela sala umas raparigas para me livrarem da parafernália que me envolvia. Pensei ter chegado a Ítaca e estar rodeado de Penélopes. Descobri, porém, que era uma ilusão. Apenas queriam que eu me fosse dali para fora, que lhes desamparasse a loja, que elas tinham mais que fazer. Obedeci, claro, pois a obediência é a maior virtude de qualquer herói.
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