A
disposição das coisas impede-nos de compreender o que se oculta sob essa
disposição. Foi esta a primeira lição que tirei ao ler Se não fosse a vida
estender-se numa linha contínua, talvez ela tivesse reparado a certa altura que
tinha dobrado uma esquina. O excerto é o começo de um breve texto
denominado “Borboleta branca”, de O Livro Branco, de Han Kang. A linha
contínua do tempo oculta-nos tanto as mudanças de rumo no espaço como as que
acontecem na existência. Acumulamos tempo até que o tempo se nos acabe, mas
essa acumulação hipnótica esconde outra acumulação, a das esquinas dobradas, as
etapas existenciais que só sabemos que o são quando estão acabadas e se
tivermos muita sorte e possamos, por instante, quebrar a hipnose que o tempo
faz cair sobre nós. Imaginemos que, mortos, somos levados a um tribunal para
prestar contas. Não nos perguntarão, por certo, quantos segundos acumulaste ao
longo da vida. O promotor público perguntará: quantas esquinas dobraste?
Escutada a resposta, dirá vamos agora examinar se as que dobraste são as
certas ou se te transviaste no caminho. Talvez o defensor nomeado proteste,
argumentando que a existência de esquinas certas ou erradas é uma presunção do
promotor, uma mera conjectura que não tem em consideração que o visado, ao
abordar uma esquina para a dobrar, está sempre convicto de que é a certa. A
discussão entre o promotor e o defensor pode durar várias eternidades, sem que
se chegue a alguma conclusão, deixando o visado sem julgamento, isto é, sem
punição nem absolvição. Seja como for, o melhor é dar atenção às esquinas que
se escondem sob a linha do tempo e também às do espaço, não vá toparmos com
quem não queríamos ver.
Sem comentários:
Enviar um comentário