sexta-feira, 10 de maio de 2024

Esquinas

A disposição das coisas impede-nos de compreender o que se oculta sob essa disposição. Foi esta a primeira lição que tirei ao ler Se não fosse a vida estender-se numa linha contínua, talvez ela tivesse reparado a certa altura que tinha dobrado uma esquina. O excerto é o começo de um breve texto denominado “Borboleta branca”, de O Livro Branco, de Han Kang. A linha contínua do tempo oculta-nos tanto as mudanças de rumo no espaço como as que acontecem na existência. Acumulamos tempo até que o tempo se nos acabe, mas essa acumulação hipnótica esconde outra acumulação, a das esquinas dobradas, as etapas existenciais que só sabemos que o são quando estão acabadas e se tivermos muita sorte e possamos, por instante, quebrar a hipnose que o tempo faz cair sobre nós. Imaginemos que, mortos, somos levados a um tribunal para prestar contas. Não nos perguntarão, por certo, quantos segundos acumulaste ao longo da vida. O promotor público perguntará: quantas esquinas dobraste? Escutada a resposta, dirá vamos agora examinar se as que dobraste são as certas ou se te transviaste no caminho. Talvez o defensor nomeado proteste, argumentando que a existência de esquinas certas ou erradas é uma presunção do promotor, uma mera conjectura que não tem em consideração que o visado, ao abordar uma esquina para a dobrar, está sempre convicto de que é a certa. A discussão entre o promotor e o defensor pode durar várias eternidades, sem que se chegue a alguma conclusão, deixando o visado sem julgamento, isto é, sem punição nem absolvição. Seja como for, o melhor é dar atenção às esquinas que se escondem sob a linha do tempo e também às do espaço, não vá toparmos com quem não queríamos ver.

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