Quem sofre do vício de comprar livros sabe, um saber de experiência feito, que parte significativa do que compra não será lido. Está aí, ao alcance da mão, e caso seja necessário sabe-se onde encontrar. Descobri há pouco um livro nessas condições. Tinha-o esquecido e no acaso improvável de alguém me perguntar se o conhecia, juraria que jamais ouvira falar dele. Trata-se de La Conscience des Machines – Une métaphysique de la cybernétique, suivi de «Cognition et Volition», do filósofo alemão Gothard Günther (1900-1984). Os motivos que me levaram à compra dissolveram-se, talvez tenha julgado que ali seria dito alguma coisa de importante sobre a essência do nosso tempo, se é que os tempos têm essência, se não são apenas mera existência. Resgatado do esquecimento a que tinha sido votado. Ao lado dele, estavam, nas mesmas condições, dois outros ensaios, The Posthuman, de Rosi Braidotti, e Homo Labyrinthus – Humanisme, Antihumanisme, Posthumanisme, de Frédéric Neyrat. Tudo indica que, a certa altura, alguma coisa me preocupou, mas que o peso da realidade dissolveu o tempo que queria dedicar à preocupação, tendo os livros adormecido até terem sido redescobertos. Agora, sou obrigado a ponderar se a preocupação de então continua a poder ser preocupante. Demorei-me, depois da redescoberta, a olhar as paisagens de João Hogan reproduzidas na Electra do Outono passado. Ali, não se encontra nada de anti-humano ou de pós-humano, pois o humano foi varrido delas. São lugares inóspitos, muito diferentes das paisagens posteriores de João Queirós, onde a ausência do humano não gera a mesma sensação de inabitabilidade, mas traz um sentimento de plenitude da natureza. Num dos textos da Electra, da autoria de Jeff Malpas, é dito o seguinte: Regressar ao campo é reencontrar o sentimento de estarmos no sítio de onde viemos, um sentimento que não se esgota nem é plenamente evidente da cidade por si só. Isto recordou-me uma série da minha infância – ou será da pós-infância? – Viver no Campo. Talvez Malpas tenha também visto a mesma série e, na desavença entre marido e mulher acerca da bondade de viver no campo, tenha tomado o partido do marido. Nunca é demais assinalar que nunca se sabe os motivos que nos levam a pensar aquilo que pensamos.
O que me interessa no campo não é a vida social do campo, mas estar integrada na natureza, fazer parte dela: ter silêncio, ter laranjas e rosas, ter ciprestes e estrelas. Ouvir um pássaro e saber que é um estorninho que está a cantar. Aquecer-me à lareira como ritual diário no Inverno; jardinar na Primavera e Verão. Dentro de casa, ter livros e filmes e música. Ontem, enquanto estava a apanhar gravetos, passou diante dos meus olhos uma charrete puxada por um magnífico e voluntarioso cavalo branco.
ResponderEliminarClaro que ajuda, e muito, ter ido ver quem era Jeff Malpas. Tenho de ler o que ele escreve sobre o campo. Talvez tenha também uma ética à maneira dos geómetras.
Uma ética à maneira dos geómetras só se se estivesse no século XVII, onde dominava o espírito geométrico. Aquele que na altura se decidiu por tal empreendimento não teve grande sorte, embora isso não se devesse à geometria, mas à ética. Quanto ao campo, não partilho da experiência de Malpas, não tenho o sentimento de no campo estar no sítio de onde vim.
EliminarSegundo o que li ontem (e sem recorrer à IA), Malpas interessa-se pela topografia e pela toponímia. Talvez queira provar que nós somos o sítio onde estamos e o sítio onde estamos somos nós. O meu pai era geómetra. Passaram-lhe pelas mãos levantamentos, cálculos complicados, e centenas de mapas de grandes extensões de África, Douro, Algarve. E o que sei sobre ética foi ele que me ensinou.
EliminarOnde está toponímia, é por excesso, queria dizer topologia.
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