Cheguei tarde a casa. Sentei-me e, mais uma vez, sopesei a estranha herança que me coube em sorte. O que fazer com os cadernos de Eduína que um acaso me tornou proprietário. Talvez não tenha sido o fruto de um esquecimento acidental. Não é impensável que a herança seja uma dádiva consciente. Um artifício para que permanecesse em mim a sua memória. Quando pediu que os guardasse, não imaginei que não os pediria de volta. O que ela pensou na altura, porém, não faço ideia. Não os leio de modo sistemático. Por vezes, espreito para dentro de um caderno, por instantes, perscruto umas frases e fecho-o. Hoje tive uma surpresa. Não esperava deparar-me com o que li, um pequeno poema: eu era a rosa de mim desconhecida / extraviada no odor das pétalas / presa nos espinhos do silêncio // eu era a rosa de mim desfolhada / a corola vazia à espera // do fogo na memória ateado. A surpresa não vem de encontrar um poema nos seus cadernos. Era uma possibilidade em aberto, embora nunca tivesse sabido que Eduína escrevia poemas. A nossa amizade, vejo-o agora, nunca chegara ao ponto que justificasse tal revelação. Tão pouco é a metafórica de origem botânica declinada à volta da rosa que me espanta. A surpresa vem da palavra memória, como se fosse uma designação metonímica do seu ser. Via-se já, nesses longínquos dias, como uma figura do passado. Transcrevi o poema e pensei que ela, ao dar-me a guarda dos seus cadernos, queria que também eu a visse como um ser do passado, alguém que me visita por instantes quando a minha curiosidade não se detém perante as folhas escritas. A noite caiu há muito, uma voz feminina, Bernarda Fink, interpreta um lied de Schubert, um tema sobre os deuses gregos.
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