quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Sub specie aeternitatis

Janeiro, como água, escapuliu-se entre os dedos. O novo mês entrou levemente buliçoso, uma mistura de frio cortante e sol fúlgido. Ontem alguém que conheço muito bem sugeriu-me a candidatura a uma certa actividade, numa certa publicação cujo nome não vem ao caso. Estariam interessados, por certo. Respondi que não. A publicação, apesar de estar na moda, não era do meu agrado, o meu interesse em dar-me a conhecer nulo, o assunto não me comovia, apesar de poder escrever sobre ele muitas páginas e de o conhecer com alguma profundidade. E, acrescentei, que já era tarde para fazer uma coisa dessas, mesmo num lugar que me agradasse. É preciso ter consciência de que todos temos um tempo de validade e o meu passou, acrescentei como argumento final. Os gregos distinguiram duas modalidades de tempo, chronos e kayrós. O primeiro é o tempo banal, aquele que medimos através de relógios e calendários. O outro é o tempo oportuno, a hora propícia para tomar uma decisão ou realizar uma acção. Não sei bem a razão, mas sempre tive dificuldades com ambas as modalidades do tempo. Imaginemos um certo romance que sai. Não olho para ele do ponto de vista da novidade, o que implicaria uma atenção ao chronos e à sua oportunidade de leitura, o kairós, mas sub specie aeternitatis, isto é, tanto faz lê-lo agora como daqui a dez anos. O que acontece com esse imaginário romance, acontece com muitas outras coisas, mesmo as mais pessoais. Olho-as do ponto de vista da eternidade. Isto tem as consequências mais funestas. Por um lado, na dimensão cronológica, tenho uma enorme propensão para o serôdio, num mundo que valoriza o temporão sob a designação de precoce, e, na dimensão kairológica, inclino-me sempre para perder a hora. Se alguém, tomado por alguma insensatez, me pedisse um conselho sobre como agir no mundo, coisa que certamente não ocorrerá, dir-lhe-ia apenas que nunca sobre si deixe que caiam os raios da eternidade. Destroem os relógios, confundem os calendários e escondem o momento certo.

6 comentários:

  1. Time past and time future
    Allow but a little consciousness.
    To be conscious is not to be in time
    But only in time can the moment in the rose-garden,
    The moment in the arbour where the rain beat,
    The moment in the draughty church at smokefall
    Be remembered; involved with past and future.
    Only through time time is conquered.
    Quatro Quartetos / Burnt Norton II
    T. S. Eliot
    Relógio D’Água

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    1. Não creio que o tempo possa ser conquistado, a rememoração não é conquista, mas um indício da perda. O tempo é pura perda. Por muito que se vá "à la recherche du temps perdu", este jamais será "le temps retrouvé".

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    2. Desde que nos é dada uma hora para nascer e uma hora para morrer, todo o tempo é nosso, e podemos apenas desperdiçá-lo ou fazer com ele outras coisas. Neste poema há chronos e kairós, há o eco do que poderia ter sido e não foi, há o tempo perdido e o tempo conquistado. Se o tempo está perdido, não há memória, não há como recuperá-lo. O tempo conquistado é o tempo do prazer. É a diferença entre o tempo inconsciente e o tempo consciente. Quando ele escreve *O tempo e o sino enterraram o dia*, refere-se a chronos, quando termina escrevendo *Depressa agora, aqui, agora, sempre - Ridículo o triste tempo gasto Que se estende antes e depois.*, refere-se a kairós.
      É muito derrotista. Só consigo entender essa ideia se ainda continuar atrás do vidro martelado.

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    3. Não leio o poema assim, como muito derrotista. O final citado do poema é uma glorificação da presença. O ridículo e triste é o tempo gasto, o que está antes e que está depois. Ora, o que é que está antes e o que está depois está antes e está depois de quê? Daquilo que não é ridículo nem triste. O presente. Apenas se está presente no presente. Daí afirmar que existe uma glorificação da presença. Um animal e uma planta viverão sempre no presente. Coincidirão sempre consigo mesmos, pois não terão, presume-se, consciência do tempo. A consciência do tempo introduz uma descoincidência consigo, preso que se fica ao antes e ao depois. Daí o ridículo e o triste, contudo há um princípio de esperança, em Eliot, ligado a esse presente, em que se coincidiria consigo mesmo, nem que seja como promessa. O que eu contesto é esse primado do presente. Não que lhe oponha o passado e/ou o futuro. O que se opõe ao presente é o ausente. Estar no tempo - e nenhum tempo é nosso, como não é nosso o rio em que mergulhamos - é tornar-se ausente, ausentar-se de casa. Aqui, tanto chronos como kairós são lugares de ausência. Pensamos que são lugares de realização. Penso que, pelo contrário, são lugares onde nos desrealizamos. Enfim, estou para aqui a especular, coisa que, como a política, deveria estar-me vedada.

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    4. Que bela conversa daria este tema. No entanto, acho que lhe tomei já demasiado tempo. Quero só esclarecer uma coisa: não é o poema que eu considero derrotista, concordo consigo, o poema quase implora que não se desperdice o presente. O que eu quis dizer é que o narrador é derrotista.

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    5. Tresli o comentário. Quanto ao resto, é possível que o narrador tenha sido criado desse modo. Com um visão céptica de si mesmo, por vezes irónica, ou, numa outra leitura, com uma percepção lúcida de si. Seja como for, todo o narrador é um fingidor.

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