terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Dos meses

O Word irrita-me. Insiste que estamos em fevereiro e não em Fevereiro. Ao grafar-se com capitular estamos a referir a natureza essencial do mês, de qualquer mês. Os meses não são coisas para se sujeitarem ao opróbrio da letra minúscula. Fevereiro deriva do latim Februarĭu. Este tem origem no verbo februāre, que significa purificar. Portanto, estamos no mês das purificações, o Word devia respeitar estas coisas. Caso se esteja disposto a retomar a querela entre os antigos e os modernos, há que reconhecer que os antigos têm uma vantagem sobre os modernos. Enquanto nós vivemos num tempo marcado pela monotonia e a indiferenciação, eles viviam num tempo diferenciado, onde o tempo do sagrado impunha rupturas na linearidade do calendário. Esses cortes davam sentido à existência, protegiam-na contra o cepticismo que toda a observação objectiva da realidade arrasta consigo. Essa necessidade de protecção, com a vitória dos modernos sobre os antigos, não deixou de se manifestar. O que justifica a nossa existência? Que trunfos temos para enfrentar o lado negro da realidade? A crença optimista no progresso e no futuro. Houve uma deslocalização das fábricas de protecção contra o cepticismo do presente para o futuro, mas o futuro é aquele lugar onde acabaremos todos por estar mortos. O melhor será purificarmo-nos em Fevereiro, fazermos a guerra em Março e assim sucessivamente, até chegarmos a Setembro. Daí até Dezembro, o nome dos meses apenas indica a sua ordem no calendário. Talvez estes meses, e só estes, devam ser escritos com inicial minúscula. Uma tristeza.

8 comentários:

  1. Uma boa vingança é passar a escrever word, como qualquer palavrinha. No entanto, na grafia tanto dos dias da semana, como dos meses do ano, é usual aparecer letra maiúscula, em outras línguas, nomeadamente em inglês e francês, que são as que tenho de usar com frequência.

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    1. Nós fomos tomados por uma sanha contra os vestígios do passado na língua. Eliminámos as consoante mudas por serem mudas. Os meses e os dias são tratados como coisas. Tudo isto começou com a simplificação ortográfica de 1911. Parece que os linguistas nacionais têm pouca confiança na capacidade dos portugueses aprenderem a escrever, caso as palavras se afastem muito do som.

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    2. É verdade. Mas, de que se envergonham? De si próprios? Porque mudam o que não tem interesse nenhum em ser mudado? Apenas para retorcer? É isto um revolução gutural,
      ou é antes uma terrível repressão cultural?

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    3. Tanto quanto sei, as alterações de 1911, que começaram a ser esboçadas ainda na monarquia liberal, visavam unificar e simplificar a ortografia. De facto, não era claro qual a regra da escrita de muitas palavras. Julgo que também quiseram apagar o grego que estava ainda presenta na nossa língua, através do latim. Julgo que a palavra fleuma se escrevia phleugma (teria de ver em algum livro que contivesse a palavra, para ver se no tempo do Eça ainda usavam o g), por exemplo. Em inglês e em francês, essa raiz está visível. O Acordo de 90, foi uma tentativa espúria de aproximar o português de Portugal e o do Brasil. Havia interesses económicos, ilusórios, diga-se. Eliminámos as consoantes mudas, que eles não usam, mas julgo que foi um flop completo. As duas formas de Português estão a afastar-se e não faltará muito para que o Brasil assuma que fala brasileiro e não português.

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    4. Sabe, não me aborrece, e até acho graça a certas diferenças. Sempre li autores brasileiros, um dos últimos, fabuloso, foi Raduan Nassar. No entanto, sou purista. E, como me ensinou hoje, Fevereiro é o mês das purificações.

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    5. Dois grandes nomes da língua portuguesa são de origem libanesa. Raduan Nassar e Antônio Houaiss. Li há bastante tempo Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera. Nunca mais li nenhum brasileiro, tanto quanto me lembro. Não tenho inclinação para a América Latina, o que é uma injustiça. Exclui-se o Borges, que também não leio há muito.

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    6. *Um copo de Cólera* não me parece recomendado hoje, pelo menos até à hora da Cinderela.
      Tenha uma boa noite.

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