sábado, 12 de julho de 2025

Exageros

No final da década de quarenta do século passado, Pierre Schaeffer traz para o campo musical as sonoridades do quotidiano e a manipulação de sons. A essa música deu-lhe o nome de música concreta em oposição à música erudita tradicional. Os sons concretos do mundo em oposição às abstracções sonoras a que se dava e dá o nome de música. Este é apenas um exemplo, no âmbitos das artes, em que foi possível rasgar os horizontes e pôr em causa a tradição. Podemos crer que o público e mesmo os especialistas terão ficado perplexos, pois o não musical era apresentado como musical, o não artístico era dado como artístico. Este episódio é, assim, mais um de um longo conflito entre o artista e o público. O gosto do público é sentido sempre como desadequado e aquilo que o artista procura está para além daquilo que agrada ao público, mesmo a um público educado. Se recuarmos a Kant, o juízo estético parte de uma experiência singular e eleva-se, através da reflexão, a uma comunidade de gosto, mesmo que apenas ideal. Ora, o que a arte do século XX pretende é quebrar esse laço entre a experiência singular e o gosto comunitário. Cada experiência da obra de arte deve permanecer na sua radical singularidade e, por isso, na sua incomunicabilidade. A arte mostrou-se, desse modo, como uma inimiga visceral do senso comum, ainda que ilustrado. Cada obra de arte é, desse modo, uma granada lançada sobre o público, pois este, com o seu gosto comum, é o inimigo da arte. Pode ser que esteja a exagerar. Este narrador, por vezes, é dado à hipérbole. Um narrador hiperbólico. Mas a hipérbole, como a caricatura, exagera para mostrar o que é decisivo e está escondido.

1 comentário:

  1. Sabe, Viandante, às vezes, para bem ou mal, só nos resta a razão. A cada dia que passa olho para trás e só vejo platonismos liquefeitos. Sinto-me tão culpado por ser desta forma. Arte? Antes eu tivesse nascido falena. Queria aprender essa tua resiliência.

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