Ao ler um verso – levando a mão à boca entoei a canção inteira das onomatopeias – de Herberto Helder, ocorreu-me que todas as palavras que usamos podem ter a sua origem remota em onomatopeias, em imitações de sons naturais. O problema, porém, é se esta imaginação foi agora produzida por mim ou se é o resultado de uma leitura antiga que o tempo apagou. Sei que há quem pense que as palavras que usamos são metáforas mortas, que estando mortas passam a ter uma significação corrente, vulgar, que permite a comunicação entre nós. No princípio estava a poesia, que o tempo transformou em prosa. Contudo, a hipótese onomatopaica da origem da língua talvez seja mais interessante: seria a natureza a falar através do aparelho de fonação humano. Com o correr dos séculos, aquilo que era uma expressão criada por uma imitação directa dos sons naturais, perdeu o contacto com essa natureza, autonomizou-se e ficou submetido à memória e às regras humanas do uso da linguagem. Isto que estou a imaginar, porém, já deve ter sido pensado por alguém, mas desconheço quem, ou não me lembro por quem. Pensemos na palavra árvore. Quase ouvimos o vento passar entre os ramos, mas esta é uma palavra muito tardia, descendente da latina arbŏre. Esta terá tido um antecedente indo-europeu, e este outros que nem reconstruídos conseguimos imaginar. Deixemos esta arqueologia para os arqueólogos da linguagem. Se for aceitável a origem onomatopaica de todas as palavras, o poeta não podia ter cantado a canção inteira das onomatopeias. Faltar-lhe-ia o fôlego para projecto tão hiperbólico. Talvez ele quisesse impressionar o leitor. E o verso seguinte, separado não apenas pela mudança de linha, mas também por um ponto e vírgula, parece confirmar este desejo de impressionar o leitor ao escrever: era guerra. Como se caça uma fêmea com tanto sangue entre as ancas? Um problema impressionante e difícil de resolver. Pelo menos enquanto não soubermos que onomatopeias estiveram na origem de palavras como guerra, caça, fêmea, sangue e, de modo especial, ancas. Tivesse eu acesso a essas onomatopeias – as primeiras que saíram da boca humana – logo explicaria a estratégia de caça. Assim, limito-me a esperar que alguma fêmea me cace, enquanto procuro o arco. Elas são nisso muito melhores do que os machos, apesar destes pensarem o contrário. Elas conhecem a origem onomatopaica da linguagem, mas recusam-se a partilhá-la, a não ser com as suas filhas fêmeas, para que estas sejam, também elas, caçadoras, cheias de onomatopeias prontas a lançar do arco das suas bocas.
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