quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

O primeiro Maigret

Acabei de ler o primeiro caso do comissário Maigret, Pietr, o letão. Provavelmente, já o teria lido há muito, numa época distante em que lia os casos de Maigret. Simenon não é um escritor de policiais. É um grande escritor, mesmo nos policiais. Não é a lógica que dirige o inquérito, como em Sherlock Holmes, mas a manifestação da humanidade no criminoso, humanidade essa marcada pela finitude e pela falibilidade. Isto torna o criminoso num homem como outro qualquer. É a sua humanidade que o conduz ao crime. E é isso que o autor explora neste primeiro romance. Não é apenas esta atenção à humanidade, à sua condição existencial, que é fundamental. É também a concepção de justiça. Refiro-me à justiça retributiva. Simenon não nega que a justiça deva retribuir o mal com o mal (qualquer pena é sempre a aplicação de um mal para punir o mal), mas, como no caso deste primeiro romance, a humanidade do criminoso é essencial para que o comissário da polícia lhe permita escolher a dignidade ou a infâmia. Na cultura ocidental, há duas execuções que são arquetípicas. A de Sócrates, que se auto-executa, ao tomar a beberagem venenosa, e a de Cristo, que é submetido à mais infamante das execuções. Só um deus – neste caso, o filho de Deus –pode suportar a cruz, sem que a sua humanidade seja aniquilada. Na morte de Sócrates, há uma afirmação de uma dignidade humana que transcende a aplicação mais radical do direito penal. E Maigret, nesta primeira aventura, surge como um juiz moral que dá a escolher ao culpado a natureza da sua morte.

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