quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Um país confinado à nascença

Quando a luz começou a cair sobre a cidade, os carros estavam revestidos por uma carapaça de gelo, talvez um escudo contra um inimigo sem nome e sem rosto. Foi o que pensei ao olhar para a Sá Carneiro, ainda sem transeuntes, mas com carros a circular devagar, a tiritar de frio, enregelados no motor. Depois de me libertar do aparelho que me espiou o coração durante 24 horas, fui à frutaria, aqui mesmo ao lado, fazer um recado. Na verdade. Hesito se hei-de dizer na verdade ou em verdade, em verdade vos digo. Um dia destes tomarei uma decisão sobre o assunto. Na verdade, dizia, não passo de um moço de recados.  Para além do recado, achei por bem comprar umas clementinas. Talvez sejam marroquinas ou, mesmo, tangerinas. Não sou muito atento às classificações e depois não sei aquilo que como, pois não é a mesma coisa, presumo, comer uma tangerina, uma clementina ou uma marroquina. O melhor seria comer apenas laranjas, ao menos não havia dúvidas e evitaria que se fizessem interpretações capciosas do que escrevi. Enquanto esperava que me chamassem para me tirarem o aparelho e arrancarem os eléctrodos, vi na televisão que o país vai confinar mais uma vez. Esta conversa cansa. O país, desde que nasceu, está confinado entre o mar e Castela. O confinamento não é um acidente pandémico, mas a nossa natureza. Nascemos confinados e dessa condição não nos livramos, mesmo que comamos marroquinas e tangerinas, esses frutos que nasceram além-mar, não deixamos de ser o que somos. Não juro que o Holter, aquele aparelho que monitoriza um ECG dinâmico, não produza radiações que afectem senão o cérebro, pelo menos a mente.

6 comentários:

  1. As clementinas e as marroquinas não têm caroços, o que é bom, mas também não têm o sabor intenso (nem o cheirinho bom que ficava nas mãos, mesmo depois de lavadas) das tangerinas da minha infância.

    Portugal não tem remédio e o culpado disto tudo é o Afonso Henriques que, tal como criança que quer um brinquedo, um dia lhe apeteceu ter um condado...

    Uma tarde boa, HV.
    ☃️
    Maria

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    1. As tangerinas tinham - e devem continuar a ter - muitos caroços, é verdade. Clementinas e marroquinas são coisas posteriores. Tanto quanto me lembro.

      Tenho a ideia de ter lido que as pretensões de formar um reino portucalense, digamos assim, seriam bem anteriores a Afonso Henriques, talvez do século X, mas não afianço. Ele teve o poder para isso. Seja como for, se não confinássemos onde estamos, confinaríamos nos Pirenéus.

      Boa tarde, Maria

      HV

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    2. Confinaríamos nos Pirenéus, ou então ter-nos-íamos desprendido da Europa, tal como a Jangada de Pedra, assim uma espécie de Iberiaexit: afinal sempre estivemos mais fora que dentro da Europa.
      Aliás, sempre estivemos de costas voltadas para Espanha, penso eu.

      Bom confinamento, HV.
      🏡
      Maria


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    3. Estarmos de costas voltadas para Espanha terá sido uma condição necessária à nossa sobrevivência. Seja como for lá nos vamos tornando europeus. Na verdade, acho que sempre fomos.

      Um bom confinamento, Maria

      HV

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  2. É verdade, e eu gosto de ser europeia, sempre gostei, e só lamento não a conhecer melhor. Ainda muito jovem apaixonei-me pela Grécia Antiga (Odisseia, talvez?) e assim que pude fui lá conhecê-la (o que restava dela) e foi perfeito.
    Pena no meu tempo não haver as viagens low cost, a maior parte dos países apenas conheço do turismo de sofá: enciclopédias, guias, livros, filmes, e agora pela net.

    O dia amanheceu com geada, mas agora está um belo sol.
    Carpe Diem, HV.
    ☀️

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    1. Os europeus fizeram coisas muito desagradáveis, mas também fizeram do melhor que foi feito no mundo.

      Um resto de bom dia, Maria

      HV

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