Depois de quase uma semana sem sair de casa, há pouco pus-me na rua e caminhei durante meia-hora. Não foi muito. Se continuar a não andar, acabarei por me esquecer de como se anda, pensei. A avenida não estava despovoada como acontecia no primeiro confinamento, mas também não estava fervilhante como nos dias normais. Era uma espécie de limbo habitado por almas inocentes, mas que não foram mergulhadas a tempo na água lustral. Devia evitar analogias, não vá alguém levar as minhas palavras a sério. Ainda há pouco, numa daquelas videoconferências que se tornaram a realidade que existe, tive de esclarecer que as minhas palavras eram uma ironia. Eu estava a significar o contrário do que estava a dizer. Talvez as pessoas sejam habitadas por uma ânsia de literalidade. Pão, pão; queijo, queijo. Faz-se disto a expressão do bom carácter, de quem diz o que tem a dizer, com todas as letras, não lhes vá faltar alguma. Nada de eufemismos, ironias. Abula-se a retórica. O pior é que a própria realidade é retórica, como me disse hoje de manhã ao telefone o padre Lodo. Há muito que não conversávamos. Estou cansado da pandemia, disse-me. Estou cansado destes exercícios de estilo com que a realidade nos envolve, continuou. Depois, lembrando-se da sua condição de sacerdote, acrescentou há que ter paciência e decifrar com humildade os sinais com que Deus decide marcar o nosso caminho. Tentei perguntar-lhe se ele achava então que o vírus era castigo divino, mas ele não me deixou formular a questão e disse já sei, já sei, mas não vou entrar em discussões teológicas a esta hora da manhã. Nada de interpretações literais. A letra mata, o espírito vivifica, disse e riu-se com a sua gargalhada exuberante de italiano. A tarde avança decidida para o seu encontro com a noite e eu tenho de voltar para os meus afazeres, literalmente.
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