Ainda não me habituei a escrever o último dois de 2022, os dedos fogem sempre para o um. Isto será uma prova de que o corpo, comandado pelo cérebro, tem uma inclinação conservadora. Fora ele revolucionário, eu escreveria, automaticamente, 2023 ou mesmo 2024. Caso, porém, o corpo fosse reaccionário, os dedos haveriam de escrever 1821 ou 1822. Recusar o ano em que se está é um sintoma de conservadorismo, um caso daquilo a que vulgarmente se chama instinto de conservação. O tempo não nos mata, mas traz com ele aquela que nos há-de ceifar. Poderia ter escolhido uma metafórica mais criativa, mas estou cansado. Tive de sair de casa para pôr o telemóvel de uma das minhas netas a consertar. Aproveitando a saída, dirigi-me à Fnac – aqui, apesar da dimensão risível da cidade, também há uma loja Fnac, assim haveremos de nos julgar menos provincianos – para levantar um livro que tinha encomendado online. Por desfastio, comprei mais três. Vim carregado de poesia e mesmo assim não encontro imagens dignas de registo. Como antes de sair de casa ouvi sempre podias ir levantar-me as calças que foram emendar as bainhas e, é mesmo ao lado, podias trazer um chouriço de carne, lá fui em demanda das calças reembainhadas e do chouriço de carne – atenção, não seja gordo, ouvi ainda – e, também por desfastio, passei pela zona dos vinhos, o que é sempre uma visita aprazível. Entre livros de poesia e garrafas de tinto do Douro, trouxe para casa não sei quantos produtos que, ao sair, nem tinha imaginado comprar. É assim que uma pessoa cede aos imperativos da sociedade de consumo. Fora eu um asceta rigoroso, um monge de estrita obediência, nem poesia nem vinhos, apenas água pura e um livro de orações coçado pelo uso, mas não sou. A minha neta mais nova está a choramingar, embora sem abundância de lágrimas. As sessões de Matemática dela com a avó – com a outra neta a função é mais apaziguada – têm uma coloração bergmaniana, dão sempre em lágrimas e suspiros. É a vida das marionetes, pensei.
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