Há experiências que não são fáceis. Não sei como acomodar em mim ver definhar, no meio de uma demência galopante e de uma degradação física sem retorno, alguém que foi activo, com poder de iniciativa e capacidade de ordenar a vida à sua volta. A realidade sempre me pareceu uma coisa perversa. Mesmo quando ela se apresenta como benévola e geradora de alegria e esperança, esconde o terrível. Muitas vezes lamentamos a ordem moral do mundo, o triunfo do mal sobre o bem. Não menos lamentável, porém, é a ordem da natureza, na qual a vida está assente no alicerce da dor. Nem uma longa conversa com o padre Lodo me retirou do coração o sentimento de impotência perante a realidade. Não é que o meu amigo, apesar de sacerdote, se proponha a um fácil discurso consolatório. Pelo contrário, há nele qualquer coisa que parece estar para além da religião que decidiu abraçar, um fundo trágico, herdado da antiguidade. As leituras dos trágicos gregos, sobre os quais temos longas conversas, inscreveram nele uma marca indelével. Ou talvez o próprio cristianismo se funde numa tragédia, apesar da promessa da ressurreição da carne. Da aparelhagem escorre uma música do Tingvall Trio com o nome Memory. O problema, porém, é que mesmo uma memória poderosa e dada à minúcia não resiste ao galope da demência, de tal modo que chega a não reconhecer os próprios filhos, pergunta-lhes quem são. Chegam os ecos de uma conversa online entre avó e neta. O assunto? A Matemática, a resolução de exercícios, a determinação do x, mas talvez, por mais que se tente, o x seja eternamente irresolúvel, uma incógnita contumaz que nunca deixará que lhe retirem o véu.
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