Leio, num livro que não vem ao caso, a frase Não foi o homem que inventou o jogo. E esperei de imediato uma revelação extraordinária. Porém, apenas tive direito a uma citação de Schiller, é o jogo, e apenas o jogo, que torna o homem completo. Há coisas piores do que citações de Schiller, claro. Eu preferiria, contudo, uma continuação mais ousada, como afirmar foi o jogo que inventou o homem. Embora se saiba que não é possível encontrar uma essência – isto é, uma característica comum – partilhada por todos os jogos, essência cuja presença nos anunciaria de imediato estarmos perante um jogo, podemos afirmar que um elemento essencial dos jogos é o acaso. Ora aquilo que nós somos, as nossas características físicas e, possivelmente, não só, recebemo-las através da chamada lotaria genética. O espermatozóide paterno que fecundou o óvulo materno, por acaso disponível, foi aquele, mas poderia ter sido outro. Se assim fosse, já não teríamos vindo à existência, mas um outro cuja existência lhe pareceria tão natural como a nossa nos parece. Se isto é assim quanto aos indivíduos, talvez ainda seja mais quanto às espécies. Há aquela história darwiniana da evolução para adaptação ao meio. Parece fornecer uma regra, mas, na verdade, não elimina o acaso. O caminho adaptativo foi este, mas é plausível pensar que poderia ter sido outro, um caminho, por exemplo, que tivesse poupado a Terra à presença de uma espécie como a nossa. Imaginemos o futebol. A princípio um conjunto de seres humanos brincam com uma bola, correm, chutam, agarram-na, tudo de um modo caótico. Depois, lentamente, começam a introduzir regras. A ideia é eliminar o caos original, embora o acaso, por mais regulado por leis do jogo e tácticas competitivas que esteja, nunca desaparecerá. O mesmo acontece com cada um de nós e com a espécie a que pertencemos. Somos fruto desse acaso e este não é mais do que o jogo que a natureza joga consigo mesma. O jogo só torna o homem completo, como pensava Schiller, porque nós somos uma invenção do jogo. No fundo de nós, por mais que lutemos contra isso, existe um princípio de arbitrariedade. Antigamente, um homem de carácter era aquele que aparentava ter eliminado de si essa arbitrariedade originária, o que mostra que as antigas modas educacionais estavam assentes em puras aparências.
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