domingo, 13 de fevereiro de 2022

Spleen

Tenho de mudar as escovas do limpa pára-brisas. Tive de me meter no carro para ir cumprir uma tarefa inadiável. E enquanto me deslocava pela cidade começou a chover. Reparei, então, que as escovas já tiveram melhores dias e que estão a pedir reforma ou, para utilizar o jargão adoptado pelo empreendedorês em vigor, têm de ser descontinuadas. Aproveitei para uma revisitação a uma tarde de domingo na província. Outrora, a tarde de domingo poderia ser dedicada ao numa ida ao cinema ou ao futebol. O cinema foi descontinuado. A sala – um bela e grande sala – foi reconstruída, mas na verdade já não é um cinema. Quanto ao futebol, penso que os espectadores se descontinuaram, mas não tenho provas para o que afirmo. A cidade estava triste, banhada por uma cinza caída de um céu velado por uma cortina de nuvens. As pessoas deslocavam-se presas a uma estranha irrealidade, como se fossem fantasmas. Os domingos de província não são coisa que suscite grandes entusiasmos. Também eu sofro, de momento, dessa falta de entusiasmo. Olho a rua, vejo transeuntes e carros a passar, nada que mate em mim o spleen que me acometeu. Daqui a pouco terá passado, como é hábito. O pior é que amanhã não tenho tempo para ir mudar as escovas. Isso, sim, deveria preocupar-me.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Tentações

Foi uma semana pesada, de tal modo que nem oportunidade tive de vir por estes lugares narrar as extraordinárias aventuras que, contadas com arte e engenho, ainda de mim fariam um Ulisses ou um Cid, el Campeador. Como a natureza não me dotou com essa indústria, fico-me por um anónimo Sancho Pansa que perdeu o seu D. Quixote. Por motivos que não vêm ao caso, hoje coube-me fazer o almoço. Uma experiência que acabei por declinar. Saí de casa e, como isto é uma quase cidade e uma quase cidade moderna, dirigi-me a um takeaway de confiança, com provas dadas. Acho que, olhando o que comprei, nem cozinhei mal, embora ainda não tenha almoçado. A isto chama-se crer na uniformidade da natureza, uma crença que julga por bem afirmar que se as coisas no passado foram boas também o serão no futuro. É uma ideia comovente, apesar de certos pensadores acharem que não tem justificação. Ora, oiço-me dizer, se nós apenas déssemos crédito ao que conseguimos justificar, nada teria crédito. O dia está cinzento, muito, mas não chove. Antes de sair, sentia-me bastante envelhecido, mas agora, retornado a casa, recuperei a idade que tinha, o que não é um consolo extraordinário. Continuo a acumular livros sem saber a razão. Na minha secretária repousam dois de Marsílio de Pádua. São traduções espanholas chegadas na quarta-feira. Talvez sofra de uma adicção e deva entrar para os viciados em compra de livros anónimos, onde haveria confessar as terríveis tentações. As de comprar livros, entenda-se.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Penas desproporcionais

Num poema do realizador e poeta italiano Pier Paolo Pasolini deparo-me com a metáfora os candelabros de oliveiras. Em português, a sonoridade não é arrebatante, tão pouco em francês, a tradução em que leio o poema. Como não tenho acesso ao original, faço a experiência de traduzir a tradução para italiano, com a esperança de aceder ao que Pasolini terá escrito. O tradutor devolve-me lampadario di ulivo. A aliteração do ‘l’ e a assonância do ‘i’ dão à metáfora uma intensidade que as versões em português ou em francês não alcançam. Olho para as oliveiras da escola ao lado e, pela primeira vez, vejo nelas um candelabro, como se elas tivessem na sua seiva o estranho poder de me iluminar. Agora, o silêncio caiu no parque infantil da praceta. Até há momentos um bando de crianças entregava-se a jogos ruidosos por onde se expandia a sua infância. O dia está luminoso e não há vento. A ramagem do arvoredo não bole, nem nos céus há pássaros ou anjos a voar. Na avenida, os carros passam tomados pelo fastio de domingo. Alguns estacionam para que de dentro saia alguém à procura de um café ou de um bar. Um casal é levado pelo seu cão, um animal minúsculo, irascível. Uma moto ronca quebrando o sossego dominical, para o seu condutor confirmar no troar mecânico a virilidade. Nunca deixam de me espantar as causas que suspeito nas acções dos seres humanos. Uma das minhas netas está a ter uma lição de inglês, em videoconferência, com a avó. Há pouco foi a outra, mas a lição era de francês. Tenho pena delas, mergulhadas neste mundo cheio de possibilidades comunicativas. Olho para o relógio e penso que a missa do meio-dia, em S. Pedro, se aproxima do fim. Ao acabar, as famílias sairão para o almoço dominical, como se o mundo continuasse igual àquele em que também eu ia à missa em S. Pedro. Esse mundo, todavia, acabou para mim há mais de quarenta anos. Presumo que o padre será outro e que os próprios fiéis serão, em grande parte, outros. Depois, penso no poema de Pasolini e fico a contemplar a expressão lampadario di ulivo. Uma dúvida veio atormentar-me: e se Pasolini escreveu outra coisa? Deveríamos conhecer todas as línguas do mundo para poder ler poesia no original. A realidade, de facto, deixa muito a desejar. O castigo por causa da torre de Babel parece-me excessivo. Uma pena desproporcional, diria um jurista. Eu abano a cabeça em sinal de concordância.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Conspirações

Talvez a realidade não passe de uma encenação, o resultado de uma teoria da conspiração. Não digo isto motivado pelo ódio que, contra mim, a balança continua a destilar. Ela fá-lo, mas, por certo, não conspira contra mim. O caso é outro. Ontem passou na RTP 2 um filme de Buñuel, A Bela de Dia. Decidira vê-lo. Qualquer coisa correu mal no computador e o filme ficou preso e eu desisti e, em vez de Buñuel, na televisão, decidi-me por um Antonioni, na plataforma cinematográfica de que tenho uma assinatura. Hoje, ao abrir um livro, cai-me lá de dentro um rectângulo de cartão usado para marcar uma página. Fui ver o que era e descobri um bilhete de cinema – do Cine Teatro daqui – com a data de 24-Out-07 e com a hora 21:30. E que filme fui ver nesse dia, àquela hora? Precisamente, A Bela de Dia, de Buñuel. O filme é de 1967 e tem por protagonista Catherine Deneuve. Belíssima nos seus vinte e poucos anos. Estes acontecimentos, que uma mente prosaica, perdida na trivialidade do quotidiano, atribuirá ao acaso, são o resultado de uma conspiração, cuja finalidade é incompatibilizar-me com o tempo. A Yourcenar acha que ele – o tempo – é um grande escultor, mas eu, olhando a Deneuve nos seus vinte e pouco anos, tenho a certeza de que ele – o tempo – deveria ocupar-se de outras coisas e deixar a escultura em paz. Estes textos, ultimamente, têm tido um tamanho excessivo. Pergunto-me se não estou a sofrer de verborreia. O melhor é ficar por aqui, até porque o meu neto não tarda.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Lágrimas

A noite de sexta-feira já caiu há um bom bocado. Preguiço, deixando deslizar pelas colunas da aparelhagem o som de um disco de jazz. A faixa que oiço neste momento tem um título curioso, Transformação pelas Lágrimas. Talvez o autor esteja equivocado ao escolher tal título. Não são as lágrimas que provocam uma transformação, mas certas transformações existenciais geram lágrimas. Isso é muito conhecido tanto na religião como na psicanálise. Uma conversão religiosa, não me refiro aquelas que vão acontecendo ao longo de um período alargado, uma conversão religiosa, escrevia, pode ser acompanhada, se ela é súbita, por um amplo verter de lágrimas, como se fora uma forma de purificação da alma. O mesmo se passa no processo analítico, quando o paciente toca em algo que recalcara e escondera no fundo do inconsciente. Seja como for, as lágrimas são o sinal de uma transformação e não a sua causa. Alguma coisa que se solidificara e que se liquefaz. O que vale é que a faixa já mudou e a que oiço agora tem o título Deep as Love. Não vou massacrar ninguém com uma meditação sobre profundidades e amores. O que me atormenta é a velocidade com que a sexta-feira se precipita em direcção ao sábado. Se o mundo estivesse bem feito, chegada a hora em que uma pessoa – qualquer pessoa – se liberta dos imperativos da necessidade, o tempo refreava o seu ímpeto, a sua ânsia de transformar cada momento em passado, nessa busca inglória de um futuro que nunca atingirá. Por falar em tempo, é de bom tom citar uma autoridade. Agostinho de Hipona, escreve a certa altura O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo pergunta, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Agostinho escreveu isto no capítulo 14 do Livro XI, das Confissões. Agostinho, Santo Agostinho, também ele se converteu. Na mesma obra, no capítulo 12 do Livro VIII, escreve: Quando, por uma análise profunda, arranquei do mais íntimo toda a minha miséria, levantou-se enorme tempestade que arrastou consigo uma chuva torrencial de lágrimas. Talvez tempo e conversões, sejam elas quais forem, estejam ligados. Para terminar esta estranha e inesperada deambulação, uma nota sobre esse livro VIII. Todo ele é uma belíssima peça literária. A hora de jantar aproxima-se.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Uma vida plácida

Depois de uns dias na capital, retornei manhã cedo ao lar. Ao chegar, constatei que a cidade não apenas não mudara de sítio como continuava com a mesma cara. A constatação tranquilizou-me. A partir de certa idade, as mudanças tornam-se todas elas suspeitas. Não vale a penas virem atirar-me à cara que não possuo alma de revolucionário. É um facto. Quando era novo, muito novo, pensava que era revolucionário e que haveria de mudar o mundo. No entanto, havia sinais que, estivesse eu atento a eles, me indicavam que a minha índole era outra. Por exemplo, se frequentava um café, gostava de me sentar sempre na mesma mesa. Se ela estava ocupada, sentia em mim uma certa contrariedade. Se me deslocava habitualmente a um certo sítio, escolhia sempre o mesmo percurso em vez de me pôr a inovar. Com isto está provado que além de não ser um revolucionário, também não sou um inovador, coisa que agora está muito na moda. Não há cão nem gato que não o queira ser, embora a falta de talento da maioria desses candidatos a inovadores seja uma segurança para quem como eu é adepto de uma vida plácida. A noite já pousou sobre a cidade e abrigou-a com o negro das suas asas. O pior é a falta de chuva. Não tarda, a península que nos coube em sorte torna-se um deserto. É o que dá o ímpeto revolucionário e o espírito inovador. Fosse o clima conservador e ainda hoje teríamos quatro estações, agora nem sabemos ao certo quantas são.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Dia sabático

Hoje decidi oferecer-me um dia sabático. Não fazer rigorosamente nada. Fui almoçar fora e passear numa tapada para apanhar sol ou, quando este estava muito quente, para me proteger na sombra de velhas árvores. Descobri que muitas outras pessoas se tinham oferecido a si mesmas um dia sabático. Hoje não tive videoconferências, nem reuniões intérminas, nem admiráveis discussões sobre o sexo dos anjos ou o melhor modo de salvar o mundo ou as pessoas, ou sei lá eu o quê. Um dos males deste planeta é estar pejado de gente que se representa como super-herói. Por norma, estas pessoas, sempre prontas a descortinar causas de salvação, são daquelas que fazem o mal e a caramunha. Como se vê, contínuo, mesmo em dia sabático, a cultivar expressões ao gosto popular. Foge-me o pé para a chinela, quero eu dizer. Tanta aparência de erudição, mas a verdadeira cultura de base é aquela composta por máximas, provérbios e ditos do mais trivial senso comum. Aproveito para esclarecer que senso comum e bom senso não são a mesma coisa. Apesar de certo e importante pensador, um dos pais da modernidade, afirmar que o bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo, pois não há quem julgue que precise de mais do que aquele que possui, apesar disso, dizia, o bom senso é uma coisa bastante incomum. O comum é as pessoas terem pouco sentido das coisas. Têm um olhar enviesado sobre a realidade. Eu também o tenho, mas é um enviesamento hiperbólico. Olho de lado e vejo tudo aumentado, embora quando olhe para mim de esguelha não consiga ver na minha pessoa um super-herói. Poderia ser um super-homem, mas tenho medo da kryptonite e de que ande por aí algum Lex Luthor à minha caça. Vou agora ver deslizar o dia, olhando para as águas de Tejo a fundirem-se no mar, à espera que as minhas netas cheguem. Enquanto o rio flui, vou ler mais umas páginas da Ogawa. Isto é permitido em dia sabático.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Pedir chuva

A seca agrava-se, leio. Não se pode ter tudo, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal. Neste caso, ou se tem um Janeiro primaveril ou se tem água nas barragens. Se houvesse um regulador da natureza, tudo era mais fácil. De dia, havia sol; de noite, chovia e as barragens enchiam-se de água. Como ninguém me pediu conselho, agora as coisas estão como estão. Avanço vagarosamente na leitura do romance de Yoko Ogawa, A Polícia da Memória. Tudo se passa numa ilha sem nome e a obra parece inscrever-se na categoria das distopias. Nessa ilha, as coisas desaparecem e com esse desaparecimento vão-se também as memórias delas. O papel da polícia da memória é assegurar que não persistam memórias daquilo que desapareceu. Ao não-ser não deve corresponder seja o que for. No início do século XVI, Thomas Morus escreveu Utopia, de certo modo inspirado na República platónica. Apesar da ironia do nome, a obra representa uma visão benevolente de uma sociedade humana, uma espécie de ideal orientador inscrito na génese da modernidade. Se olharmos para o século XX, o que encontramos são distopias, uma visão negra das possibilidades humanas. Serão uma confissão literária da falência do projecto da modernidade. Nem sei o que me deu para me dedicar a este tipo de conjecturas. Deveria ir apanhar sol e aproveitar estes dias em que a chuva se entrega a uma greve sem fim à vista. Também, um mundo onde fizesse sempre sol e nunca chovesse poderia acolher uma distopia literária. À minha frente estende-se uma belíssima tapada. Árvores centenárias, animais, pessoas passeando. O pior é a falta de chuva. Outrora, ouvia-se muito a expressão estás mesmo a pedir chuva. Parece que sim.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Perversões de Janeiro

Janeiro acaba hoje, lá para a meia-noite. Um mês pervertido, de maus hábitos, a fazer passar-se por aquilo que não é. O que tinha ficado combinado, quando foi feita a distribuição dos meses pelas estações, era Janeiro ser um mês de Inverno, com chuvas copiosas, águas a correr peãs cidades e pelos campos, talvez inundações, sabe-se lá mais o quê. Nada disso. Janeiro agora é Primavera, árvores a florir, passarinhos a cantar, um sol vigoroso. À noite está frio, claro, mas os dias são uma antecipação do que está para vir. Hoje é um dia particularmente pesado. Voltaram as videoconferências, uma espécie de exercício penitencial adequado a quem tem muitos e graves pecados, embora existam videoconferências para todos os gostos. Umas são rápidas, sem considerações sobre o importante tema do sexo dos anjos. Outras, porém, são exercícios ferozes de angelologia, onde o assunto principal é o do sexo dos mensageiros divinos. Há quem esteja fascinado por esse sexo etéreo e sobre ele derrame as mais profundas especulações. Não tenho a certeza, mas será a casos destes que se aplica aquele comentário acintoso que proclama: Freud explica. Na verdade, Freud não explica nada há muito, muito tempo, mas é pena. Ontem deu-se o desfecho da campanha eleitoral. Encerradas as urnas, pode-se dizer que a campanha – uma alegre campanha – não focou muitos dos assuntos mais excruciantes que afectam este cantinho à beira-mar plantado. Por exemplo, o desconcerto das estações, elas que deveriam suceder-se em ritmo concertante, ou a razão por que há tanta gente disposta a gastar a vida dos outros a discutir o sexo dos anjos. Os nossos políticos de todos os quadrantes eximiram-se ao dever de discutir coisas destas que atrapalham a vida de toda a gente. Uma pena e uma oportunidade perdida.

domingo, 30 de janeiro de 2022

Uma questão de almas

Hoje é domingo e, devido a um hábito contumaz, o almoço será tardio. A meio da manhã recebi uma chamada do padre Lodo. Já fui votar. Desde que adquiri nacionalidade portuguesa, não falhei uma eleição, acrescentou. Sou devoto da democracia, apesar de jesuíta. Ao dizer isto começou a rir-se. Temos má fama, continuou, mas somos uma companhia moderna. Aqui, foi a minha vez de me rir. Modernos, então não são um pilar da contra-reforma? O que lá vai, lá vai, respondeu ele. Depois, começou a evocar a sua Itália, a família. Um dia destes vou fazer uma visita. Querem vir comigo, perguntou, como quem faz um convite. As minhas netas estão um pouco aceleradas. Desde que têm um cão, tratam-no como se fosse um irmão. O bicho olha para mim desconfiado, não devo ter ar de pertencer ao clube dos adoradores de animais. A verdade é que não me passaria pela cabeça fazer de avô de um cachorro. Devo ser um especista do pior, mas, apesar de defender que os seres humanos têm deveres rigorosos para com os animais e até para com as árvores, não julgo que se lhes deva dar direito de voto. Sobre este assunto partilho a visão do padre Lodo, que apesar de ter o seu gato de estimação, não admite a ideia de uma continuidade entre espécies. Costuma dizer que admira Darwin, mas que um homem é um homem e um gato é um gato. E os gatos não têm alma, para logo acrescentar: não têm alma imortal. Por analogia, também acho que o cachorro das minhas netas não terá uma alma imortal. Aproxima-se a hora de almoço.

sábado, 29 de janeiro de 2022

Dia de reflexão

Até eu, um mero narrador, estou em dia de reflexão. Em vários sítios tenho encontrado um feroz argumentário contra este dia anteposto aos actos eleitorais, no qual as pessoas se recolhem e se colocam diante do espelho para este as reflectir. Como é público, eu não me meto em política e não tenho opiniões políticas. Estou proibido pelo autor. Contudo, não posso estar mais em desacordo com todos aqueles que vituperam a existência deste magnífico tempo, no qual, depois de ouvirem e de estudarem as múltiplas opções que a pátria tem para cumprir aquilo que é determinado por Bruxelas, as pessoas se entregam a um tenaz exercício da sua razão crítica para determinar, se for esse o caso, a quadrícula do boletim de voto onde irão colocar um X. E este acto – o de colocar um X – deveria produzir uma grande indignação, pois discrimina os homens, os machos da espécie. Estes deveriam ter direito a colocar no boletim de voto um Y. Pouco corajosos, temendo que o Y corresponda a um voto nulo, lá cedem na sua masculinidade e, nesse momento crucial em que escolhem o destino da pátria, feminilizam-se e em vez do verrumante Y pespegam no papel o doce e harmónico X. Não faço ideia se a Comissão Nacional de Eleições permite que se expresse este tipo de problemas, mas há que correr riscos. Hoje está um dia de Primavera por aqui. Fui à rua e senti as pessoas acabrunhadas. Deve ser o peso da reflexão, ainda não sabem em que quadrícula hão-de fazer o X, pensei. Antes de encerrar este assunto, gostaria de sublinhar a perspicácia do legislador que, nos anos 70 do século passado, decidiu um dia de grande serenidade, digamos de bonança política, antes daquele em que as urnas se abrem e se fecham. Faz-me lembrar aqueles momentos de súbita calmaria no mar que antecedem as terríveis tempestades.  O legislador era, de facto, perspicaz, mas também dado ao exagero e ao drama. Tinha uma visão teatral da política, não percebendo que vivemos no mundo moderno, numa época onde a burocracia ocupou o lugar do encantamento mítico. Tudo depende da contabilidade e não das vontades ínvias dos deuses. Agora, vou continuar a reflectir, mesmo que um narrador, um mero ser de papel, não tenha direito de voto. Outra injustiça, não bastava já o banimento dos Y, também os narradores – sejam X ou Y – foram banidos.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Fim de reclusão

Passada a semana de reclusão, lá me vi atirado para a rua, obrigado a perambular por aqui e por ali, perdido entre outros transeuntes, também eles a deambular sem destino. Constatei, não sem alguma tristeza, que nada tinha mudado. Sete dias não são tempo suficiente para haver mudanças, dir-se-á e eu concordo. Contudo se sete dias não são tempo suficiente para haver mudanças, também oito não o serão, mas se oito não são… O leitor já está a ver a onde leva esta história. A isto dá-se o nome de paradoxo de sorites. Ainda falta qualquer coisa, mas deixemo-nos de paradoxos. Tenho uma série de coisas desagradáveis para ler, bem como outras não mais agradáveis para escrever. Para comemorar o dia da libertação, acabei por passar por uma livraria e, para enriquecer a minha pobre biblioteca, trouxe de lá os romances A Polícia da Memória, da japonesa Yoko Ogawa, e Tomás Nevinson, do espanhol Javier Marías. Segunda a crítica, este será o seu melhor romance. O pior é que são 650 páginas, um tijolo. Chega de procrastinar.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Sem-abrigo cinematográfico

Hoje passei o dia a trabalhar, apesar de continuar em isolamento covidiano. Amanhã, é dia de soltura. Durante estes sete dias, o vírus foi benévolo. Não por causa da minha super-imunidade, mas das três doses da vacina. Sem elas, não sei o que aconteceria. Foi ainda benévolo de outra maneira. Retirou-me a vontade de ler, o que me permitiu ter tempo para ver cinema. Não entro numa sala de cinema desde que a pandemia começou. Aliás, já tinha diminuído as idas. Por norma, só ia ao cinema quando estava em Lisboa. Ali frequentava as salas da Medeia Filmes, no Monumental, no Saldanha Residence e no King. Eram as que passavam o cinema de que gosto e onde não havia gente a comer pipocas. A certa altura, fecharam as salas do Saldanha Residence. Depois, fechou o King. Por fim, fecharam as salas do Monumental. Senti-me um sem-abrigo cinematográfico. Quando fui estudar para Lisboa, a sensação era o Quarteto, que, na altura, tinha uma selecção de filmes para um público com um certo olhar, digamos assim. O tempo passou e tudo aquilo se degradou. Já não sei em que sala foi, mas uma noite fui a uma estreia de um filme de João Botelho, salvo erro. Chegada a hora de começar o filme, nada se moveu. Os minutos começaram a passar sem dó nem piedade, os presentes perguntavam-se pelas razões do atraso, mas não havia quem confessasse, até que passado bem mais de meia hora entra na sala o Presidente da República e mulher. Estava explicado, mas havia uma incongruência. Como seria possível um militar não cumprir o horário? Fosse aquilo uma guerra e Portugal tinha perdido por falta de comparência. Do filme, já não me lembro. Tenho a vaga sensação que uma das actrizes era a Maria de Medeiros, em início de carreira, mas já não juro.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Sem traço

Continuo em isolamento, mas aproxima-se o dia da libertação. É preciso que o vírus continue a cooperar como tem feito até aqui. Tanto quanto sei, os vírus são criaturas voláteis, caprichosas, possui idiossincrasias que nem sempre se deixam interpretar. Até hoje, apenas me permitiu ver cinema. A leitura cansava-me. Trabalhar, ainda me deixava em pior estado. Hoje, porém, estive toda a manhã a cumprir os imperativos que a necessidade me impõe. Daqui a pouco volto para a azáfama. Olho para as ruas, mas acho-as irreais, um sol de cor indefinida, uma mistura de palha e melancolia. Uma máquina troa, os adolescentes gritam à espera do começo da aula no Centro de Línguas. Reparo que as acácias da praceta foram podadas. Rebentarão mais vigorosas. No correio chegou-me um livro de Augusto Abelaira, comprado num alfarrabista. Abro-o, percorro-o e sinto uma certa desilusão. Não tem nenhum traço do antigo proprietário. Uma dedicatória, um bilhete esquecido entre as páginas, uma reflexão, nada. Arrumo o livro, dou uma volta pela casa, olho para o friso das orquídeas e espreito o castelo ao longe. O tempo passa sem se importar com as orquídeas, os castelos, os vírus e os isolados. Mentalmente, registo o que tenho para fazer ainda hoje. Espreguiço-me e bocejo. Vida de isolado. Ao menos, podia ter ido para a Trapa ou para a Cartuxa, para esses lugares de grande silêncio. Medito no assunto e decido que vou ver um filme. Depois, terei tempo para acabar as tarefas de hoje.

domingo, 23 de janeiro de 2022

Sem energia, o termómetro

Nem sei se este é o terceiro ou o quarto dia de reclusão forçada. Será que a quinta-feira conta como reclusão? Quando descobri que o vírus tinha marcado encontro comigo já era noite e não fazia qualquer intenção de sair de casa. Acho que não vou contar esse dia. A relação com o vírus tem sido amistosa, apesar do PCR ter confirmado a situação. Não sei se é um dos sintomas ou apenas um dano colateral, mas ontem vi três filmes do Eric Rohmer, A Coleccionadora, O Joelho de Clara e Amor às Três da Tarde. Dizia para mim, estou com pouca energia, o melhor é ver um filme. Hoje, domingo de sol pouco exuberante, espero não me perder pelos fantasmas morais e eróticos do realizador. Sempre posso ver um filme, mas o melhor é não exagerar. Olho para a minha secretária e parece que sou um hipocondríaco. Não sou. Tenho, em cima dela, um termómetro, um oxímetro e um medidor da tensão arterial. Estar rodeado por tanta tecnologia digital mostra bem como sou um homem moderno, embora, confesso, dispensasse de bom grado o termómetro digital e voltasse para os braços do velho termómetro de mercúrio. Este termómetro irrita-me. Primeiro que o coloque em situação de medir a temperatura demora o seu bocado. Depois, posto debaixo do braço, devo retirá-lo quando ele der sinal, mas o pobre tem uma vozinha tão débil que muitas vezes nem consigo ouvi-lo. Por fim, acho que sofre de anemia. Devolve-me temperaturas na ordem dos 36, 35,5 ou mesmo dos 35 graus. Falta-lhe energia, para lidar com a realidade. Também a mim.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Antigénio e PCR

Está sol. Vejo-o através dos vidros da janela. Sou um isolado a tempo inteiro. Há alturas em que ando de máscara em casa, desinfecto as mãos antes de tocar em coisas que podem ser tocadas por outros. Ainda não recebi o resultado do teste PCR. Pode vir hoje ou, disseram-me, mesmo no domingo. E se der negativo? Não conheço nenhum caso em que um teste de antigénio feito em casa dê positivo e que o PCR o desminta, e eu não fiz um teste caseiro, fiz dois. O mais curioso de tudo isto é que escrevo antigénio e PCR com a maior das naturalidades, como se fossem coisas por mim conhecidas ainda antes de nascer, com o eram as Ideias ou Formas, segundo Platão. Ora, não faço a mínima ideia do que seja o antigénio ou PCR. Há muitas décadas, havia, numa certa escola que frequentei, um professor conhecido pelos os alunos como o Biótico. Os próprios alunos autodesignavam-se como antibióticos. Talvez o antigénio seja uma pilhéria de alguém contra os génios. Estas coisas nunca se sabem. Já o PCR faz-me lembrar a sigla de um partido político, o que se coaduna com a época de eleições em que estamos mergulhados. Vais votar em quem? No PCR, e tu? Seja como for, entre antigénios e PCR, tenho de estar confinado. As principais ocupações, até agora, são tomar paracetamol e beber água. Embora não esteja prescrito, o vinho não está proscrito, penso eu. Outra ocupação é escrever patetices, mas isso não vem de agora, nem tem por causa os testes positivos à COVID. É anterior. Tem-me animado não ter perdido o paladar. Sendo assim, posso meditar que tinto vou abrir para o almoço, que há-de chegar tarde, por circunstâncias exteriores ao actual estado de coisas. Mais logo, espero ver um novo filme de Eric Rohmer. Ontem vi dois, O Signo do Leão e Pauline na Praia. Não há nada como isolamentos e confinamento para alargar a cultura cinematográfica.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Positivo

Há pouco, com receita do SNS, fui a um laboratório para que me escarafunchassem o nariz. Tudo isto porque tive a ideia de deixar aqui em casa que me metessem uma zaragatoa pelas narinas e num passe de mágica tinha, perante os olhos, aquela coisa, por onde desliza um líquido imundo, com dois traços a vermelho. Positivo, exclamei. O melhor é repetir o teste, alvitraram. Respondi que não, que acreditava na veracidade do teste, mas lá anuí. Tornou a dar positivo. Em solidariedade comigo, a minha neta mais nova também testou positivo hoje de manhã. Uma coisa não tem a ver com a outra, pois já não nos vemos há umas semanas e ela está a mais de 100 km de distância. Até aqui, na família próxima tinham existido dois casos. Agora, já vão em quatro e talvez existam mais. Por causa das coisas, pedi que me comprassem um oxímetro. Pensei que fosse um investimento, pois parece que não livramos desta história nos próximos tempos. A sexta-feira tem estado luminosa, fazendo lembrar um belo dia de Primavera, mas não passa de um arremedo de sexta-feira. Tirando a saída para realizar o teste PCR, estou preso em casa, a tomar paracetamol. Enquanto a coisa for assim, não está mal. Aproveitei a manhã para ver A Minha Noite em Casa de Maud, de Eric Rohmer. Se tudo correr bem, tenho uns dias para dedicar ao cinema de Rohmer, para rever coisas já vistas ou para ver outras nunca vistas. Vamos lá ver se o vírus coopera.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Bibliopatologia

Na caixa de email, uma livraria online respeitável oferecia-me vários cursos, entre eles o de biblioterapia. Descobri que existem já biblioterapeutas que se propõem curar os maus hábitos dos portugueses relativos à leitura. Eu percebo que todos temos de ganhar a vida de um modo ou de outro, e trabalhar para criar hábitos de leitura noutros é profissão tão respeitável como qualquer outra. Aborrece-me a ideia subjacente de patologia. Não ler deixa de ser a ausência de uma certa virtude moral e passa a ser uma doença que é preciso tratar. Este tipo de abordagens tem por consequência eliminar a responsabilidade de cada um perante si e os outros e, concomitantemente, a liberdade. O acto de ler ou não ler deixa de ser uma escolha livre e passa para o domínio da saúde e da doença. Eu gostava muito de ler um livro, mas sofro da doença da não leitura, paciência. A liberdade passa então para outro domínio. Frequentar ou não uma biblioterapeuta. Serei virtuoso se, perante a falta de apetite pela leitura, me predispuser ao tratamento, e vicioso se recusar tratar-me. O problema que se coloca, porém, é se a recusa em se tratar não será também uma doença a exigir uma terapia específica. Como se pode observar, estou com uma enorme falta de assunto. Nada de notável para narrar. Minto. As orquídeas começam a dar sinais de vida. Algumas têm já vários botões. Ainda não temos um mês de Inverno e já por aqui se anuncia a Primavera. Talvez as orquídeas sofram de uma patologia temporal. Haverá terapeutas para esse mal?

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Caso perdido

Encontro sempre as mais mirabolantes justificações – ou desculpas – para gastar dinheiro em livros. No domingo, encomendei uma obra na FNAC online e hoje fui levantá-la à fnacquezinha que temos nesta pequena cidade. Trata-se da Fenomenologia do Espírito, de Hegel, na tradução do professor Barata-Moura. Tenho a intenção de pegar no livro e entregar-me aos devaneios idealistas do senhor Georg Wilhelm Friedrich, ir da certeza sensível até ao saber absoluto? Nem por isso. Então, diz-me a consciência, por que raio compraste esse tijolo que exige mais três centímetros de prateleira? Porque tenho um coração inclinado ao patriotismo, respondi. A consciência, não se ficou e retorquiu, citando o celebrado dr. Samuel Johnson, o patriotismo é o último refúgio do canalha. Foi nisso que te tornaste? Por Deus, exclamei e passei à explicação. Temos um mercado de bens culturais escasso, muito escasso. Ora, sempre que é traduzida uma grande obra da literatura universal ou da filosofia – embora esta não seja outra coisa senão literatura – eu disponho-me a comprá-la, mesmo que não me disponha a lê-la. Isto por solidariedade com o tradutor e o editor. A consciência olhou-me de lado e perguntou-me se eu queria arruinar-me. Aqui eu sorri e perguntei, de forma enfática, arruinar-me? Em primeiro lugar, são escassas as grandes obras universais. Depois, ainda são mais escassas – e lentas – as suas traduções. Há tempo para recuperar de qualquer extravagância. O patriotismo está aqui, acrescento, no contributo para alargar o mercado de bens a que os portugueses não são particularmente sensíveis. A consciência encolheu os ombros e olhou-me como se eu fosse um caso perdido. Sou-o, claro, mas não mais que qualquer outra pessoa, real ou virtual.

domingo, 16 de janeiro de 2022

Cura de águas

Leio que há quem pense, e propague aquilo que pensa, que beber água em jejum tem um extraordinário efeito curativo. Isto, para além de ser de prevenir as doenças que, caso não sejam evitadas, hão-de exigir uns quanto jarros de água matinais. Se pensa que as maleitas tratadas a água são daquelas que se curam com aspirina ou paracetamol, então está enganado. São doenças terríveis como a taquicardia, os problemas cardíacos, a diabetes, a meningite, o cancro. Não sei o que é mais espantoso, se a facilidade com que algumas pessoas acreditam seja no que for, ou a imaginação delirante que inventa estas curas milagrosas e tem artes para as propagar. Depois de dois séculos de triunfo do Iluminismo, as luzes da razão parece que estão fundidas e não há quem mude as lâmpadas. Se eu fosse estatístico e me entretivesse a recolher dados para com eles estabelecer correlações, tenho quase a certeza – mas ter quase uma certeza, ainda não é ter certeza alguma – de que existe uma correlação entre o crescimento do conhecimento racional e o crescimento da superstição. Não me atrevo, até porque hoje é domingo, a dizer que o desenvolvimento da potência da razão é, ao mesmo tempo, a causa do crescimento das aberrações da superstição. Se fosse um dia da semana, talvez tivesse coragem para o afirmar. Assim, pois hoje é domingo, restrinjo-me a uma mera sugestão. Não se pense que falo destas coisas por falta de assunto. Motivos para falar não me faltam, até porque tive ao almoço a visita do meu neto. Não veio só, claro, mas para um avô os netos vêm em primeiro lugar e brilham de tal maneira que ofuscam todo o resto. Quando ele está comigo entrego-me a actividades úteis, como fazer construções com o Lego ou corridas de automóveis, em vez de me deixar arrastar por estranhos pensamentos que me hão-de perder. A tarde avança a galope, não tarda chega o crepúsculo anunciador das trevas nocturnas. Amanhã, a realidade volta. Uma chatice. Vou beber um copo de água, talvez me cure da doença da realidade.