sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Lágrimas

A noite de sexta-feira já caiu há um bom bocado. Preguiço, deixando deslizar pelas colunas da aparelhagem o som de um disco de jazz. A faixa que oiço neste momento tem um título curioso, Transformação pelas Lágrimas. Talvez o autor esteja equivocado ao escolher tal título. Não são as lágrimas que provocam uma transformação, mas certas transformações existenciais geram lágrimas. Isso é muito conhecido tanto na religião como na psicanálise. Uma conversão religiosa, não me refiro aquelas que vão acontecendo ao longo de um período alargado, uma conversão religiosa, escrevia, pode ser acompanhada, se ela é súbita, por um amplo verter de lágrimas, como se fora uma forma de purificação da alma. O mesmo se passa no processo analítico, quando o paciente toca em algo que recalcara e escondera no fundo do inconsciente. Seja como for, as lágrimas são o sinal de uma transformação e não a sua causa. Alguma coisa que se solidificara e que se liquefaz. O que vale é que a faixa já mudou e a que oiço agora tem o título Deep as Love. Não vou massacrar ninguém com uma meditação sobre profundidades e amores. O que me atormenta é a velocidade com que a sexta-feira se precipita em direcção ao sábado. Se o mundo estivesse bem feito, chegada a hora em que uma pessoa – qualquer pessoa – se liberta dos imperativos da necessidade, o tempo refreava o seu ímpeto, a sua ânsia de transformar cada momento em passado, nessa busca inglória de um futuro que nunca atingirá. Por falar em tempo, é de bom tom citar uma autoridade. Agostinho de Hipona, escreve a certa altura O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo pergunta, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Agostinho escreveu isto no capítulo 14 do Livro XI, das Confissões. Agostinho, Santo Agostinho, também ele se converteu. Na mesma obra, no capítulo 12 do Livro VIII, escreve: Quando, por uma análise profunda, arranquei do mais íntimo toda a minha miséria, levantou-se enorme tempestade que arrastou consigo uma chuva torrencial de lágrimas. Talvez tempo e conversões, sejam elas quais forem, estejam ligados. Para terminar esta estranha e inesperada deambulação, uma nota sobre esse livro VIII. Todo ele é uma belíssima peça literária. A hora de jantar aproxima-se.

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