A seca agrava-se, leio. Não se pode ter tudo, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal. Neste caso, ou se tem um Janeiro primaveril ou se tem água nas barragens. Se houvesse um regulador da natureza, tudo era mais fácil. De dia, havia sol; de noite, chovia e as barragens enchiam-se de água. Como ninguém me pediu conselho, agora as coisas estão como estão. Avanço vagarosamente na leitura do romance de Yoko Ogawa, A Polícia da Memória. Tudo se passa numa ilha sem nome e a obra parece inscrever-se na categoria das distopias. Nessa ilha, as coisas desaparecem e com esse desaparecimento vão-se também as memórias delas. O papel da polícia da memória é assegurar que não persistam memórias daquilo que desapareceu. Ao não-ser não deve corresponder seja o que for. No início do século XVI, Thomas Morus escreveu Utopia, de certo modo inspirado na República platónica. Apesar da ironia do nome, a obra representa uma visão benevolente de uma sociedade humana, uma espécie de ideal orientador inscrito na génese da modernidade. Se olharmos para o século XX, o que encontramos são distopias, uma visão negra das possibilidades humanas. Serão uma confissão literária da falência do projecto da modernidade. Nem sei o que me deu para me dedicar a este tipo de conjecturas. Deveria ir apanhar sol e aproveitar estes dias em que a chuva se entrega a uma greve sem fim à vista. Também, um mundo onde fizesse sempre sol e nunca chovesse poderia acolher uma distopia literária. À minha frente estende-se uma belíssima tapada. Árvores centenárias, animais, pessoas passeando. O pior é a falta de chuva. Outrora, ouvia-se muito a expressão estás mesmo a pedir chuva. Parece que sim.
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