quinta-feira, 19 de junho de 2025

Beatices

Está um tempo esbranquiçado, uma luz anémica e um calor insuportável. Será das poeiras vindas de África, que decidiram emigrar do sítio onde estavam e procurar o estatuto de imigrantes, lançando um véu de irrealidade sobre este lugar que, por se acolher junto a uma serra, foi abandonado pelos ventos marítimos. Lá dentro, sob a rigorosa supervisão da avó, a minha neta mais velha confronta-se com as matérias da economia, para enfrentar o exame da próxima semana. Quando realizei esses exames, vivia-se um tempo extraordinário. Não apenas os professores fumavam na sala onde decorria a prova, como os alunos podiam fazer o mesmo. Isto é tão inverosímil que, quando penso nisso, acho que, como os actuais modelos de linguagem, conhecidos como Inteligência Artificial, estou a alucinar. O prompt que recebo de mim mesmo encontra um algoritmo que constrói uma história. Contudo, consigo mesmo ver-me a fabricar um cinzeiro em pleno exame, onde depositava a cinza e as beatas dos cigarros. Nunca soube a razão de se ter dado o nome de beata ao que resta do cigarro depois de fumado. Decidi, agora, perguntar a um Large Language Model a razão desse uso linguístico. Ele foi generoso e estabeleceu, de imediato, uma relação entre a beata do cigarro e a mulher beata da Igreja. Uma seria o que resta do consumo de um cigarro; a outra, o que resta pelo consumo do ardor religioso de alguém que se queima pela fé, que se consome pela devoção. Não fiquei particularmente convencido, mas não tenho contra-argumentos. A origem latina das palavras beato e beatitude não remete directamente para o contexto religioso, mas para a felicidade. Beatitude é felicidade, e beato é aquele que é feliz. Depois, o Cristianismo apropriou-se das palavras, dando-lhes um sentido mais restrito. Contudo, podemos imaginar, sem contradição, ateus beatos, isto é, felizes. Não consigo recordar-me, contudo, se, ao fumar em pleno exame, sentia alguma beatitude. Posso imaginar que sim, o que faria de mim, naqueles momentos, um beato a depositar uma beata num cinzeiro improvisado. Mesmo que essa memória seja falsa, alguma beatitude haverá nela para que a rememore. A minha neta não fuma, mas já ninguém fuma em exames. Tem uma vantagem sobre mim: a sabedoria que levar não se evola, durante a prova, com o fumo do cigarro. 

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