Março marçagão, manhãs de Inverno e tardes de Verão. Sempre que estou em apuros, recorro à minha colecção de frases feitas, lugares-comuns, provérbios ao gosto popular. Enfim, apelo à sabedoria do senso comum. Esta não apenas é tranquilizadora, como é, na verdade, sábia, contrariamente a muitas outras sabedorias que nada têm de sábias. Saí de casa, hoje de manhã, e chovia. De tal maneira que tive de usar um guarda-chuva. Céu cinzento, paisagem urbana soturna, gente com um aspecto quase lúgubre. Há pouco, na rua, perante a inclemência do sol, tive de acomodar as vestes ao fulgor estival. O céu tornou-se azul cintilante, a paisagem urbana era um revérbero, as gentes pareciam irradiar energia e um contentamento inexplicável. Como justificar isto sem recorrer a um ditado? Impossível. Por outro lado, tenho provas inescapáveis da minha proverbial estupidez, para falar claro. Irritei-me com um browser que me permitia aceder à internet. Estava apostado em não querer fazer aquilo para que fora feito. Não estou com meias medidas e, num gesto radical e hiperbólico, destituído de cuidado e sensatez, longe da justa medida por aqui apregoada, desinstalo-o. Vitória, pensei na altura. Derrota, penso agora. Ao suprimi-lo para o tornar a instalar apaguei todos os meus marcadores, aqueles que me permitiam aceder sem trabalho a lugares por onde fazia turismo. Conforta-me a frase de Thomas Carlyle: Com estupidez e boa digestão o homem pode enfrentar muita coisa. Embora, não se aplique completamente a mim, pois nem sempre as digestões são boas. A outra condição, essa está assegurada, pois contra a estupidez os próprios deuses lutam em vão, como escreveu um dia Friedrich Schiller. Seja como for, noto em mim uma tendência evolutiva. Parece que estou a transitar dos provérbios ao gosto popular para máximas cultas criadas pelo génio daqueles infelizes a quem estupidez foi poupada e que se encontram, as máximas e não os infelizes, ao deus-dará pela internet.
sexta-feira, 24 de março de 2023
quinta-feira, 23 de março de 2023
Ressurreição
No diálogo Fedro, Platão, através da personagem Sócrates, lança um violento ataque à escrita. Este exercício hiperbólico, ao qual são dadas razões filosóficas, pedagógicas e conviviais, não evitou que Platão tenha construído uma obra escrita também ela hiperbólica. O artefacto hipérbole é usado para referir a dúvida cartesiana, ficando Platão adstrito ao ramo retórico da alegoria e do mito. E se toda a obra platónica não fosse mais do que um exercício hiperbólico? Faria sentido. A hipérbole é um dispositivo da família do microscópio, serve para aumentar a realidade e é nesse processo de a exagerar que talvez ela se deixe vislumbrar. A ideia platónica de que a escrita é um registo morto não resiste, todavia, ao choque com a existência de pautas musicais. Também estas são constituídas por símbolos e compõem um todo que parece morto, mas quem as sabe ler encontra nelas a vida ou, melhor, encontra nelas múltiplas vidas. Também o texto escrito está submetido à ressurreição através da leitura. Toda a vez que se lê um texto este tem o seu domingo de Páscoa. Talvez faltasse a Platão o conceito de ressurreição para perceber a natureza da escrita, mas, por certo, alguma coisa nele lhe sussurrava para que escrevesse sem parar, pois os seus textos, apesar de residirem em mausoléus, acabariam, a cada leitura, por libertar-se da morte e ressuscitar na consciência do leitor. O diálogo vivo entre pessoas vivas, que seria superior à escrita, é agora substituído pelo exercício taumatúrgico do leitor, que opera o milagre da ressurreição daquilo que jaz morto, mas não apodrece.
quarta-feira, 22 de março de 2023
Uma questão de QI
As fases da vida. Uma sabedoria popular alimenta a crença numa vida repartida por fases, uma espécie de etapas de um Tour que liga o nascimento à morte. Cada uma dessas fases terá as suas características e exigirá um modo específico de existência, com os respectivos deveres e direitos. Como não me apetece arguir, aceito a descrição e faço – pelo menos, por hoje – minha essa crença. Interrogo-me, então, que etapa é esta em que estou. Sento-me aqui e adormeço, cabeça tombada para a frente, queixo encostado ao peito. Tudo isto para acordar com uma dor no pescoço e uma sensação de inutilidade. Que direitos e deveres me caberão nesta fase? Antes de adormecer, estava a dar uma vista de olhos por um livro. Lia o seguinte: Mas tens olhado para a tua volta com olhos de ver, nestes últimos tempos? Creio que saberás até que ponto é burra uma pessoa com um QI de cem. / Western encarou-o com ar desconfiado. Acho que sim, disse. / Pois bem, metade das pessoas são mais burras do que isso. Onde é que achas que tudo isto vai parar? / Não faço ideia. Eis uma boa resposta: não faço ideia. É a resposta que encontrar para múltiplas perguntas que me faço, entre elas a da razão por que, nesta etapa do Tour existencial, adormeço sentado defronte do computador. A incapacidade de encontrar resposta talvez resida no meu QI. A média do QI português é de 95. Sendo eu um português médio, devo partilhar a média do QI que cabe aos portugueses. Como assinalou Sheddan, aquele que dialoga com Western, um QI de 100 é já um sinal acentuado de burrice, quanto não fará um de 95. É humilhante, mas basta passar a fronteira para o QI subir 2 pontos. Se foi para isto que o primeiro Rei andou por aí a espadeirar, melhor fora que estivesse quieto. Seja como for, a situação aqui ao lado também não é muito famosa. Segundo vi, o topo do QI foi monopolizado pelos asiáticos. O que me deixou intrigado foi Israel. Tem menos 1 ponto de QI médio do que nós. Será que o QI também acompanha as fases da vida? Bem, não quero saber, contento-me com a pertença a um povo com um QI médio de 95, contento-me por reflectir com precisão essa pertença. Todas as idiotices que escrevo estão justificadas. Coitado, com um QI de 95, muito já faz ele.
terça-feira, 21 de março de 2023
On s'habitue
A Primavera consolida-se. Nas ruas, há já uma quantidade considerável de gente vestida como se fosse Verão e não são turistas vindos da Escandinávia. Não sei, no entanto, se são portugueses encalorados ou apenas crentes em que as vestes atraiam um tempo que com elas se coadune. Se tivesse de votar por uma das duas opções, votaria na segunda. Somos um povo que ainda não abandonou o pensamento mágico. Outrora, isso parecer-me-ia motivo de preocupação. Hoje, não. Não é que ache essa nossa característica uma vantagem competitiva na relação com o mundo, habituei-me, apenas. Estou como o senhor Brel: on oublie rien de rien / on s’habitue c’est tout. Há, contudo, um equívoco nestes versos. Durante grande parte da vida parece que nada se esquece, mas, a partir de certa altura, tudo se esquece, a própria natureza se encarrega de abrir o caminho para a amnésia, até ela ser total. O chilrear dos pássaros – talvez fosse melhor escrever o pipilar das aves – tem-se intensificado, o que confirma que a nova estação vai de vento em popa, desliza pelo lago do tempo com ventos favoráveis. Nunca me faltam provas de que em mim reside um mar de frases feitas e uma montanha de lugares comuns. Estão sempre ao alcance dos dedos. Escrevi acima portugueses encalorados. O Word não gosta da palavra encalorado. Sublinha-a a vermelho, como se fosse um árbitro a expulsar um pobre jogador indisciplinado. Desconfio que aceitaria portugueses calorentos, mas sinto repulsa pela expressão, não a escrevo. Não tanta como por aquilo que tenho diante de mim e espera a minha atenção. E de tanto dar atenção ao repulsivo on s’habitue c’est tout.
segunda-feira, 20 de março de 2023
Astenia
Caso me sinta cansado, já posso dizer que é a astenia da Primavera, mas, segundo fui informado, tenho de esperar pela mudança da hora. Sempre pensei que o cansaço se devia aos fluidos da estação, afinal é à manipulação do relógio. Até que a manipulação se concretize não tenho o direito de ostentar fadiga. Tudo isto para dizer que chegou a Primavera. Contudo, na rua, o meu corpo pensou que estava no Verão. Para apaziguar os espíritos oiço o libanês Rabih Abou-Khalil, um tocador de oud, um instrumento que se parece com o alaúde e cuja sonoridade quase que transporta o ouvinte para um transe contemplativo. Por vezes, gosto de deambular por músicas estranhas à tradição ocidental, como a árabe, a indiana e a japonesa. É a minha forma de viajar, eu que sou das poucas pessoas que conheço que não gosta de viajar. Falta-me a alma de viajante e digo-o com pena, mas cada um é o que é. O nomadismo é-me estranho, mesmo que seja um nomadismo temporário. Por vezes, obrigo-me, mas a coisa resume-se na palavra obrigação. Isto torna este narrador um ser estranho numa cultura que incensa a viagem. O meu ser, porém, acende velas à estância. Permanecer é uma aventura mais funda do que partir, pois é viajar onde se está. A Primavera mal começou e já não me está a fazer nada bem. Trouxe os pássaros com ela e reavivou a minha inclinação para a trivialidade. Diante de mim, tenho uma pilha de trivialidades que preciso de ler. O pior é a astenia.
domingo, 19 de março de 2023
Começos
Uma outra orquídea floriu, flores brancas. Neste momento, estão floridas duas brancas, uma amarela e uma fúcsia. Começo assim, pois não me ocorre nada mais. Também podia começar com o álbum de Jazz que se derrama na aparelhagem. Tem o título sugestivo Being There e é da autoria do pianista norueguês Tord Gustavsen, que é acompanhado por Harald Johnsen e Jarle Vespestad. O CD foi editado em 2006 pela inevitável etiqueta ECM. Outro começo possível seria falar da avenida, mas não se vislumbra nela vivalma, toda a gente recolhida. De tempos a tempos, passa um carro, vai sonolento, os vidros como revérberos. Descobri, há dias, que nela existe uma igreja de uma daquelas seitas neopentecostais que florescem como cogumelos num mundo que um velho conservador diria estar à deriva. Naquele lugar já houve um café ou um bar, não sei bem, pois nunca lá entrei. Pensava que era isso que ainda existia, mas reparei que havia qualquer coisa de inusitado. Apercebi-me, então, que era um lugar de culto. Havia uma assembleia. Uma mulher falava, uma outra, na assistência, estava de pé e tinha um braço no ar. Pensei, a princípio, que fosse uma sessão de esclarecimento político, mas é provável que esse tipo de reuniões já não aconteça há muito, coisa dos anos setenta do século passado. Ninguém precisa de se esclarecer, mas parece que há cada vez mais gente à procura de uma salvação. Duvido que seja a da alma que procuram, mas a do corpo. Isto, porém, é presunção minha. Não faço a mínima ideia do que vai na cabeça das pessoas. Nem na minha, quanto fará de gente que nunca vi. Se soubéssemos o que vai na nossa cabeça, se fôssemos completamente transparentes para nós próprios, será que nos suportaríamos? Também podia começar assim: Quem, se eu gritasse, me ouviria de entre as ordens / dos anjos? E mesmo que um deles, de repente, / me cingisse ao coração: eu desfaleceria da sua / existência mais forte. Pois o belo não é mais / do que o começo do terrível, que ainda mal suportamos, / e deslumbra-nos assim porque, imperturbado, / desdenha aniquilar-nos. Todo o anjo é terrível. Poderia começar assim, caso Rainer Maria Rilke não tivesse começado deste modo a primeira das elegias de Duíno. Para dizer a verdade, Rilke não começou assim. Quem assim começou foi Vasco Graça Moura, ao traduzir as ditas elegias. Então lembro-me das ordens angélicas e repito-as para mim: anjos, arcanjos, serafins, querubins, tronos, potestades e dominações. Falta qualquer coisa e tudo parece fora do lugar. Consulto um site denominado Aleteia e recebo a verdade sobre a hierarquia angélica. Na primeira, e mais elevada, estão os Serafins, os Querubins e os Tronos. Na segunda, intermédia, encontram-se as Dominações, Potestades e Virtudes. Por fim, na terceira e mais próxima dos homens, estão os Principados, os Arcanjos e os Anjos. Será que também esta hierarquia reflecte uma escala de beleza? Quanto mais longe dos homens, mais belos os anjos? Faz sentido, pois não suportamos, com os nossos olhos mortais, um excesso de beleza. Acabo o texto sem me decidir pelo começo.
sábado, 18 de março de 2023
Considerações lastimosas
Um céu azul onde navegam, como barcos de guerra, nuvens de cinza e cal. Parecem cordatas, mas se algum comando inquieto lhes fende a bonomia e o torpor, estão prontas para disparar os canhões de água. Retornei ao exercício da hipérbole. Talvez seja o efeito do Picetoprofeno com que pulverizei o pobre do calcanhar. O odor do produto entranha-se pelas narinas, sobe ao cérebro e deixa-o incapaz de se medir com a realidade. Na descrição da droga está escrito que entre os excipientes se encontra a essência de lavanda. Ainda bem, pois se não estivesse nem sei como seria possível suportar o aroma que se evola a cada pulverização e que persiste no pé, se agarra à meia e se cola ao septo nasal. Também é verdade que entre os tais excipientes se encontra a cânfora. Em tempos, constava que nas cantinas militares misturavam cânfora com o vinho que era dado aos soldados, para fazer baixar a libido. Ora, não é sem surpresa que leio que essa mesma cânfora é um potenciador do desejo sexual, pois estimula certas regiões cerebrais responsáveis pelas pulsões eróticas e, pasme-se, pode ser usada no tratamento da disfunção eréctil. Fiquei siderado por ver refutada uma ideia que eu juraria que tinha ouvido, pelo menos assim o pensava, e, mais do que isso, tinha crido nela. Não encontrei, na internet, indício que ligasse a cânfora, mesmo misturada com vinho, a uma diminuição do interesse pelo sexo. Será que inventei a história e passei a acreditar nela? Parece-me uma ideia demasiado rebuscada. Uma pessoa a pensar que a cânfora era um potenciador da hipolibidemia, um autêntico anafrodisíaco, e afinal não passa de um concorrente verde, apesar de ser branca, do comprimido azul. Descobri que outrora os monges punham raminhos de vitex agnus-castus nas roupas dos noviços, para que nestes se acalmassem os ardores, mas o vitex agnus-castus não é cânfora, mas liamba, e nunca ouvi dizer que na tropa se misturasse liamba ao vinho para esses fins pacificadores. Também consta que já no século XIX se duvidava da eficácia da medida, refiro-me à liamba na roupa dos noviços. Um narrador ocioso começa a falar no azul do céu e acaba a perorar sobre a concorrência ao Viagra e a fazer considerações sobre coisas que uma pessoa de bem não devia considerar.
sexta-feira, 17 de março de 2023
A discórdia
Neste momento, o sol brilha, as paredes dos prédios resplandecem, as folhas das árvores, daquelas que as têm, cintilam e, em súbitas fulgurações, quase cegam o espectador. Há pouco, porém, tudo era diferente. Um fortíssimo aguaceiro abateu-se sobre a cidade e o céu era chumbo prestes a precipitar-se sobre a terra. Estas súbitas metamorfoses talvez possam interpretar-se como um conflito entre o Inverno que se recusa a morrer, agora o que o seu tempo estar a terminar, e a Primavera desejosa de nascer, mesmo que ainda não seja a sua hora. Uma estação quer procrastinar tanto quanto a outra se deseja prematura. A discórdia dos elementos é apenas uma prova de que Heraclito, o obscuro filósofo de Éfeso, teria alguma razão. Nunca deixa de me impressionar o número de trivialidades que me saem dos dedos, e se saem dos dedos é porque me ocupavam o cérebro. Imagino, agora, que escrever estes textos seja uma forma de me alivar das banalidades que navegam no mar insípido da minha alma. Como poderia ser de outro modo? Estou desde manhã bem cedo entregue a trivialidades. Agora, porém, oiço displicente uma sonata para piano de João Domingos Bomtempo. Bocejo, apesar da música. Raramente, as noites me são propícias. Da rua, chega-me o cantar de pássaros que não vejo. A música da natureza mistura-se com a produzida pelos seres humanos, mas não será esta ainda uma música da natureza? O tempo passa depressa. Desfilam sem parar as sonatas do compositor português, enquanto a tarde entra no crepúsculo anunciador das trevas nocturnas. Ainda oiço adolescentes na praceta, jogam com uma bola. Vejo-me há muitas décadas, também a jogar à bola na rua, num tempo em que entre mim e mim não tinha entrado o vírus da discórdia. Essa patologia que fez alguém dizer: Comigo me desavim, / Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim. // Com dor da gente fugia, / Antes que esta assi crecesse: / Agora já fugiria / De mim, se de mim pudesse. / Que meio espero ou que fim / Do vão trabalho que sigo, / Pois que trago a mim comigo / Tamanho imigo de mim? Bastaria este poema para Sá de Miranda ter um lugar na história da literatura portuguesa. Vou entrar pelo fim-de-semana dentro.
quinta-feira, 16 de março de 2023
Alienação
Meticulosidade será a palavra que descreve duas experiências a que me entrego de momento. Em Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, um filme de 1975, a cineasta belga Chantal Ackerman faz um exercício meticuloso de descrição da vida de Jeanne Dielman (uma magnífica Delphine Seyrig), uma viúva relativamente jovem, com um filho adolescente, e que se entrega pelas manhãs às rotinas domésticas, um exercício escrupuloso, e de tarde se prostitui. O filme tem mais de três horas e estou a vê-lo em pequenos episódios, digamos assim. Ackerman coloca a câmara em cima da protagonista e raramente a tira, dá-nos uma visão da exterioridade daquela mulher, uma exterioridade mecânica, rígida, como se a bela Jeanne Dielman não tivesse vida interior, e tudo nela se resumisse aos gestos precisos e ordenados com que executa as tarefas do quotidiano. Na imutabilidade da rotina doméstica, a realizadora, usando a câmara à maneira de um voyeur insistente e obcecado, mostra a alienação da mulher em relação a si mesma, a sua perda nos rituais da domesticidade. Uma outra experiência da meticulosidade é a leitura do romance O Outro Nome – Septologia I-II, de Jon Fosse. Aqui, porém, a experiência é muito diferente. O narrador e personagem central do romance também é meticuloso, excessivamente meticuloso, na narração da sua corrente de consciência, mesmo aquilo que é dito pelo outros é filtrado pela corrente de consciência. São descrições levadas ao pormenor, com repetições, num exercício encantatório provocado pela minúcia da narração. Tudo no filme de Ackerman é exterioridade. Ao contrário, no romance de Fosse tudo é interioridade. São os pontos de vista narrativos que criam a experiência de alienação de Jeanne Dielman e a experiência de profunda consciência de si de Asle, o artista plástico, personagem de Fosse. Podemos imaginar o artista plástico filmado como foi filmada a jovem viúva. Por certo, a sensação com que ficaríamos era a de uma vida alienada, estranha a si mesma. Também não é difícil conceber Jeanne Dielman a narrar a sua história a partir da corrente de consciência. Por certo, desapareceria a sensação de alienação. Quando se fala em alienação, fala-se sempre de alienação dos outros, pois é plausível pensar que a alienação só existe a partir de um olhar exterior em relação às vidas que são catalogadas como alienadas. A alienação só existe no olhar dos outros.
quarta-feira, 15 de março de 2023
Vinganças
Talvez as coisas estejam a mudar. Duas experiências no campo da saúde em que fui atendido à hora marcada. Ontem, numa consulta com um médico de clínica geral, marcada para às 12:20, entrei para o consultório precisamente às 12:20. Esta foi uma consulta em que comecei por pedir desculpa ao médico por ali estar, devido a um erro do ortopedista da mesma clínica. Este ouviu as minhas queixas relativas ao calcanhar do pé esquerdo. Observou-me o calcanhar, receitou-me um anti-inflamatório para tomar durante cinco dias. Caso a dor não se evaporasse, que fizesse umas radiografias aos pés e tornozelos e uma ecografia às partes moles do pé. Claro que a inflamação não desinflamou e eu marquei os exames, falei com a assistente, decifrei os pedidos do médico e fiquei descansado. Só que, no dia seguinte, ao acordar e colocar o pé no chão fiquei com a sensação de que a ecografia tinha sido prescrita para o pé direito e o que me doía era o esquerdo. Fui ver as prescrições e confirmei. Na clínica arranjaram-me a consulta para que um clínico geral me prescrevesse o exame ao pé esquerdo, pois o ortopedista só lá estaria depois da data dos exames. Senti-me na obrigação de me desculpar perante o médico, pois acho que os médicos são mais do que prescritores de medicamentos e exames. Ele foi simpático e disse que eu não tinha culpa. Hoje fiz os exames, à hora marcada, e recebi a notícia de que tenho uma tendinite. Já estou arrependido de ter trocado a ecografia. Se a tivesse feito ao pé direito, não tinha nenhuma tendinite. Isto é o que dá uma pessoa armar-se em esperto. O destino vinga-se. Seja como for, o mundo parece estar a melhorar, embora eu esteja a piorar.
terça-feira, 14 de março de 2023
Excesso de luz
O telhado branco do pavilhão desportivo da escola aqui ao lado resplandece. Os raios solares, ao incidirem naquelas amplas superfícies, levemente inclinadas, causam uma fulguração intensa, apesar de branca, que os olhos dificilmente suportam. É o destino dos homens não suportarem uma luz excessiva. Se algum deles traz uma luz intensa, os outros não a suportarão e não o suportarão, e haverão de o amaldiçoar, pois nem os seus olhos, nem o seu pensamento, nem o seu coração foram feitos para esse excedente de luz que, apesar de insignificante, traz consigo uma diferenciação. É plausível pensar que a estranha história narrada por Platão e que ficou conhecida por Alegoria da Caverna não seja outra coisa senão uma reflexão sobre o quão insuportável é para a humanidade ter de conviver com alguém que é portador de luz. A Alegoria da Caverna é interpretada recorrentemente de modo filosófico, tanto epistemológico como metafísico, mas na verdade ela é um arquétipo sociológico, um modo de entender as relações sociais entre o comum e o incomum. Mesmo os mais ardentes defensores das diferenças sociais se tornam igualitaristas na hora em que percebem alguém que é mais dotado do que eles. Um acaso, coisa que sucede tantas vezes, levou-me a ver uma série de reproduções de esculturas de Antony Gormley, onde o corpo humano é o tema. Imagino que o escultor tenha pegado em cada um dos prisioneiros da caverna de Platão e o tenha submetido a uma diferenciação específica. Interrogo-me como se sentirão eles nesses corpos que no lugar de os assemelhar os diferenciam, como se pertencessem a espécies estranhas. Provavelmente, tremerão de medo perante o horror do que vêem. O telhado branco do pavilhão continua preso na sua cintilação branca, cai sobre os olhos como um punhal. O melhor será ir buscar os óculos escuros.
segunda-feira, 13 de março de 2023
Coisas esdrúxulas
Aproxima-se a hora em que terei de me levantar daqui, desta cadeira em que me sento, e tomar o caminho que me leva sempre à perplexidade. Vou constatar o que já sei, mas o facto de saber não elimina o ficar perplexo. Saber implica crer no que se sabe, mas há coisas que nós sabemos e que, no fundo, recusamos crer nelas. Esta recusa é uma revolta contra a ordem das coisas. É um revolta inútil, pois a ordem das coisas é indiferente às nossas rebeliões e às crenças que acalentamos ou que desprezamos. Ainda falta algum tempo para me levantar. O melhor seria não pensar, penso eu agora. A vida é feita de coisas esdrúxulas, apesar de muitas delas não serem acentuadas na antepenúltima sílaba. Por outro lado, não gosto da palavra esdrúxula, mas seria dificilmente aceitável afirmar: a vida tem coisas proparoxítonas. Ninguém compreenderia, embora fizesse mais sentido, devido à presença de oxítono, derivado do grego oxýtonos que significa com acento agudo, o que sublinharia a presença na vida daquilo que é agudo, perfurante, verrumante. A semana útil começa com estas meditações inúteis. A palavra verruma, ou será a palavra verrumante, aprendi-a num texto de António Sérgio, espero não estar enganado. Julgo que foi a única coisa que aprendi com ele. Não que ele não tenha muita coisa para me ensinar, mas nunca prestei grande atenção aos ensinamentos que nos seus livros se ocultam. Daqui a cinco minutos terei de estar a entrar para o carro, pô-lo a trabalhar e começar a deslizar pela rua, à procura de uma outra, e outra, e outra. A vida é isto, um passar de rua em rua, como as notas ou as moedas passam de mão em mão. O dinheiro electrónico é mais asseado.
domingo, 12 de março de 2023
Duas liberdades
Passei a manhã a fugir daquilo que tenho de fazer antes que este domingo se dê por finado. Qualquer pretexto me serviu e, quando não havia pretexto, inventava um ou dois, que logo me davam uma ocupação, a qual não era destituída de prazer. E isto traz-me à memória aquele poema de Fernando Pessoa que começa assim: Ai que prazer / Não cumprir um dever, /Ter um livro para ler / E não o fazer! / Ler é maçada, / Estudar é nada. / O sol doira / Sem literatura. Podemos imaginar que seja falso que o sol doire sem literatura, pois dizer que o sol doira já é literatura, uma narrativa minimalista, mas uma narrativa, e nós nunca saberemos se o sol continuará a doirar quando a literatura desaparecer. A verdade, contudo, é que o poema de Pessoa narra a essência da liberdade nesse não cumprir um dever. Coisa que contrariaria aquele filósofo nascido em Konigsberg e que via a essência da liberdade no cumprir do dever não por prazer, mas apenas por dever, por amor ao dever e por respeito à lei moral. Em mim, este infeliz narrador de uma gesta sem honra nem glória, sempre houve, desde o dia em que na inocência dos seis anos pisei o chão de uma escola, um conflito entre essas duas formas de conceber a liberdade. Nessa altura nem sabia que existia uma coisa chamada liberdade, pois até aquele dia era livre e, como no caso da saúde, ninguém precisa de saber o que é a liberdade quando é livre. Só os doentes querem saber o que é a doença, só os não-livres se preocupam com a liberdade. A partir daí, nem sei bem em que altura, descobri que estava dividido em dois, pois havia em mim duas liberdades que se combatiam com ferocidade. Aquela que insistia no ai que prazer não cumprir um dever, e a outra que me ordenava cumpri-lo por ser esse o meu dever e não por qualquer outra razão espúria que submetesse a minha razão a um qualquer imperativo hipotético. Talvez nada disto seja verdade, mas apenas uma manifestação de uma certa inclinação que há em mim para a hipérbole. Há quem se entregue à metáfora, ou à metonímia, ou à anáfora, ou à litotes. A mim coube-me a hipérbole. Por vezes, imagino-me capturado pela anáfora, e que todo o meu discurso contém, continuamente, a repetição de uma expressão, ai que prazer não cumprir um dever, ai que prazer ter um livro e não o ler, ai que prazer acordar para adormecer, ai que prazer parar para voltar a correr. De certa maneira, a anáfora, na sua ânsia de repetição, contém em si qualquer coisa de hiperbólico. Por isso, dar-me-á tanto prazer.
sábado, 11 de março de 2023
Um casamento em G
Quando nada ocorre, quando a mente é uma página em branco na qual nada se inscreve, quando a preguiça toma conta da rede neuronal, não há outro remédio senão recorrer à citação. Apesar de os linguistas afirmarem que com as poucas letras do alfabeto, o número insignificante, apesar de tudo, de regras gramaticais, e os milhares de palavras, ainda um número demasiado limitado, que as letras têm permitido criar, podemos construir um número infinito de frases e, provavelmente, um número infinito ainda maior – pois, os infinitos não são todos do mesmo tamanho – de textos, apesar deste optimismo linguístico, assevero, o mais plausível é que tudo o que se escreva e diga não passe de citação. Isto absolver-me-á de me entregar agora à tarefa de citar. Leia-se: Gallito está fotografado na minha sensibilidade, com Pavlowa e Massine… Gallito foi, efectivamente, um dos maiores bailarinos que em meus olhos dançaram… Em seus passos ouvia-se castanholar a Espanha. Ora, como me está a agradar a citação, informo que Espanha é seguida de um parágrafo, para depois o texto ser retomado assim: Quando o seu corpo, em desafio, relampejava nos olhos punhalescos do boi, sentia-se viver a raça na distância entre a fera e o matador… Gallito era um grito da tradição, um filho longínquo da Salomé que, à falta de cabeças de profetas, teve que dançar com cabeças de touros… Sempre se pode trocar esta citação de António Ferro por uma de Alexander Kluge: Quando duas pessoas se põem a discutir numa sala, são seis pessoas que ali estão sentadas. São também os pais que ali estão a discutir, disse um amigo psicólogo. Pode ser que sim, mas o problema de Gertie era que ela não era capaz de discutir, pelo menos com o seu actual namorado. Por isso, mesmo quando ela chegava a dizer alguma coisa, era sempre uma só pessoa a falar. Ora, o actual namorado de Gertie é Franz, embora eu imagine uma outra coisa. Suspeito que o seu verdadeiro namorado é o matador Gallito, que, cansado de dançar nos olhos dos toiros, cansado de estocadas finais, apenas olha para Gertie e, farto de multidões, não quer que os pais dele e os pais dela lhes venham estragar o dia ou a noite, pois aquela casa, onde um amor improvável se consuma, não é nenhuma arena. Creio que, juro, um dia destes, depois de uma chicuelina e de uma verónica, ao som de um paso-doble, Gallito pedirá Gertie em casamento. Será um casamento solar, ou em G, que, em certas notações musicais, designa aquilo que noutras é nomeado por Sol, se não estou enganado. Restaria apenas saber se será um casamento em Sol maior ou menor, mas como é regra nestes textos, não se pode saber tudo.
sexta-feira, 10 de março de 2023
Um mundo perfeito
Está concluído o primeiro terço de Março. O tempo desliza, entrega-se a uma volúpia sem nome, arrastando-nos com ele, sem nos dar a possibilidade da recusa. Os dias úteis da semana, tão cheios de inutilidades, também estão consumados. Vai ser um fim-de-semana agitado, com netos que o tempo, mais uma vez, faz crescer, roubando-os à infância. Elas já se afastarem, a passos largos, dessa primeira moradia, ele ainda por ali corre inconsciente de que é a sua casa mais fundamental. Enquanto a casa está tranquila deixo correr, pelas mãos de Daniel Barenboim, as Canções sem Palavras (Lieder ohne Worte), de Felix Mendelssohn, e leio Incendeia-se a desventurada Dido e pela cidade inteira vagueia, / desvairada, qual corça colhida por uma seta, / a quem pegou, desprevenida, no meio dos bosques de Creta, / o pastor que com seus dardos a perseguiu e nela deixou um ferro alado, sem o saber; ela, na fuga, atravessa bosques e barrancos / do Dicteu; aguenta, firme, no flanco a seta fatal. E neste instante penso não apenas que este é o melhor dos mundos possíveis, mas é um mundo perfeito, agora que a tarde se aprestar para se entregar nos braços do crepúsculo, que, ao cingi-la com suavidade, a adormecerá, entregando-a às sombras do reino da noite. Fecho os olhos antes que da Flauta Mágica chegue a Rainha da Noite com a vingança do inferno a arder no coração, e, incendiada, estrague o mundo que mesmo agora, apesar de pensar nessa harpia, me parece tão perfeito.
quinta-feira, 9 de março de 2023
Da visão
Não são poucas as vezes que tenho de me obrigar à contenção e não me deixar arrastar por um desejo insensato de comprar um livro que já possuo, mas que agora se apresenta com uma outra capa. Por norma, resisto, mas esta inclinação não deixa de colocar um problema interessante. Imaginemos que de uma certa obra é feita uma nova edição, sem que o texto sofra uma única alteração, mas o design da capa muda. Será ainda a mesma obra? O design gráfico que opera em produtos como livros, discos, CD, DVD, etc., é eficaz porque passa a fazer parte da obra. Poder-se-á dizer que o design presente nas capas parasita a obra que encapa, mas é duvidoso o que é, nesse processo, parasitado e o que é parasitário. Se se observar com atenção a relação que se estabelece com um livro, descobre-se que é necessário um esforço para separar o conteúdo da obra da sua capa, do seu design gráfico. Será por isso que mesmo os e-books continuam a ostentar a capa, assim como a música digital, tanto a vendida como a alugada em plataformas, não dispensa a exibição da capa do disco ou CD físicos. Tudo isto revela o peso que a visão tem nas nossas escolhas e como a visão poder ser o guia que abre o caminho para outras experienciais sensoriais ou mesmo racionais. Aristóteles já tinha percebido a sua importância. O livro primeiro (alfa) de A Metafísica começa com a seguinte declaração: Todos os homens têm naturalmente o desejo de saber. O que o testemunha é o prazer que nos causam as percepções dos nossos sentidos. Agradam-nos por elas mesmas, independentemente da sua utilidade, sobretudo as da visão. Não se pense que o discípulo de Platão não oferece razões para este louvor à visão: É que ela nos permite, melhores que todos os outros (sentidos), conhecer os objectos, e nos revela um grande número de diferenças. Sendo assim, o prazer de ver que as capas exploram é um modo de intensificar o prazer de ouvir ou o prazer de ler. Curioso, para além da questão das capas, é o início da obra de Aristóteles, daquela que trata dos assuntos mais abstractos, daqueles que estão para além daquilo que é físico ou natural. Começa com uma afirmação de que o desejo de saber faz parte da natureza de todos os homens e passa, de imediato, a uma apologia do prazer proporcionado pelos sentidos. Será por isso que muitas vezes sou tentado a comprar um livro que já tenho apenas pelo facto de se apresentar numa nova capa que os olhos não deixam de desejar.
quarta-feira, 8 de março de 2023
Do disfarce
Logo no início do livro, trata-se de Lacrimae Rerum, Slavoj Žižek, num texto sobre o cineasta polaco Krzysztof Kieślowski, refere o fosso bem visível entre uma realidade social cinzenta e triste e a imagem optimista e resplandecente que impregnava os media oficiais sujeitos a uma censura rígida. Não são poucas as vezes que penso, ao deparar-me com uma pessoa transbordante de optimismo e de esplendor, que qualquer coisa se esconderá por detrás daquela aparência. Nunca sei, porém, se estou perante um disfarce para tentar evitar que olhos estranhos penetrem no segredo de uma existência ou se aquela representação é uma forma de se proteger contra a crueza da vida. Talvez as duas coisas. É possível que, no olhar que tenho das coisas e das pessoas, seja influenciado pela doutrina aristotélica do meio termo. A virtude residirá no meio entre o excesso e a deficiência, no sentido de falta. A fanfarronice é a máscara ostentada pelo cobarde, a cobardia é a deficiência no âmbito da coragem, que não se suporta a si mesmo. A exuberância cintilante do optimista é a máscara de uma vida triste e amargurada, marcada pelo pessimismo. A descrição de Žižek refere-se a sociedades governadas autoritariamente, mas o que poderemos nós pensar de sociedades livres? Nelas não existe uma censura que imponha uma alegria oficial para disfarçar a tristeza real. Todavia, tudo aquilo que podemos colocar sob o epíteto de sociedade do espectáculo pretenderá esconder o quê? Que deficiência, ao vivermos e alimentarmos esse tipo de sociedade, pretendemos ocultar? É plausível que o espectáculo seja o disfarce do vazio que são as vidas dos indivíduos, de todos aqueles que não sabem (e haverá alguém que saiba?) que o lugar do homem não é nem a falta nem a plenitude, mas a mera suficiência, um medíocre qualificativo, mas que está de acordo com a natureza de seres finitos e limitados. Talvez os elementos atmosféricos me tenham impedido de fazer uma meditação menos esotérica. Quando o céu está carregado de chumbo e a ramagem das árvores dança sob o efeito da música impiedosa do vento, o pensamento tende a espelhar aquilo que no mundo se manifesta. Não faltam astrólogos para predizer o ânimo das pessoas de acordo com a conjugação dos astros, melhor fora que se dedicassem à meteorologia ou, para ser mais preciso, a uma psicometeorologia.
terça-feira, 7 de março de 2023
As imperfeições de um cavaleiro andante
segunda-feira, 6 de março de 2023
Universos em expansão
Voltar a um hábito já com algum tempo. Consultar a aplicação que fornece os dados meteorológicos e confirmar aquilo que os olhos vêem. Via chover, mas só tive a certeza de que assim era quando a aplicação do telemóvel me confirmou que, neste lugar, estava a chover. Uma coisa são os nossos sentidos, falíveis e sempre inclinados à ilusão, outra é o mundo dos algoritmos digitais que fornece informação que, pela sua natureza, não estará presa às fantasias das sensações. No friso das orquídeas, há três floridas. Uma, porém, não deve ser tida neste rol, pois foi comprada há duas ou três semanas e já vinha florida. Uma floração branca e pura. A amarela está exuberante e uma de cor fúcsia, se é que se deve assim denominar aquela cor, também iniciou o processo de floração. Uma rápida inspecção permitiu perceber que também outras se aprestam para chegar ao grande momento. A minha relação com as orquídeas é puramente contemplativa, sou um voyeur e não um cultivador, tão pouco um jardineiro. Imagino que deveria haver uma aplicação para confirmar se as orquídeas que vejo floridas o estão de facto, e não é apenas uma presunção minha, uma visão delirante, a obscura ânsia pela anunciação da Primavera. Há pouco, ao ler um poema – melhor, a tradução de um poema – de Rainer Maria Rilke, deparei-me com um mundo que nunca foi o meu. Com os mundos do passado acontece o mesmo do que com as galáxias. Quanto mais longe estão de nós, mais depressa se afastam. O afastamento de nós do mundo de Rilke é menos veloz do que do de Goethe, e o deste menos apressado do que o de Homero. Talvez, por analogia, o mesmo possa acontecer com a nossa vida. O afastamento da minha infância é muito mais rápido do que o afastamento dos meus quarenta anos. Para a minha escala, a infância corre desvairada para trás, sempre cada vez mais depressa, infatigável. Eu vejo-a afastar-se e sinto uma leve tristeza por ela não me poder suportar. Imagino que também os mundos poéticos de outrora não suportem os actuais. Isto significa que o universo poético está em expansão. Significa também outra coisa, o universo de cada um também se expande até à hora em que colapsa devido à velocidade de afastamento de cada época em relação ao presente, sendo a morte a impossibilidade de manter a concatenação dos tempos que nos foram dados a viver. Isto, se nenhuma aplicação o vier desdizer.
domingo, 5 de março de 2023
Macaquices
Entre radicais e terminações, a minha neta mais velha vai compondo o condicional do verbo être. O francês tornou-se um objecto estranho na aprendizagem das novas gerações. Durante muito tempo, o francês e o que se passava em França exerciam uma poderosa influência sobre a cultura nacional, agora parece que só existe o mundo anglo-saxónico. De tal maneira que, muitas vezes, se ouve pronunciar palavras francesas como se fossem inglesas. Isto é uma espécie de traição às nossas origens. Afonso Henriques era descendente de franceses, somos uma espécie de filhos de França. Agora, porém, macaqueamos os anglo-saxónicos, e as nossas elites tentam esquecer que somos um povo com uma língua latina, como se isso fosse uma vergonha. Daí, o crescimento exponencial do uso de palavras inglesas. Nas áreas da economia e da gestão, isso tornou-se uma praga, como se esse uso mágico nos tornasse um povo de grandes empresários e de gestores de alta qualidade. Ora, o que acontece em Portugal é um fenómeno curiosíssimo. Quando uma palavra se torna o que agora se chama um mantra, então podemos ter a certeza que aquilo que a palavra denota não existe, nem ninguém está empenhado em fazer que exista, mas toda a gente está comprometida em fingir que existe. Somos um povo de fingidores, o mesmo será dizer que somos um povo de poetas, pois um poeta é um fingidor. E aqui retorno à trivialidade que me habita, o que está de acordo com este domingo frio. O verbo être lá se vai declinando nos vários tempos e modos. Agora, passou para o imperfeito do faire. Ora, se há uma coisa que me apetece é mesmo não fazer nada.