Meticulosidade será a palavra que descreve duas experiências a que me entrego de momento. Em Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, um filme de 1975, a cineasta belga Chantal Ackerman faz um exercício meticuloso de descrição da vida de Jeanne Dielman (uma magnífica Delphine Seyrig), uma viúva relativamente jovem, com um filho adolescente, e que se entrega pelas manhãs às rotinas domésticas, um exercício escrupuloso, e de tarde se prostitui. O filme tem mais de três horas e estou a vê-lo em pequenos episódios, digamos assim. Ackerman coloca a câmara em cima da protagonista e raramente a tira, dá-nos uma visão da exterioridade daquela mulher, uma exterioridade mecânica, rígida, como se a bela Jeanne Dielman não tivesse vida interior, e tudo nela se resumisse aos gestos precisos e ordenados com que executa as tarefas do quotidiano. Na imutabilidade da rotina doméstica, a realizadora, usando a câmara à maneira de um voyeur insistente e obcecado, mostra a alienação da mulher em relação a si mesma, a sua perda nos rituais da domesticidade. Uma outra experiência da meticulosidade é a leitura do romance O Outro Nome – Septologia I-II, de Jon Fosse. Aqui, porém, a experiência é muito diferente. O narrador e personagem central do romance também é meticuloso, excessivamente meticuloso, na narração da sua corrente de consciência, mesmo aquilo que é dito pelo outros é filtrado pela corrente de consciência. São descrições levadas ao pormenor, com repetições, num exercício encantatório provocado pela minúcia da narração. Tudo no filme de Ackerman é exterioridade. Ao contrário, no romance de Fosse tudo é interioridade. São os pontos de vista narrativos que criam a experiência de alienação de Jeanne Dielman e a experiência de profunda consciência de si de Asle, o artista plástico, personagem de Fosse. Podemos imaginar o artista plástico filmado como foi filmada a jovem viúva. Por certo, a sensação com que ficaríamos era a de uma vida alienada, estranha a si mesma. Também não é difícil conceber Jeanne Dielman a narrar a sua história a partir da corrente de consciência. Por certo, desapareceria a sensação de alienação. Quando se fala em alienação, fala-se sempre de alienação dos outros, pois é plausível pensar que a alienação só existe a partir de um olhar exterior em relação às vidas que são catalogadas como alienadas. A alienação só existe no olhar dos outros.
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