A Primavera consolida-se. Nas ruas, há já uma quantidade considerável de gente vestida como se fosse Verão e não são turistas vindos da Escandinávia. Não sei, no entanto, se são portugueses encalorados ou apenas crentes em que as vestes atraiam um tempo que com elas se coadune. Se tivesse de votar por uma das duas opções, votaria na segunda. Somos um povo que ainda não abandonou o pensamento mágico. Outrora, isso parecer-me-ia motivo de preocupação. Hoje, não. Não é que ache essa nossa característica uma vantagem competitiva na relação com o mundo, habituei-me, apenas. Estou como o senhor Brel: on oublie rien de rien / on s’habitue c’est tout. Há, contudo, um equívoco nestes versos. Durante grande parte da vida parece que nada se esquece, mas, a partir de certa altura, tudo se esquece, a própria natureza se encarrega de abrir o caminho para a amnésia, até ela ser total. O chilrear dos pássaros – talvez fosse melhor escrever o pipilar das aves – tem-se intensificado, o que confirma que a nova estação vai de vento em popa, desliza pelo lago do tempo com ventos favoráveis. Nunca me faltam provas de que em mim reside um mar de frases feitas e uma montanha de lugares comuns. Estão sempre ao alcance dos dedos. Escrevi acima portugueses encalorados. O Word não gosta da palavra encalorado. Sublinha-a a vermelho, como se fosse um árbitro a expulsar um pobre jogador indisciplinado. Desconfio que aceitaria portugueses calorentos, mas sinto repulsa pela expressão, não a escrevo. Não tanta como por aquilo que tenho diante de mim e espera a minha atenção. E de tanto dar atenção ao repulsivo on s’habitue c’est tout.
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