segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Estilhaços do passado

Hoje, ao abrir o belíssimo livro, publicado em 1974, The Fall of Public Man, do sociólogo norte-americano Richard Sennett, encontrei duas evidências de que já tive um passado. A primeira delas é um cartão de um parque de estacionamento, o parque Camões, em Lisboa. Terei entrado nele às 16:43 do dia 11 de Fevereiro de 2006. Não consta hora e data de saída. Não faço ideia o que andaria a fazer, a 11 de Fevereiro, naquela zona da capital. Uma outra prova de que tive um passado é um bilhete de cinema para uma sessão no Nimas, a 25 de Março, pelas 18:15, para ver O Grande Silêncio, filme documentário sobre os monges da Cartuxa. O problema das provas é a sua incompletude. Assim como não sei a que horas saí do parque Camões, também não sei qual é o ano em que fui ver o filme. Posso conjecturar que terá sido em 2007, ano da sua estreia, mas é uma conjectura que não consigo confirmar. Ainda tentei, mas em vão. Somos constituídos por um passado do qual apenas possuímos alguns estilhaços e, quando tentamos reconstruir a vida vivida, esses estilhaços não encaixam uns nos outros. Depois, contamos uma história sobre tudo isso, mas essa história não passa de uma invenção. Tanta coisa, e o livro de Sennett? Trata do refluxo sentido já nos anos setenta do século passado da vida pública e do fechamento das pessoas na vida privada, no seu ego. Lembrei-me deste livro porque talvez exista nele, com os seus quase cinquenta nos, alguma coisa que permita perceber os nossos dias. Deparei-me, porém, com um obstáculo, que não existia noutros tempos, o tamanho dos caracteres. Terei de o comprar de novo em ebook. Aí posso aumentar o tamanho da letra. Em poucos dias, é o segundo caso em que sou confrontado com o facto das lentes estarem a ficar desadequadas. Poderia especular, ainda, sobre o filme e o livro, sobre se eles se podem articular, mas hoje não estou com grande imaginação. Ficará para outro dia, caso me lembre do assunto.

domingo, 30 de outubro de 2022

O ogonek

Trocaram outra vez a hora. Agora andaram com o ponteiro para trás. Já é tempo de pôr fim a esta volubilidade de quem tem o poder de decidir que horas são neste momento. Para mim, são dez horas e quarenta minutos, mas os relógios digitais de telemóveis e computadores, subservientes a esse estranho mandante, marcam nove horas e quarenta minutos. Quando acordei, estava um esplêndido dia de Outono. Uma névoa branca trespassada pelos raios solares. Entretanto, a névoa, que me fez lembrar um vestido de noiva, desapareceu e apenas existem raios solares. São estas metamorfoses que mostram a inconstância do mundo, sempre inclinado a ser outra coisa. Se o mundo é assim, por que razão não o haveriam de ser os homens, criaturas fracas, de discernimento reduzido e alma cansada. Wislawa Szymborska escreveu no início do poema “Um pouco da alma”: A alma vai-se tendo / Ninguém a tem constantemente / nem para sempre. Bem, ela não terá escrito isto, quem o escreveu foram os tradutores. Terá, eventualmente, escrito algo equivalente em polaco. Tenho diante de mim o texto na língua original: Duszę się miewa. / Nikt nie ma jej bez przerwy / i na zawsze. Não compreendo nada, mas não deixo de admirar o ę, isto é, um e com ogonek, que sinaliza a nasalização da vogal. Onde me documentei, dizem que o ogonek se utiliza em polaco, lituano e navajo, bem como noutras línguas indígenas. Eu pensava que todas as línguas eram indígenas, mas parece que umas são mais que outras. As que são mais indígenas usam ogonek e os seus falantes têm penas na cabeça. As que são menos indígenas não usam ogonek e os seus habitantes dispensam enfeitar-se com penas. Basta-lhes as penas da alma, mas estas só ocorrem quando se tem alma e, como escreve a Szymborska, não se tem sempre alma. Nessa altura é-se, verdadeiramente, um desalmado. As nuvens chegaram, os raios de sol esconderam-se e há muito que não são nove horas e quarenta minutos. Tudo muda.

sábado, 29 de outubro de 2022

Broas taoistas

Age sem agir, terá sugerido, nos seus dias, Lao-Tsé, o velho sábio chinês. Com poucos segundos de intervalo vi duas traduções para o seu nome. Numa, Lao-Tsé significaria Velho Mestre; na outra, Jovem Sábio. Não serão incompatíveis, o jovem sábio ter-se-á tornado em velho mestre. A injunção taoista tem um enorme potencial para fascinar os espíritos. Em primeiro lugar, os espíritos cansados de acção. Contudo, não se está perante um imperativo para o descanso ou a inacção. Suspender a acção é uma forma de agir, porventura a forma suprema. No mundo ocidental, encontramos a mesma ideia em Aristóteles, mas como qualidade divina. Deus, o motor imóvel, faz o mundo mover-se a partir da sua imobilidade. Estas formulações não deixam de conter uma sugestão erótica. Aquele que suspende a acção e deixa de voltejar em torno do objecto desejado torna-se um centro de atracção irresistível. É dessa maneira que o próprio Aristóteles vê a relação entre as coisas do mundo e Deus. Se me perguntarem a razão por que escrevi o que escrevi, não tenho nenhuma para dar. Ocorreu-me e é tudo o que posso dizer. Poderia falar de outra coisa. Por exemplo, das broas que comprei hoje. Aproximam-se os Santos e, como em muitos outros lugares, há aqui uma tradição bem estabelecida. A data é acompanhada por uma profusão de broas de múltiplas espécies. Nelas o azeite tem, por norma, um papel relevante. As que comprei são de cacau, umas, e de mel, outras. Encarnam perfeitamente o imperativo de Lao-Tsé. Sem agir, pois estavam deitadas no expositor sem qualquer tipo de movimento, atraíram-me para elas, pobre insensato que sou, incapaz de resistir às pequenas tentações. Elas agiram sem agir. Serão broas taoistas, pensei quando paguei a conta.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Os liquidâmbares

Os liquidâmbares da avenida estão esplendorosos. As folhas desdobram-se numa multidão de tons, e assim como o cisne entoa o mais belo canto antes de morrer, também as folhas dos liquidâmbares, antes de se arrojarem mortas por terra, oferecem aos olhos desprevenidos o melhor dos espectáculos. Se a vida tivesse ficado pelo patamar vegetal, medito muitas vezes, a Terra seria um belíssimo mundo. Há qualquer coisa de tenebroso na vida animal, na voracidade com que ela, incapaz de extrair directamente do solo alimento, se entrega à carnificina. Este espectáculo tenebroso terá originado as crenças maniqueístas e a hipótese deste mundo ter sido obra não do Deus misericordioso, mas de um deus malévolo, obstinado em fruir este espectáculo de sangue a correr pelas bocas nunca saciadas. Aqui, Eduína, pela primeira vez, interrompeu a conversa nessa noite. Tinha estado estranhamente silenciosa. Referiu que a hipótese de duplicação dos deuses era desnecessária, bastaria aceitar o deísmo como verdadeiro. Deus, na sua infinita omnipotência, teria criado o mundo, extraído do nada a matéria, dando-lhe algumas regularidades, apenas esboçadas, a que os homens chamam leis da natureza. Depois, entregou esse mundo com as suas toscas regularidades ao devir e decidiu não mais intervir no que nele acontecia. O esboço das regularidades eram possibilidades em aberto e o acaso poderia ter conduzido a mundos muito diferentes. Ao voltar as costas a esse mundo, Deus abdicou também de sobre ele fazer incidir a sua presciência. Não sei, todavia, acrescentou Eduína, se esse desconhecimento ostensivo será suficiente para lhe salvaguardar a inocência. Seja como for, prefiro, continuou, a versão de um Deus interventivo na criação, mesmo que não consiga nunca compreender as suas razões. Entra esta conversa e a notícia que tive da sua morte, soube que teria entrado num convento, embora julgo que nunca tenha chegado a professar. É mesmo possível que tenha acabado por o abandonar. Uma das coisas que ela amava, disso lembro-me bem, era os liquidâmbares nesta altura do ano.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Pessoas de papel

Cheguei tarde aqui. Ao escrever isto, sinto que todas as palavras são obscuras. Nenhuma delas torna o texto de tal modo transparente que se possa ver através dele. Será tarde porque escrevo já de noite, mas ainda não é uma noite tardia. Enredo-me nas palavras, como se não tivesse nada para dizer. Poderia falar dos Irmão Tanner, que comecei hoje a ler, um romance, publicado em 1907, do suíço, de língua alemã, Robert Walser. O mais novo, Simon, é profissionalmente instável, e é essa instabilidade que o torna um sintoma de uma época em mudança. Parece ser, ainda estou no início, um contraponto a Klaus, o mais velho, o tipo de burguês respeitável. Ou, no lugar de Walser, deixar-me levar por Ford Madox Ford, pelo destino de Christopher Tietjens, o filho mais novo de um grande terratenente inglês, personagem central de Some Do Not, primeiro romance da tetralogia Parade’s End. Sylvia, a mulher de Christopher, é apresentada no início do romance a uma luz desfavorável. O talento de Madox Ford, porém, vai fazer que essa apresentação inicial se vá dissolvendo, com o decurso da narrativa, numa espécie de desmentido sobre o carácter indelével das primeiras impressões. Poder-se-á pensar que a literatura romanesca seja isso mesmo, uma luta contra as primeiras impressões, um desfazer de imagens, para que outras imagens se possam manifestar. Como se percebe, terei chegado àquela altura da vida em que estou mais próximo das pessoas de papel do que das de carne e osso. A esperança do leitor é que o mistério da encarnação deixe de ser uma excepção religiosa e se torne uma possibilidade para as personagens dos romances com as quais estabeleceu um pacto de amizade, quando não de amor. Leitores haverá que aspiram a um destino parecido com o de Pigmalião, que acabou por casar, devido aos bons ofícios de Afrodite, com Galateia, a estátua que ele próprio tinha esculpido. Na verdade, um mito não muito longínquo da narrativa da criação de Eva a partir da costela de Adão.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Da urbanidade e das almas

Um acaso levou-me a um artigo, presumo que de autoria de uma jurista, sobre a vexata quaestio da eutanásia. Li as primeiras dez a quinze linhas. Eram tantas as falácias em tão pouco espaço de texto, que pus o artigo de lado. Por mais sérios que sejam os assuntos, a maneira como são discutidos fora do espaço estritamente académico aproxima a discussão do debate sobre se houve ou não penalty no jogo do último fim-de-semana. Talvez isso seja inevitável, pois o espaço público está longe daquela esfera pública burguesa, onde, nos salões, havia normas estritas de discussão, na qual reinava a urbanidade. Na Alemanha, por exemplo, em certos círculos vigoravam regras como as que impediam que alguém interrompesse outra pessoa ou divagasse sobre o tema em questão. A crítica a pontos de vista diferentes deveria ser apresentada de forma modesta e breve, evitando insinuações ou comentários jocosos. Esta civilidade do tempo das Luzes, porém, não impediu tudo aquilo que aconteceu, por aqueles lugares, no século XX. Hoje devo ter acordado com uma alma sociológica e com preocupações de civilidade. Temos de ser pacientes com as almas com que acordamos. Como se sabe, não acordamos todos os dias com a mesma alma. Existe uma discussão sobre se em cada dia temos uma alma nova ou apenas um depósito relativamente restrito – há quem fale entre 20 e 50 – de almas, que se revezam no uso que fazem do nosso corpo, ou que o nosso corpo usa para se guiar nas encruzilhadas deste mundo. Esta discussão, porém, é ainda mais intrincada do que a da eutanásia, embora, não percebo a razão, desperte menos entusiasmo e fervor entre os adeptos das diversas opções. A noite caiu com a sua alma escura sobre a cidade.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Uma fixação erótica

Nunca devemos deixar de nos admirar com esta ditosa pátria pela coerência com que tudo nela está afinado. Levei hoje o carro à inspecção. Havia um problema. A inspecção automóvel exige o certificado de matrícula, conhecido por documento único automóvel. Ora, o meu ter-se-á liquefeito e evaporado da carteira, sem a minha autorização. Imagino que já terá caído em forma de chuva pelos campos deste país. Estava, porém, confiante, pois, numa aplicação oficial da República, tenho todos os documentos em formato digital, incluindo o certificado de matrícula do carro. Chego à recepção e sou informado que ali o documento digital não serve. Para a polícia, sim, para os centros de inspecção, não. Fizeram uma consulta ao IMT, esclarecem-me, e esta instituição achou melhor que não. É necessário que no centro se certifiquem das condições do documento em papel. Portanto, sem o papel, o carro é chumbado. A própria funcionária acabou por confessar que não entendia a coerência de tudo isto, mas ordens são ordens, e contra ordens não há argumentos. Nem argumentei. Como sou muito velho e começo a conhecer o fervor pátrio pelo papel, ontem, por volta da meio noite, pedi online uma segunda via do documento. Feito o pagamento ao IMT, este permitiu-me aceder a uma guia, que imprimi. Como era em papel, o centro de inspecção já não tinha objecções, o carro podia ser aprovado. Eu não quero meter-me em política, coisa de que estou proibido pelo autor, mas parece que o governo não gosta de papel, já as instituições que dele dependem possuem uma fixação erótica em tudo o que é papel, a qual impõem à sociedade civil. Uma das coisas mais extraordinárias de que me lembro em matéria de papéis oficiais era a necessidade de apresentar, para além do bilhete de identidade, uma certidão de nascimento, não fosse o detentor do BI não ter nascido. Seja como for, tenho o carro aprovado e capaz de fazer mais três mil e trinta quilómetros, que foi aquilo que fez no último ano. Uma média de 8,3 km por dia, pois só serve para dar umas voltas por aqui. Nunca o levo a passear, apesar dos pedidos insistentes que faz. Queria galopar numa auto-estrada, trotar numa nacional, mas nada. Só circuito urbano, se é que esta pequena cidade tem circuito urbano.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

A chave

Um dia em bolandas. De um lado para o outro. As coisas triviais e, também, as menos triviais, mas que estão longe de ser benevolentes. Há coisas que sabemos, mas vê-las escritas tem outro peso. Estou a falar por enigmas. Também o dia está enigmático. Nublado, mas pouco inclinado para a chuva. Há a ideia de que a vida é milícia, combate constante, um corpo a corpo com a realidade. Os que seguem o caminho da acção encontram aí a normalidade, mas os espíritos contemplativos sentem-se perdidos nessa via. Uma breve clareira na floresta de nuvens e o sol brilhou por instantes, mas foi de pouca dura. Uma súbita recordação da casa onde nasci. Afasto-a, tenho muito para fazer. Não há tempo para a nostalgia. Se ao menos pudesse decifrar o enigma do dia, talvez encontrasse a chave para outras enigmas. O pior é que perdemos a chave quando chegámos a esta vida. A sua busca, a da chave, pode ser exaltante, mas agora tenho de encontrar o documento único do carro que se evaporou da carteira. A prosa da realidade é bem mais poderosa do que a poesia do devaneio, se é que neste existe poesia.

domingo, 23 de outubro de 2022

Uma reminiscência e um aviso

Não sei o que o ano de 2010 teve de especial, mas, não poucas vezes, ao escrever a data, no lugar de 2022 surge 2010. Por norma, detecto o equívoco, mas nem sempre. Qualquer coisa me está a chamar desse ano ou serei eu que me chamo a mim mesmo a partir dali. Logo no início de Burnt Norton, Eliot escreve: O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez presentes no tempo futuro. Ao crermos na expectativa do poeta – pois, o talvez a assinala como tal – o ano de 2010 já estaria presente em todos os que se lhe seguiriam, embora eu só tenha dado por isso agora, devido à minha natureza serôdia. Nos Quatro Quartetos, o início de que mais gosto é o de East Coker. Não todo o verso, apenas No meu começo está o meu fim. Não é uma originalidade, mas uma recordação e uma advertência. Uma reminiscência de um fragmento de Anaximandro. Um aviso para a nossa condição de mortais. Aliás, a estrofe continua como uma sucessão, quase cinematográfica, de coisas que se erguem e desmoronam, tornando plástica a afirmação inicial. Quando me levantei e abri as persianas, estava uma manhã de sol. O céu, porém, cobriu-se de nuvens cinzentas, a luz esbranquiçou-se, como se tivesse sofrido uma súbita comoção, e o domingo transitou da Primavera para o Inverno. Não segui aquele velho conselho que, num livro da escola primária, era dado por um astuto advogado a um homem do campo, e guardei para hoje o que podia ter feito ontem. Também é verdade que o posso guardar para a amanhã, mas não o farei. Não se deve ignorar duas vezes seguidas o mesmo conselho. Começou a chover. É uma chuva oblíqua. O vento de sudoeste inclina-a, para que, desprevenidos, os poucos transeuntes da avenida se molhem. Que eles fiquem molhados é a causa final para que chova e o vento sopre de sudoeste. Sem essa finalidade, não haveria chuva nem vento de sudoeste.

sábado, 22 de outubro de 2022

O meu herbário

Noutros tempos, imagino, não seria impossível os rios, por esta altura do ano, transbordarem. Então, ia ver as cheias do Tejo ou do afluente que por aqui corre. Isto, porém, pode estar deslocado na altura do ano. As cheias seriam mais tarde, talvez já depois de ter começado o novo ano. Esta memória de ir ver as cheias foi desencadeada pelo dia, pela cor de cinza com que se pinta, pela raiva ventosa com que choca contra as persianas, pela violência dos aguaceiros com que se mascara. Nunca pensamos nisso, mas também os dias são seres vivos, que nascem, crescem e morrem. Possuem não apenas uma fisiologia, mas também uma psicologia. Não têm, todavia, uma sociologia, pois são mónadas fechadas sobre si mesmas. Não há comunidade de dias. Cada um é um acontecimento isolado. Hesito. Não sei se será mais interessante dedicar-me à fisiologia ou à psicologia dos dias. Ao longo de uma vida, coleccionei inúmeras ocupações inúteis. Posso, sem dificuldade, construir um herbário da inutilidade, e dedicar-me à efabulação de taxinomias, organizando as múltiplas categorias do inútil. A fisiologia dos dias ou a sua psicologia seriam apenas mais duas flores secas nesse herbário. Tenho, por outro lado, um especial interesse por escritores que ninguém lê ou por pensadores que a história não concede a graça do reconhecimento. É uma solidariedade – fundada num sentimento de irmandade – com aqueles que, não sem desdém e acinte, são denominados como vencidos. Os cemitérios estão cheios de vencidos, mas não há vencedor que não tenha lá a recompensa da sua vitória. Volto para o meu herbário.

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

O exercício da citação

Pega-se num romance e, na primeira frase, ouve-se o eco de uma outra escrita quase dois mil e quinhentos anos antes. A frase, note-se, não é igual, apenas uma reverberação. Uma dúvida instala-se, então, no leitor. Teria quem escreveu a vontade dessa citação distorcida ou foi apenas um acaso? Seja qual for a verdade, é irrelevante para quem lê, mas o leitor também tem direito à curiosidade. Qualquer obra literária é uma construção de citações distorcidas. Usar qualquer palavra é citar os milhões de utilizadores que ela teve antes daquele momento. É o exercício da citação que permite um romance ou um poema serem lidos. Se as palavras usadas fossem absolutamente virginais, se ninguém as tivesse pronunciado, o único leitor seria quem as escreveu, caso ainda as identificasse. Ou talvez não. Poderia acontecer que outros leitores se entregassem à decifração do texto, à descoberta de uma língua completamente original. Não seria, alguém diz, uma língua, pois esta exige uma comunidade. A objecção parece fazer sentido, mas falha num aspecto essencial. Se um leitor tentar decifrar essa língua, então já uma comunidade está instaurada, pelo menos em potência, entre autor e leitor. Talvez esteja a ser infiel, mas reproduzo uma conversa com décadas. Quem falava era Eduína. Fazia-o calmamente, sem a urgência de quem pretende ter razão ou convencer alguém. Os gestos eram contidos. Avançava no que dizia como se fizesse uma experiência. Tudo nela era, naqueles instantes, de uma suprema leveza. Como acabou a conversa, já não recordo, mas é possível que tenha morrido naturalmente ou que, alguém, tenha mudado de assunto, como acontece quando um grupo de pessoas se junta.

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Sombras

Estes dias, penso-os como um tempo de regresso às coisas essenciais. Nunca soube o que eram, mas presumo-as nas horas em que chove, em que a terra seca bebe voraz a água caída do céu. O cómodo e o fácil não fazem parte dessas coisas que desconheço. Possivelmente, apenas de um modo apofático nos possamos aproximar delas. Não são isto, nem aquilo, nem aqueloutro. Navego num devaneio, a imaginação dilacerada, uma vez mais, por uma noite mal dormida. O rasgão no lençol do sono permitiu-me avançar na leitura do romance de Madox Ford, mas sinto-me numa névoa, onde a clareza do pensamento e a nitidez das imagens se afogam. Na praceta, uma voz irritante distribui censuras. Responde-lhe o silêncio. Aproveitando a cesura, o amarelo invade o verde imaculado das acácias. Na rua, do lado de lá, uma mulher caminha devagar. Leva as mãos nos bolsos do casaco. Não tira os olhos do chão, enquanto, com passos hesitantes, desaparece do meu horizonte. Alguém, um dia, perguntou: Que comércio pode haver entre a luz e as trevas? Duas respostas serão possíveis. As sombras são o resultado desse comércio. Uma outra dirá: As sombras são o muro que separa aquilo que não pode ter comércio. Chove.

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Um dia de chuva

As chuvas terão encontrado o seu tempo. Por vezes, desabam violentas sobre quem passa. Outras, retraem-se e são apenas uma névoa composta por miríadas de gotas, quase sem dimensão, que caem com a brandura de um anjo ao poisar na torre de uma igreja. Este jogo que as faz variar entre o aço e a seda cansam-nas. Então suspendem a queda e ficam a dançar no céu, onde o vento empurra as nuvens para que outras lhe venham ocupar o lugar. Imagino que as nuvens sejam seres vivos, pois também estes se empurram continuamente para que uns tomem o lugar dos outros, de acordo com a necessidade, a justiça e o tempo, tal como explica o fragmento de Anaximandro. Seria agora uma boa altura para falar de causas finais, elas que caíram em desgraça nos inícios dos tempos modernos e que nunca mais viram o seu esplendor restaurado. Ainda não será hoje que as tentarei libertar da sua desgraça. Continuo a beber o chá de que falei ontem. Hoje sei que é, segundo o dicionário, um rizoma. Chá de gengibre. Os seus cultores quase que prometem a vida eterna, por mim, apenas lhe peço que não desminta as anunciadas propriedades digestivas. A certa altura da vida, o máximo que se pede já nem é uma boa consciência, mas uma boa digestão. A beberagem não é desagradável e se não ajuda a digerir, tem pelo menos um efeito diurético. Disseram-me que também os dias chuvosos possuem idêntico resultado. Agora, lembrei-me de uma paliçada de canas. Do outro lado, da paliçada havia a mais bela voz de mulher que eu ouvira até à data em que a ouvi. Senti um choque quando soube que era voz de uma cega. Nunca a vi, talvez por não ser possível existir uma mulher com uma voz belíssima e ao mesmo tempo não poder ver como essa voz se repercutia nas faces que a escutavam. Também é provável que a voz não fosse bela ou que a paliçada de canas nunca tenha existido, mas isso não altera em nada o facto de aquela voz de mulher ser a mais bela que alguma vez tinha ouvido.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Semivigílias

Os sonhos não são uma das minhas actividades correntes. Esta frase deve conter alguma imprecisão, pois sempre sou informado que todos sonhamos todas as noites. Terei, devido a esta omnipresença onírica, de refazer a afirmação. Recordar-me dos sonhos sonhados não é uma das minhas actividades correntes. Raramente acontece, e quando acontece é sol de pouca dura, pois a própria lembrança logo entra num limbo sem nome e desaparece. Contudo, há coisas de que me recordo muito bem. A indecisão, para não dizer coisa pior, que me acomete quando, durante a noite, estou num estado de semivigília, nem a dormir, nem acordado. Se, por exemplo, sinto frio, fico ali, sem que seja capaz de ter o discernimento de puxar o edredão. Nesse estado, tudo é sensação, mas o agir parece vedado, até que a consciência se torne plena, tome a decisão de me cobrir e aja em conformidade. Estes estados são marcados por uma outra característica, a esperança. Sinto frio, mas tenho a esperança difusa de que ele passará sem que tenha de intervir. Talvez existam nessas horas resquícios de um pensamento mágico, em que se faça acontecer qualquer coisa sem que o corpo tenha de se pôr em acção. Na praceta, lá em baixo, uma alcateia de adolescentes bezerreia à espera de que as portas do Centro de Línguas se abram, e uma professora reja os seus destinos através de ditames em língua inglesa. Estou a beber um chá feito com um fruto – ou será uma raiz ou talvez um caule? – cujo nome se evaporou da mente. Tem um sabor acidulado, forte, consta que ajuda as digestões. Asseveraram-me que acelera o metabolismo e tem efeitos que nem sei descrever. Ainda há pouco sabia o nome, agora que o quero escrever, já não o sei. O silêncio caiu sobre a praceta, as nuvens taparam o sol e a tarde corre, cada vez mais depressa, para o seu fim. Muito eu gostaria de falar sobre as causas finais, mas já escrevi demasiado, tenho de guardar o gosto para outra altura, caso não me esqueça do nome das causas.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Transtornos e fugas

Todas estas coisas que fazem do Outono o Outono agradam-me, embora tenha pouco poder para as nomear. Dar-lhes um nome seria capturá-las dentro de uma etiqueta mental à qual corresponderia uma emissão vocal ou um conjunto de traços inscrito numa superfície, isto é, dizê-las ou escrevê-las. As coisas que fazem do Outono uma estação, porém, resistem à captura, como se fossem peixes conhecedores dos truques das redes e, com essa sabedoria, encontram sempre um modo de escapar ao desejo do pescador. Pode-se usar uma modalidade de indicação ostensiva. Dizer esta luz é outonal, o modo como o vento embala as folhas das acácias também o é. É ainda possível que o voo daqueles dois corvos, que vejo no céu ao longe, seja diferente do voo estival ou daquele que terão no Inverno. Há uma diferença que não é apenas de grau, mas de natureza, entre a captura na mente e a indicação. A captura na mente é um passo na estratégia para nos apoderarmos das coisas que estão no mundo e que começaram assim a ser nossas presas. A indicação ostensiva é apenas um gesto que assinala as coisas no seu fluir. Indicar as manifestações do Outono não me dá qualquer poder sobre ele. Não o posso manipular, mas permite orientar-me nos tempos outonais, dançar com esses elementos que estão aí e que indico com a ponta do dedo. Se alguém chegou até aqui, então tem direito a uma confissão. Por vezes, as segundas-feiras, com o mergulho que obrigam no mar da realidade, transtornam-me. É fruto dessas perturbações que começo a escrever textos como o de hoje. Uma fuga à realidade, dirão os cavaleiros da realidade ou do apocalipse, se é que há diferença entre eles. Uma fuga, confirmo.

domingo, 16 de outubro de 2022

Uma vocação errada

Ao levantar-me, descobri que o Outono tinha, de facto, chegado. Um belo dia cinzento, sem calor. As nuvens parecem tranquilas, não há nelas sinais de que se vão precipitar sobre esta cidade em forma de chuva, mas a app meteorológica afirma o contrário. Nunca se sabe em quem ou em quê se deve confiar. Gostaria que chovesse, as ruas ficariam mais lavadas e haveria um cheiro a terra molhada. As possibilidades, vejo, são de 91%, o que significa uma enorme possibilidade de não chover, pois mesmo quando são de 100%, acaba pela profecia sair gorada. Este é um leitmotiv destes textos, outro é a passagem do tempo. Assinalo apenas que Outubro já entrou na fase descendente. Não tarda e dobram os sinos pela sua alma. Espero que tenha direito a um requiem. Já há umas semanas que não recebia a chamada dominical do padre Lodo. Ligou-me hoje. Que tem tido umas semanas do diabo. Fiz-lhe notar que não deveria invocar o maligno. Riu-se, mas não se retractou. Um reboliço de vida, continuou. Talvez tenha feito uma má escolha, ouvi dizer. Ser padre, perguntei. Não, ter entrado para a Companhia. Demasiados assuntos mundanos, preocupações políticas, educacionais, enfim. Deveria ter entrado para a Trapa, sempre me senti um contemplativo, acrescentou. Foi a minha vez de me rir. Está-se a rir? Estou. Se entrasse para a Trapa – ou, por que não, para a Cartuxa – como poderia fazer os jantares com os amigos, passar essas longas horas de conversa animada, comentar o estado do mundo? Como, é capaz de me explicar? Silêncio do outro lado. Sabe, disse-me, a diáspora, por vezes, cansa-me. Sofre de mal du pays, perguntei. Isso, é isso mesmo. Prefiro a expressão francesa à saudade portuguesa, muito dramática, a francesa é mais teológica. Tem bom remédio, retorqui, faça uma visita a Itália, vá ter com a família. Talvez encontre uma Trapa que ainda o aceite, não me consegui conter. Ao diabo, respondeu. Fiz-lhe notar que era a segunda vez que pronunciava o nome do inimigo. É para não me esquecer que o tentador existe, murmurou.

sábado, 15 de outubro de 2022

Um rol de notícias

Um dos topos preferidos deste narrador, faltando-lhe uma vida emocionante, é o seu encontro com a balança. Haverá quem pense que se trata de um encontro erótico. Apesar, de me pôr, literalmente, em cima dela, não o é. Honni soit qui mal y pense! Hoje foi um encontro muito gratificante, pois não só me retirou todos os gramas que na semana passada me pusera em cima, como, talvez por ser um bom cliente e de a frequentar com assiduidade, me deu um bónus de menos trezentos gramas. Nem quis acreditar e repeti o processo. Ela foi fiel e devolveu-me o mesmo peso que da primeira vez. Não quis abusar da sorte e não fiz terceira tentativa. O fim-de-semana começou da melhor maneira. Constou-me que na Alemanha não só uma mulher agrediu um polícia como, horror dos horrores, um homem mordeu um cão-polícia. A notícia era veiculada por um site pertencente a uma televisão privada portuguesa. Em tempos, tive um contacto, não muito longínquo, com o mundo do jornalismo. Contava-se por aí que se um cão morde num homem não há notícia, mas se um homem morde num cão, temos um belo caso. Estou convencido que aquele irado alemão mordeu o cão porque estava farto da inexistência de notícias. Também eu tenho uma notícia. Não, não mordi um cão, nem conheço ninguém que o tenha feito. Pelo menos, não me lembro. Por vezes, uma pessoa deambula por aí e faz descobertas. Foi o que me aconteceu. Descobri um grande escritor inglês, da primeira metade do século XX. Ford Madox Ford. O nome parece um bocado repetitivo, mas ele não se chamava bem assim. Este era o nome literário. De baptismo era Ford Hermann Hueffer, o que denota uma costela alemã. O seu avô, um pintor pré-rafaelita, respondia por Ford Madox Brown. Estou a ler, em castelhano, Hay quien no (Some do not), o primeiro romance da tetralogia Parade’s End, que os espanhóis traduzem por El final del desfile e que eu traduziria para português como O fim da parada. Neste primeiro volume, por enquanto, o caso ainda não é militar, mas é provável que seja nos próximos. Aqui, se existe guerra, então será entre marido e mulher. O escritor morre em 1939. A partir de certa altura, começam a ser publicadas edições que juntam todos os romances da tetralogia. Uma delas foi da responsabilidade de Graham Greene. Tinha uma curiosidade. Como Greene não gostava do último romance, a tetralogia passou a trilogia. Acrescentou que o próprio Madox o teria escrito contrariado e não gostava dele. O autor, porém, já tinha partido para aquele lugar em que, digam o que disserem sobre a sua pessoa e os seus actos, ele não abrirá a boca. O melhor é acabar por aqui.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

O poder das qualidades

A questão que se pode colocar é se há dias que chegam até nós cheios de sombras ou se somos nós que depositamos sombras nos dias que nos chegam, pensei em voz alta. Talvez isto seja um falso dilema disse-me, um dia, uma amiga que respondia pelo estranho nome de Eduína. Depois acrescentou há ainda pelo menos uma outra possibilidade, que sejam as sombras que convoquem tanto a nós como aos dias, para que fiquemos perplexos. Pensei, durante alguns segundos, e retorqui o mesmo se passará com o amarelo que vejo já nas folhas daquelas acácias – e aí fiz um gesto largo para que ela as visse, o que retribuiu com um sorriso – terá sido ele que nos convocou a nós e às folhas das acácias. Ela ficou em silêncio, talvez se estivesse a divertir à minha conta, mas não o creio. Passados alguns meses deste diálogo, recebo um telefonema de Eduína. Diz-me, quase sem me cumprimentar, o segredo é descativar o pensamento do redil em que os gregos – Aristóteles, mais que ninguém – o colocaram. Os acidentes dão-se nas substâncias, a transparência dar-se-ia na água, mas isso é ainda uma forma muito rudimentar de ver as coisas. É para que ela possa ser que a transparência convoca a água ou o vidro e o testemunho dos nossos olhos, essa convocação é uma verdadeira chamada à existência tanto de nós como daquilo a que chamamos substâncias. Os homens nunca o compreenderão, mas nós, mulheres, sabemos que é assim, que são as qualidades que regem o mundo, que o compõem através de actos de convocação. Toda a convocação emanada delas é um acto performativo. As qualidades fazem ser. Quase me apaixonei por ela, confesso, mas resisti a que a paixão me convocasse a mim e a ela. Nunca saberei se perdi ou ganhei alguma coisa. Disseram-me amigos comuns que Eduína teria morrido. Procurei durante muito tempo uma qualidade que a convocasse, mas todo o esforço saiu gorado.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Coisas de espantar

Consta que a história do Ovo de Colombo não teve como protagonista primeiro o próprio Colombo, mas o arquitecto Filippo Brunelleschi, uns anos antes. Sendo italiano, Colombo conhecia-a e usou-a num banquete em Espanha. A versão que tem o descobridor da América como protagonista foi contada, pele primeira vez, em 1565, por Girolano Benzoni, em Hisory of New World. A atribuição a Brunelleschi é de Giorgio Vasari, no livro Le vite de' più eccellenti pittori, scultori e architettori, de 1550.  Todas estas informações foram recolhidas na Wikipédia e vieram a propósito de uma descoberta efectuada hoje por este narrador destituído de narrativa. A descoberta não foi a da América nem do equilíbrio do ovo, mas que muitas são as pessoas que desconhecem a expressão Ovo de Colombo. Fiquei de tal modo perturbado que decidi investigar se, por acaso, seria eu que estava a delirar ou tivesse entrado naquela fase da existência em que se inventa, por contumácia, coisas com que se hão-de espantar o mundo. Essa benévola enciclopédia confirmou que a história do ovo não era da minha invenção e acrescentou mais alguma informação, que eu desconhecia, sobre o assunto. Não tivesse eu saído de casa e teria passado ao lado desta exaltante aventura, na qual cheguei de dizer que o Ovo de Colombo não era um ovo que estivesse à venda no centro comercial Colombo, em Lisboa. Agora, estou sentado na minha cadeira de eleição e, enquanto escrevo este relatório, pois de um relatório se trata, descubro uma nova diferença entre os tempos pré pandemia COVID 19 e os tempos pós. Naquele tempo, onde o mundo parecia menos desconcertado, o grupo de música da escola aqui ao lado, um autêntico conjunto de baile dos anos 70, ensaiava às quartas-feiras. Agora, talvez devido a algum efeito secundária do vírus, está a ensaiar às quintas. Como se vê, nunca estamos completamento seguros das consequências de uma infecção. Manifestam-se os mais estranhos e inesperados efeitos, o que nos aconselha a mantermo-nos em constante estado de alerta.

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Na venda de jornais

Numa das colunas de um dos prédios da avenida existe um quiosque onde um homem de cabelos brancos vende jornais. De alguma maneira, a coluna lembra uma guarita, só que mais larga e menos disposta para a vigilância dos inimigos. Naquele espaço, o dono aguarda que venham por notícias. Jornais, revistas, um livro de palavras-cruzadas. Está ali de guarda, perfilado no posto, não porque tenha necessidade de ganhar a vida. A essa já a ganhou, e com honradez. Reformado foi atingido por um golpe de memória e uma certa inclinação romântica para a repetição. Vende jornais porque na infância dele, que foi ligeiramente anterior à minha, o pai tinha uma venda de jornais, de revistas, de lotarias, de cigarros e de todas essas coisas que se vendiam nesses estabelecimentos, a que davam o nome de tabacaria. Era um homem alto, de cabelo branco, e nada nele indicava que fosse dono de uma tabacaria, mas alguém que tinha uma posição elevada, mas que a vida arrastara até ali. É possível que a tabacaria fosse uma ocupação de reformado, pois quando o filho que agora vende jornais era novo, ele já me parecia velho e tinha filhos bem mais velhos do que os dois que eu conhecia. Conversei longamente com aquele que era novo e agora vende jornais. Falámos do irmão, com o qual joguei inúmeras partidas de Xadrez, e cujo rasto perdi há décadas. Por vezes, vinha um cliente e comprava um jornal. Depois retomávamos a conversa, até que outro a interrompesse. Tudo isto ter-se-á passado há mais de uma dúzia de anos, a não ser que nunca tenha existido um homem alto de cabelos brancos que tinha uma tabacaria e cujo filho, por inclinação romântica, abrira uma depois de reformado, onde eu ia comprar jornais, talvez porque o meu pai comprava os seus jornais na tabacaria do pai dele.