quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Um dia de chuva

As chuvas terão encontrado o seu tempo. Por vezes, desabam violentas sobre quem passa. Outras, retraem-se e são apenas uma névoa composta por miríadas de gotas, quase sem dimensão, que caem com a brandura de um anjo ao poisar na torre de uma igreja. Este jogo que as faz variar entre o aço e a seda cansam-nas. Então suspendem a queda e ficam a dançar no céu, onde o vento empurra as nuvens para que outras lhe venham ocupar o lugar. Imagino que as nuvens sejam seres vivos, pois também estes se empurram continuamente para que uns tomem o lugar dos outros, de acordo com a necessidade, a justiça e o tempo, tal como explica o fragmento de Anaximandro. Seria agora uma boa altura para falar de causas finais, elas que caíram em desgraça nos inícios dos tempos modernos e que nunca mais viram o seu esplendor restaurado. Ainda não será hoje que as tentarei libertar da sua desgraça. Continuo a beber o chá de que falei ontem. Hoje sei que é, segundo o dicionário, um rizoma. Chá de gengibre. Os seus cultores quase que prometem a vida eterna, por mim, apenas lhe peço que não desminta as anunciadas propriedades digestivas. A certa altura da vida, o máximo que se pede já nem é uma boa consciência, mas uma boa digestão. A beberagem não é desagradável e se não ajuda a digerir, tem pelo menos um efeito diurético. Disseram-me que também os dias chuvosos possuem idêntico resultado. Agora, lembrei-me de uma paliçada de canas. Do outro lado, da paliçada havia a mais bela voz de mulher que eu ouvira até à data em que a ouvi. Senti um choque quando soube que era voz de uma cega. Nunca a vi, talvez por não ser possível existir uma mulher com uma voz belíssima e ao mesmo tempo não poder ver como essa voz se repercutia nas faces que a escutavam. Também é provável que a voz não fosse bela ou que a paliçada de canas nunca tenha existido, mas isso não altera em nada o facto de aquela voz de mulher ser a mais bela que alguma vez tinha ouvido.

2 comentários:

  1. *até há data* - gostava de saber o que sabe, para poder errar assim

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    1. São daquelas coisas que acontecem e que, suspeito, se irão intensificar. Suspeita de que tenho algumas provas, quase sempre privadas, mas que, por vezes, se tornam públicas. Quanto ao que sei, isso não terá muito relevo. Poderei saber muito e cometer um erro desses. Poderei saber pouco e nunca cometer um erro desses.

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