Ontem, comprei alguns livros. Entre
eles, encontra-se um de Isaiah Berlin. O primeiro ensaio começa com uma citação,
em epígrafe, de León Trotsky que reza assim: Quem desejar ter uma vida
pacata fez mal em ter nascido no século XX. Uma nota de rodapé informa que
aquela formulação do texto de Trotsky é uma “melhoria” típica de Berlin de um
texto que diz Qualquer contemporâneo nosso que, mais do que tudo, queira paz
e conforto escolheu uma má altura para nascer. De facto, a nota de rodapé andou
bem ao colocar melhoria entre aspas, pois o texto original é bem mais
interessante do que a adaptação de Berlin. O efeito irónico de colocar o nascimento
como um acto do livre-arbítrio do nascituro perde-se por completo, e esse
efeito é o melhor da frase, pois é plausível pensar que não houve século da
história da humanidade que não tenha sido, para quem ame a paz e o conforto, um
péssimo século para nascer, o que torna o incómodo de nascer no século passado
uma trivialidade partilhada por todos os que nasceram noutros séculos. A culpa
de os séculos serem lugares temporais pouco próprios para nascer, caso se
almeje uma vida de paz e conforto, reside na história. Esta é o lugar das mais
intensas tropelias e tem um apetite insaciável e buliçoso por todo o género de
travessuras, de preferências as mais violentas. Dito de outro modo, a história
é uma rameira sedenta de sangue, sempre pronta a usar o chicote para flagelar
os que se viciam nela e, por arrasto, os outros que não se esconderam a tempo. Num
outro livro comprado, a capa tem uma representação parcial de O Sacrifício
de Isaac, de Caravaggio. É uma história que tem final feliz, mas que não
deixa de ser extraordinariamente perturbadora, mas não me apetece pensar nesses
assuntos, ainda por cima com o calor que se abateu sobre esta terra, como se o
clima a estivesse a preparar para a hora em que ela fizer parte do deserto que
por aqui se formará.
Sem comentários:
Enviar um comentário