Troveja, relampeja e choveja. Bem, choveja era uma ideia para rimar, mas não se pode rimar por dá cá aquela palha. O Word anda a ter lições de erudição. Não gostou que tivesse usado a expressão ‘dá cá aquela palha’, sublinhou-a, em estilo pontilhista, e propôs a substituição, sem se rir, por ‘um motivo fútil’. A realidade é que tem estado a chover copiosamente, enquanto se ouve e vê nos céus a ira de Zeus, num espectáculo multimédia, com laivos realistas. Voltemos ao ‘dá cá aquela palha’. O processador de texto achou-a linguagem informal, apelando a uma mais formal. Pergunto-me quem andará a educar o Word. Vivemos num mundo informal, se não mesmo informe, logo a linguagem deve estar de acordo com o mundo. Só assim ela será capaz de o exprimir. Imagine-se que eu escrevia ‘mas não se pode rimar por um motivo fútil’. Logo se pensaria que tinha enlouquecido e que agora me tinha entregado a uma linguagem pomposa, empolada, que eu sofria, além de outros males físicos e morais, de afectação, e sabe-se lá mais de quê. Com esta conversa mole, Zeus abrandou a ira, a chuva deixou de cair, entre as nuvens avista-se, agora, pedaços azuis do céu, e o Sol, escondido atrás de uma nuvem esbranquiçada, envia uma luz porosa que cai sob a copa das árvores e as retira da cinza em que tinham caído, permitindo-lhe verdejar diante dos meus olhos. Gosto de espreitar as primeiras frases de um livro, talvez seja uma espécie de voyeurismo, mas já é tarde para abandonar o vício. Diante de mim tenho um que começa assim: A 13 de dezembro de 1880, cêrca das onze horas da manhan, era enorme a affluencia de gente na pequena povoação de Paardekraal, situada proximo de Heidelberg, cidade do Transvaal ou República da Africa do Sul. Esta era a ortografia ainda em vigor no ano de 1905, uma ortografia monárquica, ou que a monarquia não conseguira destruir, apesar de o ter tentado, com o álibi da simplificação, coisa em que a república foi mais bem-sucedida. Não me interessa muito saber as razões que levaram àquela afluência inusitada numa aldeola do Transval, nem o motivo por que um escritor português, Eduardo de Noronha, dedica um romance, O Extermínio de um Povo, ao assunto. Basta-me contemplar aquelas palavras que os simplificadores decidiram exterminar. Tens de te decidir, vociferou o homúnculo que vive na caverna da minha mente, se és adepto da escrita ao gosto popular ou da velha escola armada em erudita, cheia de consoantes mudas. Encolhi os ombros. Não há paciência para idiotas, pensei. Voltou a chover, mas não troveja.
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