Junho não é um mês fácil, embora tivesse a obrigação de o ser. Deveria entregar-se a amenidades, longe do furor estival e esquecido das intempéries invernosas. A prova de que estamos numa era negra manifesta-se no comportamento dos próprios meses, no esquecimento ostensivo dos seus deveres, da sua desatenção a todos os imperativos a que se submeteram na origem dos tempos. Quando foi altura de arranjarem um lugar no calendário, comprometeram-se a tudo e a mais alguma coisa. Agora, é o que se vê e o que se sente. E não há quem ponha o calendário nos eixos. Temo que nem um astuto Ulisses, tão devotado aos ardis mais inconcebíveis, teria poder para pôr os meses nos eixos ou nos carris, caso se prefira a metáfora ferroviária. Enquanto escrevo estas lamentações tão cheias de trivialidades, não paro de bocejar. Se dou sono a mim mesmo, o que não farei aos outros? Em resumo, sou um chato e talvez essa seja a minha principal característica. De lá de dentro vem um diálogo sobre propriedades matemáticas, diálogo a que minha pobre neta tem de se submeter, apesar dos mais de cem quilómetros de distância. Esta coisa das videoconferências é uma chatice, pensará ela, enquanto boceja e tenta resolver um exercício. Ora, não fora um maçador inveterado, escreveria coisas como estas: Então, sorrindo, abriu a sua bela braguilha e, levantando no ar o seu membro, mijou para cima deles tão energicamente que afogou duzentos e sessenta mil quatrocentos e dezoito. Sem contar com as mulheres e com as criancinhas. Como sou o que sou, tive de deixar isto para o senhor Rabelais, o qual deu bem conta da tarefa. Diante de mim tenho um livro que é uma longa entrevista a um amigo meu, um amigo de há mais de quarenta anos. A certa altura ele diz: Platão ainda me desafia, continua presente… e delicia-me enquanto leitor! Uma grande parte da filosofia como a conhecemos é franchising de Platão, se é que não é toda. O que torna duas pessoas amigas é o facto de coincidiram naquilo que é decisivo. E Platão é, atrevo-me a dizê-lo, aquilo que é mais decisivo na tradição ocidental, e não apenas na filosofia. Um vento de noroeste atravessa Junho e eu penso numa grande baía onde pequenos veleiros deslizam à procura do porto do crepúsculo.
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