segunda-feira, 9 de junho de 2025

Milagres

As segundas-feiras continuam tormentosas. Esta obrigou-me a um ir e vir que me fez atravessar grandes distâncias, apesar de curtas, pois são medidas em graus centígrados. Saí daquele sítio onde me acolho durante o ano com 38 graus e cheguei, aqui, passada uma hora, e estavam 23. Um milagre, dir-se-á. Um milagre confirmo. Por norma, as pessoas vêem como milagres coisas extraordinárias, alterações radicais da ordem do mundo. Ora, é na banalidade quotidiana que se escondem os milagres mais autênticos. Por exemplo, a possibilidade de transitar, com rapidez, de uma zona que parece a antecâmara do inferno, para uma colónia do paraíso. Não é na suspensão das leis da natureza que estão os milagres, mas nas próprias leis naturais que permitem coisas tão extraordinárias. Contemplar a ordem do mundo é assistir a uma sucessão de milagres. Eu sei que isto contraria a ideia de que milagre e ordem natural do mundo são coisas opostas. Isso, porém, é uma visão superficial. A ordem natural é o milagre por excelência. Já se imaginou o que seria o mundo se tudo fosse caos? Percebe-se de imediato que a transição do caos para a ordem é a coisa mais milagrosa que pode haver. Tudo isto, independente da causa eficiente dessa transição. Contudo, se esse milagre não tivesse ocorrido, haveria uma vantagem. Estes textos não seriam escritos. No caos não há escrita possível, pois os abecedários colapsam, as regras gramaticais e lógicas ficam à deriva e não se consegue encontrar um computador – o mesmo um simples lápis – que permita o frívolo exercício de escrever por escrever. Sim é um exercício frívolo, mas fruto de um milagre. Ou de vários.

domingo, 8 de junho de 2025

Tornar-se inocente

Passei a manhã de domingo a trabalhar e ainda tenho umas coisas para ultimar. Não sei o que me deu para tal heresia. Os domingos são dias em que se deve – segundo um imperativo categórico – praticar o ócio. Contrariamente ao que proclama certo espírito mundano, o ócio não é a fonte de todos os vícios, mas a origem de muitas virtudes. Era o que os gregos pensavam. E não estavam errados. Aliás, os velhos gregos estavam certos em muitas coisas, apesar de haver quem os considerasse como eternas crianças, sem sabedoria das coisas antigas, das velhas tradições. Nesse aspecto, a tradição grega encontra-se com a judaico-cristã e o imperativo crístico Deixai vir a Mim as criancinhas, porque delas é o Reino dos Céus. Em ambos os casos, a sabedoria não deriva da autoridade dada pelo tempo, mas reside numa espécie de inocência, a qual seria a garantia de uma visão não enviesada, de um olhar directo para as coisas mesmas. Essa inocência originária, como todos sabemos, perde-se rápida e facilmente. A grande tarefa que fica para a vida será a de se tornar inocente. Isso não significa recuperar a inocência que se perdeu, mas instalar-se numa outra que, ao contrário da primeira, conhece a culpa e fez o caminho através dela. A tarefa existencial não é permanecer inocente, mas conquistar a inocência, esse olhar não enviesado para as coisas, esse contacto directo com aquilo que é. Os gregos, com a sua arte, religião e filosofia, representavam as criancinhas do texto evangélico. Aquilo que se abre aos descentes dos gregos, agora que transportam vinte e cinco séculos de culpa aos ombros, é tornarem-se crianças, não porque seja essa a sua situação, mas porque esse é o desígnio que elegeram.

sábado, 7 de junho de 2025

Mentir

Gosto de ver o mar, mas tenho um conflito insanável com idas à praia. Nem sempre foi assim, mas deu-se em mim uma lenta metamorfose que me conduziu do amor – na verdade, uma amizade moderada – a uma indiferença e sensação de desconforto. Não odeio idas à praia, pois para isso teria de ter tido uma paixão avassaladora. Nada disso. A conjugação entre sol e areia não é a coisa que mais me agrada. Passo semanas junto ao mar, mas não ponho um pé na areia. Já a frequência de um bar de praia me é agradável. Posso ficar sentado a ver a ondulação, a espreitar o horizonte, a tentar decifrar o que se esconde para lá da linha.  As pessoas, confesso, não me interessam particularmente. Prefiro, perscrutar o movimentos dos barcos ou o voo das gaivotas. Só o meu neto terá poder para me arrastar para a praia. As netas já passaram essa idade e dispensam a minha companhia. Na verdade, bastam-se a si mesmas, como qualquer adolescente. Uma está já a abandonar a fase da adolescência. Contudo, gosto de fazer longas caminhadas perto do mar. A terra é o meu elemento, é nela que sinto o meu fundamento existencial, mas a água não deixa de exercer sobre mim um grande fascínio. Tudo isto poderia ser interessante, caso não fosse uma ficção. Quando alguém – talvez já com pouco controlo da sua saúde psíquica – se propõe escrever todos os dias, o mais natural é que venda a alma ao diabo. Não, não, não se trata de um pacto digno de Fausto, mas apenas o exercício de uma pequena venalidade: a mentira. Escrever ficções – grandes ou pequenas – é dispor-se a mentir. A partir de certa altura, mentir torna-se um imperativo, pois quanto mais falso for o discurso, mais verdadeiro será percebido. É esta a glória da ficção: mostrar como verdade aquilo que é falso. Foi por isso que Platão, ébrio pelo desejo de verdade, propôs a expulsão dos poetas da cidade. Não sou poeta, mas, no meu anonimato, sou dado à falsificação da realidade. Será que gosto de ver o mar? Será que não gosto de à praia? Seja qual for a resposta que dê a estas perguntas, ela será falsa.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Visitações

Uma moldura em forma de estrela de oito pontas. Nela, o retrato de alguém que não sei quem é. Na parte de trás, uma imagem com motivos coloniais. Pelo que veste, percebe-se que a mulher ali representada pertence a uma classe desafogada. O que está a fazer o conjunto diante de mim? Ignoro. Sei apenas que deve ter mais de um século, mas que se subtraiu aos efeitos da passagem do tempo, ou quase. Cada ponta da estrela termina com uma imitação de pérola ovalada, mas uma delas está caída. Olho demoradamente para aquela mensagem vinda de um tempo que não é o meu, mas não consigo decifrar o texto que ali se resguarda. Lá fora, uma máquina começou a trabalhar. Um ruído contínuo, irritante, também portador de uma comunicação. Recuso-me a escutá-la. Há coisas que é melhor não saber. Com o passar dos anos, estreitam-se as coisas que consideramos merecedoras de atenção. Até que chega o momento em que descobrimos que nada merece já atenção. É a prova de que chegou o fim da hospedagem nesta pequena casa a que se dá o nome de Terra. Intriga-me a fotografia, o formato da moldura, os motivos coloniais. O que tudo isso quererá dizer, agora que repousa na secretária onde escrevo? Daqui a pouco irei caminhar junto ao mar. Espero saber ler o ritmo das ondas e o voo das gaivotas, não como um áugure; apenas como um exegeta que se entrega, com paixão, à interpretação de um texto difícil, uma tarefa sem fim, pois qualquer texto contém em si uma aspiração ao infinito, que exige uma infinidade de interpretações.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Decepção

Há causas nobre – nobilíssimas, para ser mais exacto – cujas consequências são muito pouco nobres. Imaginou-se um dia que a alfabetização generalizada representaria uma elevação espiritual. Não se pouparam – não se poupam – esforços para alfabetizar as pessoas e, mesmo, para as dotar de índices de literacia assinaláveis. Os leitores de Homero seriam legião, Shakespeare e Pessoa estariam continuamente a ser impressos. Haveria clubes poderosos de leitores de Sófocles, de Kafka, de Mann, de Musil ou de Proust. Os resultados são decepcionantes. O mundo de leitores aumentou, mas os grandes autores continuam a ser – talvez deva ser assim – parte de um mundo restrito, de uma elite descabelada e sem préstimo. Contudo, o efeito mais espectacular dessa ideia nobre de colocar à disposição do grande número aquilo que sempre foi de poucos não está na decepção pela falência do propósito. O resultado desta nobre aventura é que o critério de separação da alta cultura se perdeu e Homero ou Hermann Broch valem tanto – na verdade valem menos – como um qualquer produtor de best-sellers. Um dia – não virá longe – perguntar-se-á por que motivo se há-de submeter os adolescentes à leitura de Camões, se não há quem lhe compre os versos. Repito-me, imagino que já aqui o terei escrito: como a má moeda expulsa a boa, também a má literatura expulsa a boa. Não apenas nos escaparates das livrarias, mas do horizonte cultural onde ela sempre existiu. Deixou de ser o padrão, para se tornar uma coisa tão trivial como as trivialidades que são despejadas torrencialmente nas livrarias. Devo estar cansado para vir com esta conversa. O cansaço tem sempre efeito surpreendentes, inclina-nos a fazer e a dizer coisas que nos interditaríamos. A coisa explica-se facilmente: aquilo que se pensa está – no estado de normalidade – cercado por um dique poderoso. O cansaço é como as grandes chuvas torrenciais, em que os cursos de água se assanham e levam tudo pela frente, mesmo os mais poderosos diques. É isto que me está a suceder. Ou talvez seja outra coisa que desconheço. Ou talvez não passe de uma necessidade biliar. As verdadeiras razões são sempre estranhas e dificilmente compreensíveis.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Anamnese

Fui jantar à baixa. Sim, aqui também há uma baixa, que se opõe à alta. O conflito não é social. Tão pouco é um conflito, apenas designações de uma geografia comum, uma maneira de dizer. Minha, note-se. Ninguém aqui chama baixa à baixa. Chamam-lhe centro, como se fosse o centro do mundo, o Omphalos, embora ninguém faça ideia do significado desta palavra aterrada aqui vinda directamente da antiga Grécia. Estou a desviar-me do assunto. Também é verdade que não tenho assunto. Sono é a única coisa que possuo, mas sem vontade de dormir. Depois de jantar, dei uma pequena volta por essa baixa. Observei com atenção casas antigas, de um tempo em que a vila – isto era uma vila, antes de cair sobre o país a tragédia das elevações a cidade – um tempo em que a vila, repito-me, tinha alguma influência, ou gente com influência. Dois governadores da chamada Índia portuguesa nasceram aqui. Tudo isso passou. No entanto, recordei-o hoje, há recantos belíssimos, de um romantismo antigo, daquele que ainda sonhava com a Idade Média. Isso recordou-me a época em que eu, pobre de mim, me achava deslocado no mundo moderno e sentia que a minha pátria era a Idade Média. Tudo isto, porém, era uma encenação privada que não partilhava com ninguém. Uma fantasia inocente, que não levava a sério, pois não passo de um ser conformado às comodidades dos nossos dias. No entanto, pensando bem, aquele tempo em que me sentia um homem da Idade Média era, na verdade, uma Idade Média. Os computadores eram seres que pertenciam a seitas esotéricas. Ter um telefone implicava anos de espera e a televisão era a preto e branco. Também é verdade que não melhorou quando foi colorida. Pelo contrário. Tudo era mais lento, havia poucos carros e as pessoas iam, aos domingos, ao futebol ou ao cinema, depois de terem ido à missa, as que iam. Foi disso que me lembrei, ao olhar o rio, as casas, as ruas, onde não vi ninguém conhecido. Depois, peguei no carro e tudo se apagou.

terça-feira, 3 de junho de 2025

Arquétipos

Ontem revi Casablanca, a velha e famosa obra de Michael Curtiz, com Humphey Bogart e Ingrid Bergman. A certa altura dou comigo a pensar que o filme está construído num pressuposto utilitarista. O utilitarismo é um corrente filosófica que defende que o valor moral de uma acção reside nas suas consequências. Elas devem promover a felicidade não do agente, mas do maior número possível de implicados pela acção. Rick (Humphrey Bogart) sacrifica o seu amor por Ilse (Ingrid Bergman) em nome de um bem maior, em favor da felicidade do maior número. Não é de admirar, pois a sociedade americana não era indiferente a uma certa tonalidade utilitarista. Todavia esta inscrição do filme de Curtiz na filosofia de Bentham, de Mill e de Sidgwick é secundária. Há, na cultura ocidental, um arquétipo de onde emana o acto de Rick: o Cristo que morre na cruz pela salvação dos homens. Aparentemente nada liga a figura do fundador do cristianismo e a do cínico proprietário de um café em Casablanca. A força dos arquétipos reside nisso mesmo: manifestam-se onde menos se espera. Aliás, muito facilmente se descobrem outras figuras arquetípicas provenientes da cultura judaico-cristã por detrás das principais personagens do filme. São estes arquétipos que dão profundidade às culturas humanas, enquanto as separam umas das outras e estabelecem entre elas um grau de incompreensibilidade muito mais rígido do que a incompreensão linguística. Traduzir palavras e frases é fácil. Difícil, se não impossível, é a tradução de arquétipos, pois estes persistem silenciosos e operam a níveis muito fundos do nosso psiquismo. Não seria possível a um realizador japonês, chinês, indiano ou muçulmano realizar Casablanca, tal como o filme foi concebido dentro da cultura ocidental.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Desconstrução

As segundas-feiras são sempre dias de queda. Queda? Sim, na realidade. Os fins-de-semana são um mergulho num mundo de ficção, a entrada na fantasia de que superámos a fase existencial da humanidade governada pela estrita necessidade. É uma doce e calorosa quimera, que entra em nós, se aninha e que, quando a velha necessidade, com o seu ar de bruxa imperativa, bate à porta, ela recusa-se a abri-la. Contudo, a porta abre-se e a matrona inexorável toma conta da cena, arrastando-se, e aos mortais com ela, pelo palco. Os homens habituam-se e, por vezes, tornam-se colaboracionistas, vendendo a sua liberdade ao império inimigo. Contudo, mesmo os mais contumazes agentes da utilidade sentem uma inquietante estranheza às segundas-feiras. O que se dirá de mim, eu que faço parte da resistência? É um choque traumático. Só não sou levado ao divã do psicanalista porque não tenho inclinação nem para a confissão nem para ficar traumatizado por mais do que umas horas. Como se sabe, todos nós somos habitados por outros seres, aos quais, à falta de melhor, dei o nome de homúnculos. Sócrates tinha um daimon, um génio; eu, por um homúnculo. Ao contrário do que morava no filósofo ateniense, o meu não é benfazejo. Está sempre a desmontar o meu discurso. Desconfio, que foi discípulo de Derrida, ou que anda a ler aqueles tratados soporíferos saídos da imaginação de um francês dispensado de pagar tributo à necessidade. Estava eu a dizer que não sou dado a confissões nem inclinado a traumas, logo ele começou a gargalhar, perguntando-me se estes escritos não são confissões. Por uma vez, cheguei para ele. Respondi-lhe: claro, são confissões, mas sem confessado. Ele calou-se, foi ler o De la grammatologie e deixou-me em paz. Por uma vez, saí vitorioso. O pior é que isso não me devolve a doce quimera que estava no meu coração e que a megera expulsou. Por uns dias, espero.

domingo, 1 de junho de 2025

Arte total

Uma das discussões com algum peso no âmbito da filosofia da arte, na sua vertente anglo-saxónica, é a da possibilidade de dar um definição de arte. Há propostas essencialistas – que pretendem encontrar uma essência comum a todas as obras de arte, independentemente da natureza e origem destas. Há leituras cépticas que negam a possibilidade de encontrar uma definição global de arte. Há teorias que deslocam a definição da arte das obras para os contextos em que estas se inserem. Isto é um problema filosófico e não artístico. Os artistas estão mais preocupados com a produção do que com a definição. Todavia, a ideia de uma totalização – toda a definição implica uma totalização – não deixa de ser atraente, mesmo pensada fora da questão filosófica. Há um espírito humano único, mas que se fragmenta nas modalidades de expressão: música, poesia, narrativa, pintura, fotografia, dança, arquitectura, escultura, drama, cinema, etc., etc. Esse espírito único para se manifestar – talvez devido à finitude e aos limites humanos – tem de se fragmentar. E essa fragmentação em especialidades artísticas não pode deixar de ser sentida como a perda de qualquer coisa fundamental. Não de uma essência única comum a todas as obras de arte, mas de uma unidade poética do espírito. Ora, o caminho da arte tem sido o da contínua especialização ao longo dos milénios, mas a obra de arte total, aquela que satisfaria os anseios mais fundos do espírito humano, seria uma englobasse todas as especialidades, uma que fundisse aquilo que estilhaçou. Esta utopia artística seria possível apenas a um Deus, tal como o define o teísmo, mas o facto de ela assombrar os homens pode ser um sintoma de serem – ou de desejarem ser – tido à ou como imagem e semelhança da divindade.

sábado, 31 de maio de 2025

D. Quixotes e tristes figuras

No último dia do mês de Abril, escrevi o seguinte: O mês finda tempestuoso, uma revolta inútil contra o destino. Maio termina sem tempestades, mas o calor que escorre pelos telhados da cidade é pior que uma tempestade. Nada que demova os adolescentes de virem adolescer para a praceta aqui em baixo. Eu compreendo, também devo ter sofrido da mesma doença, embora já não me recorde como fui afectado, como afectei outros e como suportei tudo isso. Imagino que sem garbo, pois não há doença manos propícia à manifestação de condutas garbosas do que a adolescência. Agora, que tenho largas dezenas de anos em cima do evento, consigo imaginar que D. Quixote, o cavaleiro da triste figura, é o símbolo da adolescência – no masculino, entenda-se. Fazem-se tristíssimas figuras, enquanto no cérebro – ainda pouco desenvolvido – se forma a fantasia de que se é um herói. Não consigo recordar-me se, na minha adolescência, me encaixava no arquétipo. Não, estou a mentir. Claro que encaixava, com a minha fixação nas corridas de fórmula 1. Por certo, não deixaria de me imaginar um Jackie Stewart, o escocês voador, meu herói daqueles anos. Claro que não era o único. Havia outros, uns vindos do futebol – desporto para o qual nunca tive qualquer dote –, outros das leituras, todos eles D. Quixotes, por certo, na minha avaliação enviesada pela idade e o estado patológico em que me encontrava. O certo é que sobrevivi. Se bem ou mal, isso já é outro assunto. Há muitos homens – as mulheres são menos afectadas – que tornam a doença crónica. Ficam adolescentes toda a vida. Nisto não há qualquer juízo moral. Cada um sobrevive como pode, desde que não aborreça o próximo. Os D. Quixotes continuam a gritar, pois têm dificuldade em controlar as ondas sonoras. Um dia destes terão aprendido a fazê-lo, mesmo que sejam eternos adolescentes.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Aboletamento

Um dos Contos de São Petersburgo, A Caleche, de Nikolai Gógol, tem um começo que desencadeou em mim uma memória ancestral. O texto diz: A cidadezinha de B. animou-se muito quando nela se aboletou o regimento de cavalaria ***. Antes disso, pasmava num tédio mortal. A palavra gatilho da minha rememoração foi aboletou. Ora, a memória não é a minha, claro, pois ela provém das Invasões Francesas. Numa delas, o exército invasor esteve aqui aboletado. A memória veio através da minha mãe, que a ouviu da sua avó – uma das minhas bisavós. A história narra a pilhagem da casa de família por parte da soldadesca francesa. Conta como se esconderam e como os soldados destruíram o que não conseguiram levar. Ora, essa minha bisavó não podia ter vivido o acontecimento, pois nasceu mais de cinquenta anos depois da passagem por cá  dos franceses. Também a mãe – uma das minhas trisavós – não podia ter vivido o evento. Embora fosse possível que um dos meus tetravós fosse a origem do relato, o mais plausível que aqueles que o viveram tenham sido os meus pentavós do lado materno. O que sempre me impressionou foi a persistência da narrativa, onde não deixou nunca de ressoar um certo ódio aos invasores, que chegou até à geração dos meus filhos e se prepara para continuar. Conheci pelo menos outra pessoa que, na sua família, tem uma história semelhante, o que indicia uma prática contumaz do invasor. Ora, a transmissão genética pouco relevo terá caso não seja acompanhada por outro tipo de transmissão, a narrativa. A passagem dos franceses por aqui deve ter sido de tal modo inaceitável que, passados mais de duzentos anos, ainda há recordações do seu aboletamento.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Evaporação

Há pouco, na rua, estavam trinta e oito graus. Os corpos amolecem e quase derretem. A partir de certa altura do ano, por aqui, o calor lança uma intifada contra a pobre população. Munido de pedras ferventes, esse deus sem tino lança-as sobre a cidade. As pessoas protegem-se como podem de um agressor sem rosto nem voz. O melhor, porém, será escolher o exílio junto ao mar. Ora, isso nem sempre é possível. Não seria má ideia os poderes municipais tentarem negociar com o inimigo. Fazer algumas concessões e obter temperaturas mais amenas. Falta-lhes, aos poderes municipais, iniciativa. A escassez deste bem está ancorada na penúria de um outro: a imaginação. Em Kant a imaginação assume duas faces. Uma, reprodutora; outra, produtora. A imaginação que reproduz – isto é, que copia – não falta a esses poderes. O que lhes falta é a outra, a criadora. Se a tivessem, encontrariam modo de negociar uma baixa de temperatura como quem negoceia uma baixa de juros ou de tarifas, tema que agora está na moda. Para que servirá um poder municipal se nem é capaz de tratar de uma coisa destas? Enquanto isso, os corpos, depois de derreterem, correm o risco de se evaporarem. É muito desagradável para uma cidade perder assim os seus cidadãos. O que lhes aconteceu, pergunta-se. Evolaram-se devido à onda de calor. Os poderes públicos – não apenas os municipais – andam atarantados com o problema da demografia. Retorcem os neurónios para encontrar uma solução. Contudo, como podem encontrar a solução se não conhecem – ou não acreditam – na causa: a evaporação dos cidadãos devido ao calor? Há uma correlação evidente entre a subida das temperaturas e a diminuição demográfica. Pensa-se que é por nascerem poucas pessoas. Uma desculpa com a finalidade de não enfrentar o problema. Por vezes, passam nuvens carregadas de gente evaporada, mas como não chove cidadania, não há devolução. Resta-nos esperar que os poderes públicos, locais e nacionais, deixem de se comportar como sonâmbulos e acordem para o problema. Que é real, como se pode ver pelo estado do meu cérebro. Os cérebros são a primeira coisa a volatizar-se.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Tempos

Foi através do filósofo italiano Giorgio Agamben que cheguei a uma definição de kairós: O chronos é aquilo em que há kairós e kairós é aquilo em que há pouco chronos. A definição provém do Corpus Hippocraticum, o que permite perceber, de imediato, que se insere no campo da saúde. Melhor, no campo da cura. Umas vezes, a cura ocorre por intermédio do  tempo (chronos); outras, através do kairós. Este é visto como um tempo oportuno, a hora certa de um acontecer. Aparentemente não é mensurável ao contrário de chronos, o tempo sequencial e mensurável. A definição hipocrática é interessante porque não separa um do outro. O kairós inscreve-se no tempo corrente, não é estranho ao fluxo. Pelo contrário, é um chronos contraído (há pouco chronos, diz a definição). Esse momento em que os olhos de um homem e de uma mulher se cruzam e decidem duas vidas é o kairós. Este é um momento de redenção. Retira homem e mulher da vida trivial e abre-os a uma outra vida. Se ela vai ou não ser trivial, isso é outra coisa. O acontecimento transborda a temporalidade e, de certo modo, ao contrário do que diz o pensamento hipocrático, é-lhe exterior. É a intensidade desse acontecimento que transforma chronos em kairós. Não houve um momento oportuno para que algo se desse. Foi porque algo se deu que esse momento se tornou oportuno. É a dimensão do acontecimento que rapta o kairós da linha do tempo. Não se pense que toda esta meditação se deve a uma inclinação especial para a especulação. A realidade é mais prosaica: com a temperatura que está lá fora, encontro-me retido em casa. O escrito é um acto de resistência ao despotismo do tempo, não o cronológico, mas o climático. Amanhã, já vi, vai ser pior. Agora, tenho de ir saber como vai a varicela do meu neto. Também ela encontrou o kairós para nele se manifestar. Não me lembro de ter tido varicela e já não está cá quem me informaria com toda a precisão. Hoje faria 92 anos. Chronos tem os seus imperativos, que nem o mais intenso desejo dos homens consegue suspender.

terça-feira, 27 de maio de 2025

O dia

O dia decorreu sem que nada o perturbasse. Nenhuma conspiração veio à luz para o eliminar antes da hora. O universo não suspendeu as suas leis. Também eu me contive nas estritos limites dessa legalidade universal. Passei parte dia a fazer certas experiências. Para quê? Para ver o que acontecia. E o que aconteceu? Nada. Isto significa que hoje não é dia que possa reclamar como mais um daqueles que constitui a gesta deste narrador sem narrativa. As narrativas nascem quando o universo suspende as suas leis. Se a realidade se afunda, as palavras compõem o mundo, até que tudo se endireite e o universo viva a sua vida quotidiana. A maior glória a que posso aspirar hoje é cuidar do jantar. E não é pouco o esforço.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Perturbação

Há trinta anos, um acontecimento mudou radicalmente a minha vida. Foi isto o que pensei ao acordar. Depois, julguei a afirmação demasiado dramática, como se tivesse tido uma revelação que me tivesses transformado. Moderei a avaliação e pensei que o processo de mutação já estava a decorrer e que o dia de há três décadas foi apenas símbolo, um marco miliário no caminho. Também é plausível pensar que, sendo eu um narrador, tudo isto seja falso, uma invenção do autor. Estava eu a pensar nisto, quando recebo uma chamada. Uma operadora de telecomunicações. A finalidade é convencer-me a mudar de fornecedor. A vida interrompe-me sempre quando estou perdido em meditações profundas. É possível que a vida saiba que me falta profundidade e, solidária comigo, me queira poupar ao confronto com a realidade. Então envia-me estes anjos, de voz feminina, mas que são de um tempo que não é o meu. Era impensável alguém tratar um homem por senhor + nome próprio. Havia uma regra e não sei quem a revogou. Não me indigno, mas penso que há qualquer coisa que deixou de funcionar no mundo. O enigma de tudo isto é o seguinte: como pode um narrador – um ser meramente virtual – receber chamadas telefónicas, conversar com operadoras – confidenciou-me que era chefe de equipa, quase fiquei impressionado – de operadoras de comunicações e recordar acontecimentos de há trinta anos? Logo ele que foi criado no ano de 2017. Estou perturbado.

domingo, 25 de maio de 2025

Mau sintoma

Um domingo sem história. Dias sem história são os melhores, pois a história é apenas o trabalho do negativo. Será que estou a sofrer uma recaída? Fui atacado pelo vírus do meu velho hegelianismo? Nunca se sabe. Uma pessoas pensa-se curada, anda anos e anos como se nada fosse, e, de repente, lá volta a doença. Afinal, somos obrigados a constatar, não houve cura. A doença tornou-se crónica, embora sem manifestações aparentes. Há uns tempos a esta parte, tenho pensado nesse negativo. Parece estar destrambelhado no palco da história. Imagino que o ataque do vírus hegeliano se deva ao que se está a passar na peça dramática que se desenrola perante os nosso olhar e, infelizmente, nos engloba e arrasta. Recordei-me, agora, do quadro, de Paul Klee, Angelus Novus, e da interpretação que dele faz Walter Benjamin. Arrastado pela voragem do tempo, o anjo olha fixamente o passado. E o que vê? Uma sequência contínua de catástrofes. É isto o trabalho do negativo. O anjo, consta, gostaria de deter-se para reparar os danos, mas impede-o a tempestade que sopra do paraíso, impelindo-o sempre para o futuro. Ora, nunca me conformo com a minha situação. Sou também impelido com fúria para o futuro, mas não sou anjo, e muito menos anjo da história. Tão pouco sinto o impulso angélico de reparar os danos do passado. Por que razão terei eu de sofrer o destino do anjo? Este foi o pensamento herético que me assaltou, armado de punhal. Não lhe resisti. Será isto um sintoma de recaída no velho hegelianismo de juventude? Não me parece bom sintoma.Que pena não poder conversar, agora, com meu amigo Padre Lodo, o velho Lodovico Settembrini. Para me confessar? Oh não, não sou dado a confidências. Para combinarmos onde haveríamos de jantar e beber um bom vinho, enquanto a história se rebola por aí.

sábado, 24 de maio de 2025

Devolvam as mudas

Tenho um contencioso inultrapassável com o acordo ortográfico de 1990. Objectivamente, parece-me uma causa perdida. É só uma questão de tempo e a ortografia vandalizada será a única a ser conhecida pelos escreventes portugueses. Como não sou linguista, não tenho argumentos dessa ordem para contrapor, mas custa-me que o antigo espectador se tenha tornado num cruel espetador. Depois, as coisas vêm por arrasto. Quando se transforma a concepção em conceção, abre-se o caminho para que o conceptual se torne concetual. Estamos perante um terrível exemplo de perseguição da deficiência. As consoantes mudas, pela sua mudez, foram abolidas, excluídas. Quem o fez não percebeu uma coisa central: a figura estética das palavras. As letras que nelas estão formam uma totalidade visual. Quando se amputam as consoantes mudas, altera-se drasticamente a palavra escrita, pois elas têm uma natureza visual, para além de suportarem emissões sonoras. As consoantes mudas são o vestígio da história da língua, um vestígio inscrito na própria língua. Talvez já o tenha escrito aqui, mas a abolição dessas consoantes é um acto idêntico ao que seria destruir as ruínas históricas, os vestígios do passado que já não têm qualquer utilidade social. A destruição terá começado em 1911 na simplificação ortográfica. O jacobinismo da época não esteve com meias medidas e, com o vão desejo de, ao simplificar a ortografia, tornar a escrita e a leitura mais fáceis a um povo de baixo QI (só podia ser isto o que os simplificadores pensavam dos portugueses), trataram de desfigurar as palavras. Não contentes, os jacobinos dos finais do século passado acabaram a obra. Custa-me muito ver a velha palavra acção – descendente da actiōne latina – transformar-se em ação, que já muitos leitores pronunciam como a São. Devolvam as consoantes roubadas às palavras a que pertencem. Uma questão estética. Sei que isso não acontecerá, mas há que não esquecer a barbárie. Trata-se de barbárie, pois o que se esconde através dos actos dos reformadores ortográficos é o desprezo pela antiguidade clássica, de onde a nossa língua provém, mesmo que por vias populares.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Imperativo categórico

A praceta aqui em baixo silenciou-se. O bando de adolescentes guardou a bola e foi para casa. Fiquei agradecido. Assim, nesta ausência do estilete do ruído, posso meditar a passagem quase inaugural de um dos romances de Julian Green, Partir avant le jour. Traduzo: Escrever não importa o quê é talvez o melhor meio de abordar os assuntos que contam, de ir ao mais profundo pelo caminho mais curto. Dir-se-á simplesmente o que passa pela cabeça, ao sabor da memória. Também eu escrevo não importa o quê, mas o resultado nunca é ir ao mais profundo. É nisso que medito, a constatação de uma falta. Talvez não tenha memória. Talvez me falte profundidade. Ou, então, a minha profundidade é muito superficial. Isto pode ser um falso dilema. A razão pode não ser a falta de memória nem de profundidade. Posso achar obsceno revelar o que vai no meu abismo interior. Por pensamentos destes, descubro-me deslocado no tempo, anacrónico. Tudo terá começado com o nudismo. As pessoas vão para certas praias para andarem despidas. A seguir, considerando que o exercício era irrelevante, começaram a trazer as peripécias da sua vida para a praça pública. Agora – mas este agora pode ser já antigo – o exercício é o de revelar a interioridade, desocultar a profundidade, não apenas a dor, mas também o mal praticado. O mundo tornou-se um confessionário. As televisões, as redes sociais, os podcasts. Enquanto a Igreja Católica – pelo menos, no mundo ocidental – vai definhando, a prática da confissão universaliza-se. Cada um quer mostrar a profundidade que tem, as dores que sofreu, o mal que praticou. Imagino que as mesmas pessoas que um dia abominaram a confissão no segredo do confessionário, a pratiquem agora na praça pública. Que razão as moverá? A confissão religiosa  colocava-as perante o errado, que como tal era reconhecido para ser perdoado. Agora é mostrado não para ser perdoado pela sociedade, mas para ser reconhecido como marca de glória. A exposição pública da interioridade é a glorificação da gesta do indivíduo, é o momento em que transforma em grandeza aquilo que foi vil. A confissão pública transforma o vilão em herói. O melhor, penso, é que se evitasse, a todo o custo, ir à profundidade – pelo menos publicamente – seja por caminho curto, seja por um longo. Poupar os outros da nossa interioridade deveria ser um imperativo. Categórico, como o de Kant.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Paisagens emaranhadas

Há títulos fascinantes. Já o disse aqui. Terei de me conter nesta repetição, não vá supor-se que se trata de algum fétiche. Lembrei-me desse fascínio ao ler um título de Herberto Helder: A Máquina de Emaranhar Paisagens. Fico a contemplá-lo e vejo uma paisagem a dobrar-se e a desdobrar-se, num ritmo caótico. Depois, olho com mais atenção e descortino a máquina que gera a paisagem, mas tudo nela é desconcertante. Um batalhão de engenheiros – percebe-se que são engenheiro pelo modo como olham e pelos gestos que fazem – conferencia, como se quisesse encontrar uma estratégia para curar a máquina do seu desvario. As pessoas não o sabem, mas qualquer paisagem é produzida por uma máquina. Enquanto a máquina  funciona bem e a paisagem não se emaranha, ninguém percebe como são produzidas as paisagens. Pensam que são coisas naturais para os nossos olhos contemplarem. Só quando a máquina se avaria e a paisagem se emaranha, é que os mais atentos descobrem a verdade. Ficam tão atónitos que não acreditam no que vêem. Angustiados, tomam a decisão de não partilhar o segredo com ninguém. A partir desse dia, elevam os olhos aos céus e, numa oração sentida, imploram à divindade que a paisagem jamais se emaranhe.

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Singularidade

A fazer de acompanhante, enquanto espero vou abrindo, no tablet, ficheiros antigos. O objectivo é fazer uma limpeza. Num deles, cuja designação omito, encontro o seguinte: Este é o romance que dá voz à única minoria que conheço; e, se a conheço, então ela existe. A única cuja voz transposta em si um sentido compreensível para qualquer um. Que minoria é essa, perguntará o leitor. Uma pequena palavra desvendará o mistério: Eu. Desconheço outra que seja menor. Todas as outras, a meus olhos, por pequenas que sejam, são já para mim uma multidão opressiva. Fiquei a contemplar aquele montão de disparates em meia-dúzia de linhas. Quem terá escrito isto, perguntei-me. O autor teve o bom senso de não continuar. Quem se poderia interessar pela história de um Eu? Ninguém, por certo. Ora, o que me terá levado a escrever aquilo, pois sei muito bem que ninguém, a não ser eu, tem acesso aos meus ficheiros? E, se ele está lá, foi porque eu — talvez num ataque de sonambulismo, que nunca descobri sofrer — o escrevi. Arrependo-me de o ter escrito? Podia responder como um qualquer poltrão travestido de corajoso que não, que não me arrependo de nada do que fiz. Seria faltar à verdade. Arrependo-me de muitas coisas, entre elas o de ter escrito aquelas palavras. Não pelo seu conteúdo, mas pela miséria da sua forma. Se o conteúdo é mau, isso deve-se à natureza deplorável da forma. Foi assim, nesta meditação, que passei o tempo de espera. Exames efectuados, fomos almoçar com o meu filho, que, por um acaso, se encontrava também na capital de distrito onde decorreram as provações médicas. A conversa de almoço evaporou o meu arrependimento, que volta agora. Um dia destes apagarei o texto miserável. Talvez não, talvez lhe dê continuidade, pois, na verdade, a única minoria que conheço sou eu. As outras oprimem-me e, por isso, desconheço-as. O problema do mundo é haver minorias e maiorias. Se apenas existissem singularidades, se fosse impossível dizer nós, vós ou eles, tudo seria mais cordato. A vida seria um encontro de singularidades e não um passeio de rebanhos. A singularidade, meu idiota, é um luxo, oiço dizer. Calo-me, perdido na perplexidade de me escutar.