sexta-feira, 10 de maio de 2019

O mês de Maio

Leio que as máximas se preparam para chegar aos 37 graus e estremeço. A culpa – culpa e não causa – é, segundo sou informado, de um anticiclone. Vivemos num país de impunidades globais. Por maior que seja a devastação, nem o anticiclone há-de ser castigado. Num dos livros da escola primária, talvez o da primeira classe, havia uma lição laudatória do mês de Maio. Associava-o aos lírios, se a memória não me falha, e à Virgem Maria. Hoje fico espantado com a inocência que me levava a crer na bondade de tão insidiosa folha do calendário. Nela, o Verão experimenta as garras com que há-de devastar a terra e crestar esperanças e vontades, afia o punhal que me há-de derrotar. As escolas aqui à volta parecem casas assombradas, povoadas apenas por terríveis espectros, habitantes do silêncio e da névoa. Tamborilo o tampo da secretária, mas não oiço o mais leve rufar. Também eu sou um fantasma, uma assombração perdida numa floresta de símbolos, um espírito incongruente que se passeia por aí envolto no lençol da sua inutilidade.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Ortografias

Comprei há dias um romance de 1926, Volupia que salva, de um autor de que nunca ouvira falar, Tomás de Noronha, que assina modestamente por T. Noronha. O exemplar pertence à segunda edição, presumo, referida como 2.º milhar. No fim do livro, consta a informação que este se acabara de imprimir no ominoso dia 28 de Maio de 1926. O mundo está cheio de coincidências, pensei. Na rua tremula uma chuva fina, delicada, que parece aspergida para não ferir os mortais que vivem sobre a terra. Folheio o livro e vejo nele um sabor arcaico, um gesto de resistência ao passar do tempo, uma fidelidade à tradição. E não sabendo nada dele já me sinto disposto a reverenciá-lo. Não passo de um preconceituoso. A ortografia é a anterior à republicana simplificação de 1911. Não é pouco o prazer de observar a elegância do ele geminado em n’aquelles, ou o insidioso agá que se deixa ficar na sua mudez enquanto emana  uma última exhalação. E o que dizer do lúbrico ípsilon mancomunado com o parzinho indiscreto tê e agá no fulgor de uma hypothese? Tudo isto sem esquecer esse sempre emocionante encontro gráfico entre o passivo pê e o sempre volúvel agá com que a divina Aphrodite nos abençoa. O que há-de pensar uma pessoa, se está chover e a imaginação não lhe dá para mais?

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Falta de assunto

Pontes não passam de promessas de vitória sobre armadilhas que a natureza decidiu pôr no caminho dos homens. Com elas, é verdade, enganamo-la e esquecemos que as nossas vitórias, todas elas, são transitórias. Ocorreu-me que deveria evitar a tentação da ênfase, mas ninguém é perfeito. Numa qualquer margem estará a derrota que nos espera. Era nisto que há pouco pensava quando atravessei uma velha e pequena ponte de madeira que liga a esconsa Rua de Trás os Muros ao jardim da avenida. Há tanto tempo que não passava ali que a tinha esquecido. Enquanto pisava a madeira periclitante olhava as águas do rio e achei-as iguais às que por ali corriam há trinta ou quarenta anos. Talvez Heraclito estivesse errado. Talvez os meus olhos me enganassem. Chegado a casa, na caixa do correio, esperava-me um livro que, num impulso de nostalgia, comprei. Há muitos, muitos anos vi um filme, não sem prazer, com o inusitado nome Um Táxi Cor de Malva. Descobri que a Bertrand traduzira o romance que o originara e não hesitei em correr o risco de me decepcionar. Na província, há poucas coisas para pensar. Ou então nunca me ocorrem.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Concordância

A luz, dócil e temerosa, reclina-se suavemente sobre o asfalto. Pequenos lençóis de água reverberam, enquanto o vento sacode o dorso das persianas, repercute nas frinchas e um tamborilar contínuo toma-me de assalto os ouvidos, prende a atenção e inclina-me para o estranho código Morse que assobia na janela e espera um decifrador, o áugure que saiba ler os segredos da ventania e os prognósticos dos deuses. O dia resvala vagaroso, toldado pela poeira das nuvens. Uma mulher arrasta um saco e entra na lavandaria. O café ao lado está vazio. Um gato caminho furtivo pela praceta. Pára e especado olha para algo que só ele vê. Também eu, se fosse um gato, ficaria a olhar para alguma coisa que só eu visse. Assim, olho para o que toda a gente vê e sigo caminho. Não me foi dado o dom da profecia nem a graça da erudição. Olho as ruas, encolho os ombros e rio-me sem causa nem motivo. És o maluquinho da aldeia, diz-me a consciência infiel. Não deixo de concordar.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

As velhas ideias

Envelhecer é tomar como virtude algumas idiossincrasias viciosas, pensei enquanto, de estante em estante, ia vendo os livros numa livraria. De há uns anos para cá aproximo-me dos livros através dos símbolos das editoras. Basta ver um certo símbolo que nem olho para o que está na lombada. Apenas dois símbolos editoriais me obrigam sempre a ler autor e título, os da Relógio d’Água e da Cavalo de Ferro. Hoje, porém, comprei um livro da Quetzal. Breviário Mediterrânico, de Predrag Matvejevitch. Um livro de viagens e logo eu que, ao contrário das pessoas normais, sou pouco amante de viajar. Penso-me como turista e logo me desfalece o ânimo. Já cheguei a desistir de viagens com os bilhetes de avião comprados e perder o dinheiro. Uma outra idiossincrasia viciosa. Para mim, porém, é uma virtude. Sou mais dado à imobilidade, embora alguma literatura de viagens comece a interessar-me. Numa das badanas do livro estão citados uns versos de D. H. Lawrence. Começam assim: Ah, quando um homem escapa ao novelo do arame farpado / das suas próprias ideias… E fico a meditar nestas palavras. Há uma luminosidade difusa que se desprende da cinza nublosa do céu. Se me libertasse das minhas próprias ideias talvez me tornasse um viajante incansável. Logo o coração sussurra que não há nada melhor que as nossas velhas ideias.

domingo, 5 de maio de 2019

Latir ao vento

Aqui perto, um cão não pára de ladrar. Parece irritado com o mundo e expele a animosidade em forma de latidos, um pouco agudos para tanto agastamento, os quais vai modulando conforme as ondas anímicas vão e vêm. Por vezes, parece que se vai calar, mas logo retorna, agitando na voz a bandeira do seu descontentamento. Penso no que tenho para fazer hoje e traço na página branca do caderno da memória o rol das tarefas, compartidas entre deveres e prazeres, se é que os últimos não são também um dever. Uma mulher, macerada pela idade, caminha hesitante, passo pequeno e trémulo, e aproveita as sombras viscosas que as tílias projectam para se defender da inclemência do sol. Perscruto o horizonte e aspiro o ar já morno da manhã. O mundo é o palco de uma grande comédia, medito enquanto deixo os olhos serem invadidos pela luz bruxuleante da paisagem. Também eu faço parte da comédia e desato numa gargalhada, rindo-me de mim próprio e da persistência inquebrantável do cão que, aqui perto, não pára de ladrar. Se ele não se cala, não tarda começo também eu a latir ao vento.

sábado, 4 de maio de 2019

Paixões

Quando me levantei espreitei com demora pela janela. Procurava indícios de paixões desencabrestadas que, ouvi dizer, há por aí. A serra, ao longe, mantinha-se imóvel e secreta. A praceta, ali em baixo, estava vazia. Apenas o vento murmurava na ramagem das árvores e Deus dormia descansado por detrás da nuvem que, perdida na campina azul do céu, era sinal de um outro mundo perdido neste. Afinal o cabresto não foi retirado e as paixões deslizam cansadas pelas ruas, ajoujadas à misericórdia da sensatez. Olhei para os telhados dos prédios e pensei nos tempos em que havia anjos. Que óptimo lugar para eles seria o topo destes prédios. Dali vigiariam as tontices humanas e, em caso de desespero, com um voo súbito salvariam da perdição alguém a quem a desgraça atormentasse a alma. Hoje, porém, é sábado e passou o tempo em que até eu via anjos nas ruas.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Algoritmos

Um rapaz e uma rapariga cingem-se, olham-se, apertam-se, como se os habitasse uma ânsia nunca saciável. Se houvesse um algoritmo para resolver os dramas da carne, talvez a matemática fosse mais apreciada, ou talvez não. São pensamentos destes, sem tino nem nexo, que me ocorrem nas tardes de sexta-feira. Será que o pensamento entra em fim-de-semana e só lhe ocorre o que é insensato? Olho para o arvoredo batido pelo sol e pergunto-me o que seria da carne sem os seus dramas. Lembro-me dos tempos em que, no confessionário, o padre de serviço escarafunchava no pecado da carne. Depois, veio o sacerdócio da libertação do corpo e eu não sei o que aconteceu aos escarafunchadores. Na avenida, um jeep cinzento passa devagar, enquanto o condutor deixa, negligente, o braço fora da janela. Uma mulher entra apressada num carro, fecha a porta não sem precipitação e logo se afasta levada por uma qualquer urgência. Sem respeito pelas urgências da humanidade, a ideia de algoritmo volta a assediar-me. O ideal seria haver um algoritmo para cada problema humano. Assim podíamos dormir descansados pela eternidade fora.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Excessos

Passei agora os olhos por umas largas dezenas de livros que estão em leilão online. Enquanto deixo deslizar o olhar pelas imagens das capas, uma sensação angustiante nasce em mim. Muitos daqueles livros foram cobiçados por leitores informados. Outros foram vãs tentativas de ascender ao Olimpo da escrita. Agora não são mais que mercadoria que alimenta nostalgias e lembra decepções. Maio nunca é um mês fácil. A luz cai de garras afiadas sobre a paisagem, reverbera e sustém os ataques plenos de ardis da noite. A cada dia que passa aumenta o território luminoso. O calendário trará a vingança, penso então. Sob o foco dos meus olhos, um casal passeia de mão dada. Agarram a mão um do outro como se temessem que o amor fugisse. Caminham inocentes não suspeitando que alguém os observa e lhes perscruta o destino no voo das aves ou no ondular suave da folhagem. Volto ao leilão e leio “Que alguém me queira por cinco minutos!”, e não sei como qualificar o pedido formulado sob a forma de imperativo. A humanidade tem sempre uma estranha tendência para o excesso.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Maio

Maio chegou envolto num manto tecido pela Primavera. Olhei para a construção da frase e logo senti uma enorme tristeza. Quem quer saber destas leviandades semânticas? Fui almoçar junto ao Tejo. Via o rio correr sem pressa, as águas azul cinza empurradas por um vento ligeiro que vinha de leste. Tocava-o uma mágoa que quase exigia que se chorasse por aquela dor tão exposta à luz vibrante do início da tarde. Da margem norte, um pato levantou voo e poisou num canavial da outra margem. Depois, voltou para a casa da partida. No voo da ave, descobri mais sabedoria que em muitos dos livros que li. O que será a vida mais que esse ir e voltar, sob o céu azul do primeiro dia de Maio?

domingo, 21 de abril de 2019

Memória

Banhada em serenidade, a manhã corre vagarosa para o meio-dia. A luz do sol faz-me lembrar Páscoas longínquas, com almoços ao ar livre sob uma latada, se o tempo, como hoje, estava quente. Naqueles dias, de tão novo, não sabia que tudo era efémero e que aqueles instantes, apesar da alegre exuberância que os habitava, estavam tocados pelo punhal de vidro da morte. Guardo-os no porão da memória, para os usar uma vez por outra como consolação pelas perdas que os anos me fizeram acumular. Daqui a pouco a casa fervilhará. Filhos e netos acumularão as suas memórias para as usar um dia quando eu já não estiver entre eles. E nisto vejo não uma maldição mas o exercício misericordioso de uma justiça nascida no começo dos tempos.

sábado, 20 de abril de 2019

Afazeres de sábado

O sábado de Aleluia chegou envolto numa túnica primaveril. O tempo cansado dos farrapos invernosos despiu-se, atirou os andrajos para o lixo e exibe-se, agora, perante os olhos dos mortais como se fosse um príncipe à procura do trono. Ah que analogia, murmurei para mim mesmo, enquanto, numa pequena venda de bairro que já foi o meu, escolhia morangos, rodeado de gente em busca irrequieta daquilo que lhe falta para o almoço de amanhã. Vivemos em tempo republicano, acudiu-me ao espírito, e não há lugar, nem que seja para esse cruel e volúvel tirano que é o tempo, para pretensões monárquicas. E enquanto estas ideias destrambelhadas me invadiam a mente, lá ia pegando em molhos de grelos, que também eles fazem falta para o almoço de Páscoa. Quando saí, a meditação climática desvaneceu-se. O sol brilhava, ameaçava já um dia de Junho. Entrei para o carro e vim para casa. A cidade ardia lentamente perdida num sonho, esquecida de si, como se nem a Primavera tivesse já o poder de a revigorar.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Feriado

Passo os olhos pela comunicação social e bocejo. Não, não fui vítima de uma noite mal dormida. Confrange-me, apenas, o desfilar de tantas novidades que já habitam no sótão do meu esquecimento. Hoje é Sexta-Feira Santa, mas ninguém parece compungido. Nasci num mundo onde havia tempo e lugar para o sacrifício e a compunção. Vou morrer num outro mundo onde só há lugar para o prazer e tempo para a diversão. Espreito as muralhas do castelo. Parecem grandes lençóis abandonados a corar ao sol minguado do dia. Na avenida, os transeuntes caminham devagar, sem afazeres que os esperem. Procuram o seu pedaço de prazer, não vá ele esgotar-se devido a alguma greve na distribuição. Hoje é feriado e um feriado serve para isso mesmo. Escrevo tudo isso e rio de mim, do meu inultrapassável anacronismo, na falta de inteligência que me tolhe a compreensão deste mundo que nunca cessa de me espantar. Fraudes, greves, expectativas e desesperos eleitorais, a vida rasteira do dia-a-dia nunca pára, nem mesmo se o filho de Deus morre na angústia de uma tarde de sexta-feira, sem sol nem chuva, sem crisântemos para depor no sepulcro.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Quietude

Mais composto de águas, o Tejo corre sereno e afável, convidando a quem se senta numa das margens à contemplação. O pior é o azougue dos aguaceiros que a inconstância da Primavera, indiferente aos ânimos contemplativos, ameaça. Nem todas as ameaças são para cumprir, penso enquanto pouso o olhar nas águas que se encaminham inexoráveis para a foz. Entre conversas, observo que é quinta-feira de Endoenças e que a Semana Santa, perante a indiferença dos negócios humanos, corre para a sua hora crucial. Não tarda, tudo estará consumado e a segunda-feira virá cobrir com o véu do esquecimento estes dias. Uma águia cruza os ares e pousa numa árvore da outra margem. Nesse instante, um pequeno barco inicia a travessia para atracar deste lado, num cais frustre e precário, como tudo na vida. As crianças saltam à corda numa clareira e despem as camisolas, afogueadas pelo sol e pelo ritmo das entradas e saídas no jogo. São horas como estas que permitem compreender por que não há perfeição maior que a quietude. Sinto o tempo deslizar por mim, enquanto, por detrás de um choupo, a eternidade sorri-me, lembrando-me que sou finito. O melhor é irmos para o carro antes que chova, digo em tom imperativo, como se fosse um desses profetas irados que abundam nas redes sociais.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Águas de Abril

A manhã deslizou batida por uma chuva persistente, despojada de piedade por aqueles que poderiam flanar por ruas e praças, coleccionando vistas e estadias. É possível, concedo, que S. Pedro, esse guardador de chaves e tutor dos bens meteorológicos, se tenha indisposto com o desvelado amor com que os portugueses se entregam ao turismo e, exausto por ver tanta gente de um lado para o outro, decidisse enviar, como castigo, estas águas de Abril. Ele lá saberá as linhas com que se cose. Aproveito a indisposição do santo e entrego-me, não sem desconsolo e irritação, àquelas tarefas inúteis com as quais hei-de salvar a pátria. A chuva tamborila nos vidros da janela, um autocarro passa diante do hospital, alardeando um vigor que a falta de combustíveis ainda não dobrou. Enquanto transformo um documento de word em pdf, sinto a tristeza de tudo isto, como se vivesse num mundo criado pelo génio maligno cartesiano, que, por malvadez e humor negro, invertesse a escala de valores e tornasse em caso de vida ou de morte aquilo que é risível. Depois penso que talvez só as coisas risíveis me sejam adequadas e respiro fundo. Abro uma plataforma e arquivo o pdf. A pátria está salva, mesmo que o turismo não goste das águas de Abril.

terça-feira, 16 de abril de 2019

Opiniões

Louvo aqueles que sobre tudo têm uma firme opinião. Com o passar dos anos deixei de ter opiniões firmes e, nos últimos tempos, trabalho arduamente para não ter sequer opinião. Sobre o incêndio de Paris não tenho opinião, lamento. Tenho sentimentos, mas não devemos confundir uma coisa com a outra. Como os sentimentos são coisas privadas, o melhor é guardá-los para mim. A semana santa decorre assim sobressaltada, mas sexta-feira de Paixão há-de chegar e, sem surpresas, tudo confluirá no domingo de Páscoa. E é bom que assim seja, que a permanente volubilidade das coisas e do mundo se ampare naquilo que parece ser imutável. Lá dentro, as minhas netas disputam com pouco alarido sobre qualquer coisa que me escapa e eu lembro-me que tenho de ir ver o correio. Nunca se sabe se lá posso encontrar, enviadas por alguém dado à caridade, as opiniões que vou deixando de ter.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Emudecer

Oiço alguém a fazer uns estranho sons. Depreendo que esteja a falar para um bebé, pelo tom que toma ao arremedar sons que bebé algum se dignaria produzir. A criança, todavia, parece resistir à toada que sobre ela é disparada, pois mantém-se silenciosa. Imagino-a a ostentar no pequeno rosto altivez e a olhar de viés para as momices com que tentam comprá-la. Enquanto observo o céu, o silêncio desce sobre a insipidez do dia. Por vezes, o sol brilha, mas o entusiasmo desse seu sorriso é escasso. No céu, as nuvens passam devagar, traindo na sua caminhada o cansaço que as anima. Como elas, também eu estou cansado. Pego num livro, mas não encontro sentido ou prazer na sua leitura. Fecho-o e espero que o tempo passe. A algaravia volta aos meus ouvidos, mas a criança é inexorável e não abre a boca. Agora, oiço na rua uns adolescentes a imitar um rapper, mas logo desistem da aventura e calam as vozes à falta ritmo e de sentimento. O destino de todas as palavras é desaguar no oceano da mudez. Também eu, penso, devia emudecer.

domingo, 14 de abril de 2019

Domingo de Ramos

Domingo de Ramos. O mais espantoso do tempo que me foi dado viver – penso, enquanto olho a cinza nebulosa do céu – foi ver desabar tudo o que, durante muitos séculos, deu sentido à vida dos homens. O dia não está convidativo para este tipo de meditações. Crepúsculos dos deuses são coisas que não faltam, mas eles voltam sempre com a sua luz e as suas trevas. As pessoas passeiam na rua, agarram-se à ideia de que hoje é domingo como quem, num barco à deriva, se segura à bóia que o há-de levar a terra. Há pouco fui ver a minha mãe. Comunicou-me que fora a S. Pedro à missa do meio-dia e que até trouxera um ramo de oliveira. E estas pequenas coisas encheram-me de uma alegria melancólica, o revérbero de um tempo onde ela se limitava a ir sem que isso merecesse a atenção de uma narrativa. Talvez não seja Deus que tenha declinado, mas eu, com as mil fantasias a que chamo realidade, esteja cego e preso ao meu inexorável anoitecer. Lá fora, a tarde está quente, apesar do céu sombrio que poderia ser o prelúdio de uma tempestade que a tudo lavasse.

sábado, 13 de abril de 2019

Das coisas absurdas

Mal chegam aqui a casa, as netas ocupam-me parte do escritório. Nem sequer acham que têm de negociar comigo a sua presença. É uma ocupação selvagem sem o mais leve questionamento pelo direito. Perguntam-me se vou trabalhar e depois tomam a outra secretária. Pedem-me folhas e brincam aos colégios. Uma faz de encarregada de educação e a outra de directora. Enquanto as oiço, penso que um saber instintivo, sabe-se lá vindo de onde, as afasta de quererem brincar às professoras. E fico tranquilo e grato. Com a sua presença vejo o sábado deslizar. Lá fora, o arvoredo está hirto, como se tivesse sido petrificado por algum deus vingativo. Só hoje comecei a descomprimir dos dias disparatados da última semana. Vivo num mundo onde, como numa distopia, existe um ministério de produção de coisas insensatas, e quanto maior a insensatez mais essas coisas são prementes e glorificadas. Depois penso que cada um tem o que merece e que eu não mereci mais do que ser subjugado aos grandes produtores de tolices. De tão treinado que estou, olho-me ao espelho e não deixo de rir da minha triste e absurda figura. O que me vale é que a directora não pode receber a encarregada de educação, que terá de marcar a entrevista para outra altura.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Perder-se

Caminhamos rapidamente para Domingo de Ramos. Se esta pobre cidade fosse uma Jerusalém perdida neste fim do mundo a que se dá o nome de Península Ibérica alguém entraria nela montado num jumento? O mais certo é que se alguém aqui entrasse não viria nem a cavalo nem num jumento, mas montado numa mula. Não traria nem a guerra nem a paz, mas a viscosidade informe que tolhe as almas, as dobra sobre si mesmas, para as prender na mudez das palavras trocadas sem propósito. No bar do outro lado da avenida, as pessoas estendem-se para a rua, bebem cerveja, conversam, enquanto a noite cai com as suas garras de pez e golpeia o flanco argênteo do dia para o devorar. Uma aplicação do telemóvel informa-me que estou a melhorar, que hoje cumpri o meu programa diário, como se eu tivesse um programa diário de caminhadas e uma inclinação para o cumprir. Com tanta melhoria, o melhor será ir beber uma cerveja e perder-me na ociosidade de sexta-feira à noite.