domingo, 5 de maio de 2019

Latir ao vento

Aqui perto, um cão não pára de ladrar. Parece irritado com o mundo e expele a animosidade em forma de latidos, um pouco agudos para tanto agastamento, os quais vai modulando conforme as ondas anímicas vão e vêm. Por vezes, parece que se vai calar, mas logo retorna, agitando na voz a bandeira do seu descontentamento. Penso no que tenho para fazer hoje e traço na página branca do caderno da memória o rol das tarefas, compartidas entre deveres e prazeres, se é que os últimos não são também um dever. Uma mulher, macerada pela idade, caminha hesitante, passo pequeno e trémulo, e aproveita as sombras viscosas que as tílias projectam para se defender da inclemência do sol. Perscruto o horizonte e aspiro o ar já morno da manhã. O mundo é o palco de uma grande comédia, medito enquanto deixo os olhos serem invadidos pela luz bruxuleante da paisagem. Também eu faço parte da comédia e desato numa gargalhada, rindo-me de mim próprio e da persistência inquebrantável do cão que, aqui perto, não pára de ladrar. Se ele não se cala, não tarda começo também eu a latir ao vento.

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