terça-feira, 31 de dezembro de 2024
Fim de ano
segunda-feira, 30 de dezembro de 2024
Uma lógica insurreccional
Foi em Vico que li, como título de um capítulo de Ciência Nova, a expressão lógica poética. O conteúdo desse capítulo não vem ao caso, mas apenas a expressão. Poética surge como uma qualificativo da lógica, permitindo pensar que existem lógicas que não são poéticas. Isso conduz à questão de saber o que constitui a poeticidade de tal lógica. O melhor caminho, porém, será partir da poesia e tentar descobrir nela a lógica que a ordena. O discurso poético é uma insurreição contra a semântica, a sintaxe e a própria lógica que preside ao discurso corrente. Rasga o sentido corrente das palavras, cultivando a ambiguidade através da anfibologia, da metáfora, da sinédoque ou da metonímia. Subverte as regras sintácticas ordenadoras do discurso usando hipérbatos, anástrofes ou, de modo radical, sínquises. Apaga os imperativos dos velhos princípios lógicos ao cultivar oxímoros, paradoxos, antíteses e contradições. Há uma profunda coerência no ataque poético ao discurso corrente e à lógica que preside ao pensamento correcto. Poderíamos dizer que há uma coerência na produção da incoerência semântica, sintáctica e lógica. O estranho é que, apesar desta insurreição contra a coerência do discurso, a poesia não é destituída de sentido, nem de ordem sintáctica ou de lógica. Um poema abre o pensamento, a linguagem e a experiência para um além que estava oculto pela semântica, a sintaxe e a lógica correntes. A poesia é dotada de uma lógica insurreccional contra os limites semânticos, sintácticos e lógicos que determinam o horizonte do pensamento e da experiência dos homens. Oferece pontos de fuga e vislumbres de mundos possíveis que, por norma, parecem impossíveis.
domingo, 29 de dezembro de 2024
A fria vingança
Como é sabido – a teoria da literatura não esquece de o referir – há uma descoincidência entre autor e narrador. Apesar destes textos não serem literários ou, no melhor dos casos, serem exemplos de má literatura, também há neles não apenas um desencontro entre autor e narrador, mas um verdadeiro conflito de pontos de vista. Eu, pobre narrador, sou uma criação ficcional de um autor anónimo, o qual não me permite fazer coisas que ele faz. Por exemplo, falar de política. Ora, descobri há pouco uma enorme colecção de artigos do autor sobre esse tema. Crónicas publicadas num jornal regional, de acordo com a sua natureza provinciana, para não dizer paroquial ou mesmo tacanha. Estive a ler textos de 2012 e de 2024. Senti-me recompensado e vingado. Ele envelheceu. Os textos de 2012 eram muito mais vivos e acutilantes do que os actuais. Não foi só o corpo dele que envelheceu, o olhar que perdeu fulgor, mas a sua verve e o modo como expressa as suas extraordinárias – quero dizer, disparatadas – ideias sobre a coisa pública também envelheceram. Falta-lhes a jovialidade e sobra-lhes o cansaço. Enquanto narrador, dava-lhe um conselho. Dir-lhe-ia: não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. E quando ele me perguntasse o que deveria fazer hoje, dir-lhe-ia: deixar de escrever para jornais. Isto, porém, é impossível, pois é um autor despótico que nunca se permitirá escutar o que um narrador tem para lhe dizer. Assim, e para vingança, vou deixá-lo patinar no seu envelhecimento, que será também o seu envilecimento, até que os seus escritos não sejam mais do que um longo exercício de decrepitude. A vingança serve-se fria.
sábado, 28 de dezembro de 2024
Poeta, não profeta
sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
Por amor ao dever
As festividades natalícias estão consumadas, o que é um grande alívio. Hoje, já me pude sentar à minha secretária, sem que obrigações – informais, por certo, mas mesmo assim obrigações – me façam levantar e andar por aqui e por ali. Coisa que contraria o meu espírito de sedentário ultramontano. A minha viagem preferida é aquela em que nunca saio do mesmo lugar, onde o princípio, o meio e o fim coincidem. Não é uma viagem fácil, pois existe sempre uma pressão para que a pessoa se desvie da sua rota e ande por caminhos que não são os seus, e todos os caminhos que existem por este mundo não me pertencem. Andar por eles é como invadir uma propriedade privada. Imagino que a espécie humana terá se não um gene, pelo menos uma forte inclinação cultural para andar sempre em movimento. Não por acaso, colonizou praticamente todo o planeta e, não contente com isso, sonha colonizar outros planetas. Isto coloca um problema. Terei uma anomalia genética que me eliminou o gene do nomadismo ou a minha socialização gerou um mostro sedentário? Seja qual for a resposta a esta excruciante questão, a verdade é que quando viajo no mesmo sítio sinto que vou muito mais longe do que quando me ponho a viajar como um turista. Turista acidental, claro. Voltando às festividades natalícias que em teoria são do meu agrado, mas que na prática se tornaram penosas, a boa notícia é que o conjunto de deveres estão cumpridos. E isto pode ser utilizado como um excelente exemplo de acção moral, segundo o critério de Kant. Cumpro os deveres natalícios não por sentir neles um interesse particular, nem por ter uma especial inclinação por eles, mas simplesmente por serem um dever. Faço-o por amor ao dever e não porque tema as consequências de não os cumprir ou espere um benefício pelo seu cumprimento.
terça-feira, 24 de dezembro de 2024
Fazer exercício
Foi o meu exercício matinal. Tive de ir a uma rua desconhecida de uma cidade aqui ao lado. Como se tornou moda, também esta cidade tem um fascínio – talvez um fetiche – com o reordenamento do trânsito, alterando-o segundo um critério tão secreto que nem os próprios responsáveis pelas alterações o conhecem. Valeu-me uma aplicação denominada Waze, que me levou à porta do estabelecimento a que queria ir. Além desta capacidade de me guiar pelo labirinto das ruas cheias de proibições, permissões e sentidos obrigatórios, tem uma outra, milagrosa. Ao dizer chegou ao seu destino, eu parei o carro, liguei os quatro piscas, saí, recolhi a encomenda, paguei – tudo isso sem que um polícia se interessasse pelo meu carro. Terei, um dia destes, de acender uma vela a S. Waze, protector dos infractores de estacionamentos proibidos. Talvez – penso agora – a razão tenha sido outra. Os agentes da autoridade, tomados pelo espírito natalício, fecham os olhos a estes pequenos delitos de trânsito. Uma terceira possibilidade é que andem todos entretidos a comprar os últimos presentes de Natal para oferecer aos cônjuges ou candidatos a cônjuges. Declaro, por minha honra, que não fui comprar nenhum presente, nem qualquer coisa que se relacione com o Natal. Fui a uma mercearia buscar a tradução que me faltava, das três publicadas em Portugal, do Ulisses, de James Joyce. O proprietário do estabelecimento tinha-a anunciado num dos sites de venda de livros em segunda mão e, como era aqui ao lado, aproveitei para fazer exercício. Estas vésperas de Natal não são fáceis.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Singularidade e comunidade
Os versos de John Donne, No man is an island, / Entire of itself; / Every man is a piece of the continent, / A part of the main, tiveram uma enorme fortuna, apesar de terem sido escritos no século XVII, época em que a afirmação do indivíduo, enquanto singularidade diferenciada do todo, começava a estabelecer-se e a lançar as raízes do individualismo posterior. Imagino, não poucas vezes, que a arte do romance está intimamente ligada a essa tensão entre o indivíduo e a totalidade – o continente, no poema de Donne. Em A Parede, Marlen Haushofer radicaliza essa individualização, mas para encontrar uma comunidade mais funda. A personagem, uma mulher de que nunca se conhecerá o nome, descobre que, de um momento para o outro, ficou separada do mundo humano por uma parede ao mesmo tempo invisível e intransponível. Mais, começa a ter razões para pensar que a espécie humana terá praticamente desaparecido. Esta singularização forçada e radical – imposta não se sabe bem nem porquê, nem como, nem por quem – leva-a a procurar refazer o continente, agora com os animais com que estabeleceu laços no território onde ficou confinada. A protagonista descobre que existe uma rede mais funda do que aquela que se estabelece socialmente com seres da mesma espécie. Para ela, na morte destes seres – do cão, da gata, do vitelo – podem aplicar-se os versos finais do poema de Donne: Any man's death diminishes me, / Because I am involved in mankind. / And therefore never send to know for whom the bell tolls; / It tolls for thee. Ela morre também na morte deles. A radicalidade da narrativa de Marlen Haushofer torna patente a necessidade de comunidade – e de comunhão – sentida pelos humanos. Uma experiência bem diferente é a de Peter Kien no romance Auto-de-Fé, de Elias Canetti. Ele é obsessivamente solitário e intrinsecamente misantropo. É a manifestação de uma crença e modo de ser contrários ao verso de Donne. Kien é uma ilha rodeada por livros. E quando estabelece relação com Therese – primeiro, sua governanta; depois, mulher – o desastre é total. A saída da singularidade e o fazer parte de uma comunidade, tão pequena quanto a de um casal, é a porta aberta para todas as desgraças. O romance moderno, aquele que poderá ter nascido com o D. Quixote, de Cervantes, o Simplicissimus, de Johannes von Grimmelshausen, ou, antes destes, Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, parece ser uma meditação contínua sobre a singularidade de seres que só podem existir mergulhados numa totalidade.
domingo, 22 de dezembro de 2024
Pequenas blasfémias
As percepções mudam mais rapidamente do que pode imaginar, disse, depois de intróito formal dos cumprimentos, o padre Lodovico Settembrini. Está a falar por enigmas, respondi. Ah... tem razão, ultimamente tenho sido acusado com regularidade de estar a ficar enigmático. Se fosse misterioso, ainda compreendia, volvi. Estava a referir-me ao romance que estou a ler. Melhor, a reler mais uma vez, afirmou o padre Lodo. Perante o meu silêncio, continuou: trata-se do Ulisses, do Joyce. Não me parece uma leitura própria de um sacerdote jesuíta, disparei. Ele, porém, riu-se e informou-me, sentencioso: não há leitura que não seja própria de um jesuíta, já o devia saber. Saber, eu sabia. Era dele, do Ulisses, que eu estava a falar, das percepções que mudam. O livro foi publicado em 1922, em França; a sua importação foi proibida para o Reino Unido até ao início da década de trinta. Também os EUA o proibiram até 1933. Consideravam-no obsceno. As percepções de obscenidade, nesses países, demoraram cerca de uma década a mudar. Hoje, porém, ao ler-se o romance – continuou o padre –, nem se compreende a acusação. Muito me conta, respondi a rir. Pensava que aquilo que o poderia preocupar não era tanto o sexo, mas a heresia inicial de Buck Mulligan, o ritual blasfemo a parodiar, com a bacia de barbear, o sacrifício eucarístico. Já não tenho idade para me preocupar com essas coisas. Se vivesse naquela época – sublinhou, com vivacidade italiana, o meu amigo –, talvez me sentisse indignado, mas não passa de literatura. Ainda bem que o diz, respondi. Temos um jesuíta contra o Índex, alvitrei. Está atrasado no tempo, ouvi do outro lado. O Index Librorum Prohibitorum foi instituído por Paulo IV, em 1559, e abolido por Paulo VI, em 1966. Não me parece – disse eu – que, apesar do Índex ter passado à história, a leitura do Ulisses, com essa referência constante ao paganismo grego, seja a leitura natalícia mais adequada. Pelo menos, para um sacerdote. Não se preocupe, respondeu-me. Nós temos um mecanismo que trata de limpar as possíveis manchas trazidas pelas leituras ou pela vida. Uma espécie de tira-nódoas, concluí. Não obtive resposta à pequena blasfémia.
sábado, 21 de dezembro de 2024
Um portal
Por vezes, as traduções operam verdadeiros milagres. Datado de 1960, o filme Le Petit Soldat, de Jean-Luc Godard, não teve por título, neste pequeno país, o literal O Soldadinho, mas O Soldado das Sombras. Uma tradução feliz, não apenas porque capta a natureza sombria do exército a que o soldado pertence, mas pela conjugação do efeito metafórico do vínculo entre soldado e sombras e, ainda mais, pela presença da aliteração na primeira sílaba de ambas as palavras. Talvez a tradução seja contraproducente, pois contém tal força que dispensa o próprio filme. Ela abre a imaginação a uma viagem que começa no país das sombras que, como qualquer país, tem o seu exército e os seus soldados. Não se sabe se essa pátria obscura se encontra ou não em guerra, nem se a missão do soldado é pacífica ou de combate. Esta ignorância permite que cada um construa uma história, conforme os seus desejos ou as suas necessidades. Haverá quem veja no soldado um agente de paz, um cidadão de um país em que a vida decorre sem os percalços da guerra. Outros fantasiarão o soldado em plena batalha, tomado pelo ardor do confronto, inclinado para o heroísmo. Isto mostra que uma expressão como O Soldado das Sombras é, na verdade, um portal por onde se entra para diversos mundos, muitas vezes estranhos uns aos outros. Contudo, a expressão é apenas um caso particular de um fenómeno muitos mais amplo e geral que é a linguagem. Esta é muito mais do que uma meio de comunicação ou de expressão, mas a abertura que permite aos homens entrar no mundo. Este, porém, deverá ser entendido como um substantivo colectivo. Mundo significa o conjunto infinito de mundos possíveis e imagináveis.
sexta-feira, 20 de dezembro de 2024
Um koan para meditação
Estamos a 20 de Dezembro, e o estado do mundo não me parece muito saudável. Isso, todavia, não é uma novidade. É da sua natureza estar doente. O mundo sofre de uma patologia crónica. Mesmo nos bons momentos, caso existam, continua doente. Não geme, mas a palidez que lhe recobre a face não permite outra conclusão. Outras alturas, além da doença crónica, de ordem física – os organismos sociais não chegam a ter uma natureza biológica, não passando de estruturas mecânicas –, o mundo sofre de acentuada paranóia. É para lá que se caminha. Ora, quando uma ordem mecânica se torna paranóica, aquilo que podemos esperar não é o internamento compulsivo dessas massas nos hospícios, mas vê-las a ditar ordens e a serem servidas por aqueles que deveriam trazer ordem e razão. Nestes momentos, a doença do mundo torna-se aguda. Inflamado, começa a borbulhar em incêndios. As consequências são sempre piores do que se espera. Com esta análise, este narrador desocupado deu um precioso contributo para uma hermenêutica da realidade, coisa que todos afirmam ser a casa onde vivem, mas que ninguém sabe o que é. Há dias que aqui se narram os feitos heróicos que constituem a gesta do narrador. Não havendo gigantes a vencer ou eixos para pôr no lugar, o narrador contribui com a sua especulação não apenas para a elevação da metafísica a ciência – coisa que nem Kant percebeu ser possível –, mas ainda para o diagnóstico da moléstia viciosa que se apoderou do mundo desde que o homem, ao entrar nele, o constituiu. Esta última afirmação parece bizarra, mas deverá ser considerada como um koan para meditação, caso alguém queira dedicar-se ao Zen.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2024
O enjambement do Inverno
O Outono aproxima-se do fim. Pouco mais de trinta e seis horas e ouvir-se-á pancadas na porta. É o Inverno que chega e quer entrar na casa grande do ano, embora o ano tenha apenas mais uns dias e logo dá o último suspiro e entrega a alma ao criador. Por isso, a estação fria tem de recorrer ao enjambement e espraiar-se no verso seguinte, introduzindo um infeliz desalinhamento da disposição métrica e sintáctica do ano com a estrutura semântica. Tivesse este narrador sido chamado para criar as estações do ano, outro seria o calendário. Nada de começar no fim, que é aquilo que o Inverno faz. Parece que meteu uma cunha, coisa normal neste país, para apanhar o subsídio e os presentes de Natal, bem como a folia de fim de ano. Não compreende – certamente, por falta de inteligência – este narrador o cultivo que certos sectores da sociedade fazem da natureza como padrão dos comportamentos. Se o metro-padrão fosse natural, um dia teríamos um metro do tamanho de noventa centímetros e no outro mediria centro e doze, com mais um ou dois milímetros. Outra coisa que me irrita é, para além da data, a hora do começo. Neste infeliz ano, o Inverno começa no dia 21 de Dezembro às 9 horas e 19 minutos. Por que raio, não começa às zero horas? Que sentido faz uma pessoa olhar para o relógio, ver que são 9 horas e 15 minutos e pensar que ainda está no Outono? Deixo aqui o meu contributo decisivo para um mundo melhor. O próximo Inverno, depois deste, deverá começar às zero horas do dia 1 de Janeiro de 2026. Temos de começar a pôr ordem no caos que os homens introduzem na vida sempre que se dispõem a regular seja o que for por padrões da natureza.
quarta-feira, 18 de dezembro de 2024
Desordem da natureza
Uma das editoras a que compro livros tem por hábito oferecer-me pequenos contos em livros de dimensões frugais, 15,5 X 10,5 cm, com cerca de vinte páginas. O último que li, de Alphonse Daudet, tem o inusitado título de A Mula do Papa. Inusitado porque se espera que um Papa, ainda por cima de Avignon, se desloque de cavalo e não num ser híbrido, fruto de relações sexuais não previstas na ordem natural do mundo. Que ordem é essa? A de que cavalos se cruzem com éguas e burros com burras. Contudo, num momento de desatenção, a ordem do mundo desordenou-se, e um cavalo enamorou-se de uma burra, ou um burro seduziu, não a burra que lhe fora destinada, mas uma égua. Desse cruzamento ímpio nasceu a tal mula que os acasos do mundo fizeram que se tornasse propriedade de um Santo Padre de nome Bonifácio. Ora, apesar de ser propriedade de um Sumo Pontífice, a mula não seguia os ensinamentos de Cristo, talvez pela sua origem duplamente pecaminosa: concebida no pecado da luxúria, como acontece a grande parte dos seres vivos, e de uma luxúria contra-natura, coisa que, sendo menos rara do que se pensa, ainda assim tem a sua raridade. Não estava disposta, essa criatura pactuada com o demónio, a dar a outra face e, será o pior, não era avara no cultivo do rancor. A isto adicionava uma memória persistente e viva, fruto, aposto, de uma longínqua hibridação em que um elefante terá dado um contributo genético que se veio a manifestar na memória da mula. Um tal Tristet Védène, um dia, pregou-lhe uma partida de mau gosto, uma cabriolice de adolescente. Ela, com todo o peso hereditário, onde se manifestavam os vícios em que a natureza se perde, jurou vingar-se. Esperou sete anos – um número cabalístico que é um princípio hermenêutico para interpretar a narrativa de Daudet – para consumar a vingança através de um extraordinário coice que, por certo, concentrou a força dos antepassados burros, cavalos e, suponho, elefantes. O pobre Tristet sumiu-se da Terra e a mula aplacou a raiva alimentada por sete anos de espera. Ficámos assim a saber que estes produtos híbridos, frutos do desejo desordenado, não são fiáveis, isto é, dignos de fé. O melhor é abstermo-nos de comércio com eles. Já basta o comércio espúrio de onde provêm. É plausível pensar que nunca mais Papa algum teve uma mula por animal de transporte. O cavalo seria mais digno da sua dignidade, apesar de Cristo ter preferido um burro.
terça-feira, 17 de dezembro de 2024
Meditações sobre o calendário
Daqui a uma semana, estaremos na véspera do dia de Natal. Daqui a duas semanas estaremos na véspera do dia de Ano Novo. No entanto, hoje, só estamos na véspera de amanhã, uma pobre quarta-feira, tão pobre que nem chega a ser uma quarta-feira de cinzas. Como se pode ver pelos exemplos, até o calendário é dado à desigualdade, tornando uns dias memoráveis e outros, infelizes, tão banais que nenhuma recordação deles se regista. Ao contrário do que se pode supor, esta desigualdade não resulta de uma conspiração de adeptos do inigualitarismo – se me for permitido usar o termo – nem, tão pouco, de injustas relações entre os dias. Se todos os dias fossem ilustres, a memória humana perdia-se e acabava por não prestar atenção ao motivo de notabilidade de qualquer um deles. A nossa consciência não suporta demasiada luz. Pelo contrário, por cada dia cintilante, necessita de longas semanas de repouso. Pode-se pensar que um dia de Natal e um dia de Ano Novo, apenas com uma semana de distância, é uma overdose de dias fulgurantes. Há, contudo, uma sabedoria que aniquila esse excesso. O dia de Natal ocorre num ano e o dia de Ano Novo, noutro. Esta mudança de ano implica uma alteração radical na relação dos dias entre si. Um faz parte de um jogo a acabar e o outro é o começo de um novo jogo. Depois, virá o Carnaval, mas logo se transforma em cinzas, na quarta-feira seguinte. Contemplemos, porém, o crepúsculo de mais uma terça-feira indiferenciada, talvez a sua mediocridade tenha alguma coisa para nos ensinar.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2024
Dias confusos
A ligeira indisposição que me acomete só em aparência foi causada por uma combinação de bolo rainha e de dois cookies de chocolate. Não se pense que a causa, por não ser material, esteja em mim, na minha alma inclinada à gula. O que aconteceu foi apenas uma ocasião para Deus manifestar o seu poder. Claro que não fui eu que imaginei semelhante explicação e muito menos seria possível imaginá-la à segunda-feira, dia em que não imagino seja o que for. Trata-se da opinião do célebre – nos dias de hoje, muito menos célebre – Nicolas Malebranche e do seu ocasionalismo. O filósofo francês do século XVII e início do XVIII defendia que as causas naturais – neste caso, as complexas transformações químicas promovidas em mim pelos bolos comidos em louvor da gula – não são causas reais, mas meras ocasiões para que Deus manifeste o seu poder causal, o único que existe. E aqui esse poder causal poderia ser pensado como um exercício punitivo de quem se deixa enredar nas malhas da tentação. Mesmo nas acções humanas, o verdadeiro poder causal é de Deus. Isto coloca um problema ao ocasionalismo de Malebranche, pois, se aceitarmos uma natureza, incluindo a humana, desprovida de autêntico poder causal, teremos de colocar na conta de Deus todo o mal moral, além do físico. Malebranche encontra uma escapatória. Deus é a causa dos movimentos do mundo, onde se incluem os dos homens, mas são estes que, tendo sido criados livres por Deus, são responsáveis pelas intenções que presidem aos actos que praticam, mas de que não são a sua causa real. Talvez a segunda-feira seja um dia confuso.
domingo, 15 de dezembro de 2024
Metamorfoses na capital do império
Acabado de chegar de um fim-de-semana na capital. De novo, uma sensação estranha. Lisboa está animada, cheia de vida e, no entanto, parece agonizante. A Lisboa genuína está a desaparecer devido à gloriosa era do turismo. Isso não será grande problema para os turistas, pois estes não sabem distinguir a realidade do simulacro. Enquanto, a ficção vai substituindo a vida verdadeira, o visitante acidental passeia por ali, sem compreender o que se está a passar, submetido que está à necessidade de olhar. O desenvolvimento dos meios de transportes teve um inesperado impacto nas cidades. Deixaram de ser lugares onde se vive, para se tornarem um espectáculo que se vê. Esta transformação da cidade biossocial na sociedade meramente visual é uma degradação das modalidades genuínas de ser cidade. Do ponto de vista ontológico, para recorrer ao jargão filosófico, passa-se da presença viva à mera representação. As pessoas estavam presentes naqueles espaços, pois era ali que decorria a sua vida, os seus dramas, as suas vitórias e derrotas. Agora, as pessoas estão ali para representarem um papel. É essa transição da presentificação à representação que torna, por vezes, desconfortável deambular pelos sítios que outrora ainda não tinham sido devorados pela sanguessuga turística. Lisboa não é a primeira cidade a que acontece tal metamorfose. Não será a última. Ao transformar-se em mercadoria, é essa a metamorfose porque passa, corre o risco inerente a inúmeras mercadorias. Desaparecer no acto de consumo.
sábado, 14 de dezembro de 2024
Entre o bife à Marrare e o gato de Schrödinger
Talvez o mais célebre bife da gastronomia portuguesa seja o bife à Marrare. Hoje decidi, em rememoração, ir almoçar um bife à Marrare num belo restaurante lisboeta. O normal seria fazer o exercício ao jantar, mas as rememorações nocturnas começam a ser penosas. Podemos imaginar que um bife à Marrare actual é uma repetição daqueles que, no início do século XIX, António Marrare criou num dos seus quatro cafés de Lisboa, todos tão mortos quanto o seu criador. Contudo, mesmo que as receitas usadas sejam as originais, não é de crer numa repetição. Não apenas porque nada se repete neste mundo, mas também porque uma receita culinária é como uma partitura musical. Terá de ser interpretada, e tudo depende da qualidade do maestro e dos músicos que ele dirige. Como na arte, seja a da música ou qualquer uma das outras, a criação sobrevive ao criador. Pode-se pensar que a culinária é uma arte do efémero, que morre no consumo do prato. Contudo, também nisso se pode estabelecer uma analogia com a música. Cada interpretação de uma sonata, de uma sinfonia ou de qualquer outra obra morre no momento da sua execução. Também ela é efémera. Resta a partitura, tal como, na culinária, resta a receita. Podemos pensar que esta analogia entre culinária e música não é extensível a artes como a literatura, a pintura ou a escultura. Isso, porém, reside numa visão fisicalista das obras de arte. O romance ou os poemas inscritos no papel dos livros são também partituras que só vivem na efemeridade da leitura. Se ninguém está neste momento a ler Os Maias, o romance de Eça de Queirós existe num estado idêntico ao do gato de Schrödinger: num estado de superposição, em que está vivo e morto ao mesmo tempo. É apenas a receita culinária que espera um chef – um leitor – que a actualize e a faça viver nesse momento de leitura. O mesmo se passa com as esculturas e as pinturas. São partituras que esperam os seus intérpretes e só nestes têm vida. Toda a arte é efémera. Melhor, toda a arte é uma colecção de efemeridades: aquelas em que um leitor ou espectador as trazem de um limbo onde, repito, são verdadeiros gatos de Schrödinger.
sexta-feira, 13 de dezembro de 2024
Julgamentos
Saí do carro e caminhei na avenida. Senti o frio sem saber se era uma graça ou uma maldição. Temos uma necessidade invencível de classificar as coisas, os acontecimentos e as pessoas. A nossa faculdade de julgar nunca está de férias e só descansa enquanto dormimos, e, mesmo neste caso, não é certo, pois os sonhos podem ser momentos em que ela opera, muitas vezes de forma distorcida. A minha sorte – ou a da minha faculdade de julgar – é que raramente me lembro de sonhar. A maior parte das vezes, a nossa faculdade de julgar é determinante: parte de um princípio universal e determina um caso particular; parte de uma ideia de justiça e avalia se um certo comportamento é justo ou injusto. Noutros casos, ela é reflexionante: parte de casos particulares e tenta encontrar ou criar um princípio que dê sentido a esses casos. Por exemplo, na ausência de um conceito a priori de beleza, a faculdade de julgar parte de uma certa obra de arte e, através da reflexão, tenta reconhecer essa beleza. Era assim que, no século XVIII, pensava o senhor Immanuel Kant. Aproveito-o para lidar com a minha ignorância acerca de o frio sentido na avenida ser uma graça ou uma maldição. Também estas noções sofrem de uma deficiência de definição a priori. Tenho de partir da experiência e entregar-me a uma cadeia de reflexões. Talvez o faça, pois já não sinto frio, nem estou na rua. O pior é que já não tenho a experiência do frio sentido, mas apenas a sua memória. Este é um verdadeiro pensamento de sexta-feira, dia em que a utilidade cede o seu lugar às coisas inúteis. Eu já entrei nestas.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2024
Suburbano
Este doze de Dezembro fez-me lembrar o Natal. Não o Natal real, mas um Natal idealizado, arquetípico. Por certo, os natais arquetípicos são diferentes de país para país, isto naqueles em que o acontecimento faz sentido. No meu caso, o Natal arquetípico tem frio, mas não chuva. Tem sol, uma luz vibrante, mas a necessidade de roupa adequada para enfrentar o destempero do tempo. Foi o dia estar frio, aquele frio que nos leva a fugir das sombras e a procurar os espaços iluminados pelo astro regente deste sistema perdido na periferia da galáxia, que me trouxe tudo isso à memória. Em tempos, os seres humanos pensavam que viviam num condomínio luxuoso – embora cravado até ao pescoço no vício – no centro da capital. Hoje, a visão é outra. Habitamos a periferia da periferia, num galinheiro a cair de podre. Já mudei de assunto, mas foi de propósito. O outro rendia pouco. Essa descoberta de que éramos suburbanos foi o resultado do trabalho conjugado de Copérnico, Kepler e Galileu. Alguém, maldoso, disse que constituía uma ferida narcísica. E assim como ainda não recuperámos da queda adâmica, também o nosso ego não se curou do golpe dado por astrónomos mais interessados na descrição do universo do que na saúde mental da humanidade. Com o ego a sangrar, não admira que a humanidade se comporte como comporta, não espanta que nem dê por estes magníficos dias de sol, onde o meu Natal arquetípico se manifesta, talvez como paliativo da minha ferida – humana, demasiado humana – de não habitar no centro do universo, mas na periferia de uma galáxia perdida numa terra sem nome. A ferida narcísica de não passar de um suburbano.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2024
Coisas sem sentido
É um facto que a perversidade – tal como a bondade – pode atingir limites extremos. Existem dilemas éticos que nascem da perversidade dos homens, do acaso da existência ou da imaginação. Alguns são dilemas que merecem ser pensados, como o chamado dilema de Sofia, baseado num caso presente num romance de William Styron, Sophie’s Choice, que foi adaptado, posteriormente, ao cinema. Nele, a personagem, Sofia Zawistowska, uma detida no campo de concentração de Auschwitz, é posta, por um oficial nazi, perante um dilema maligno: ou escolhe um dos seus dois filhos para ir para a câmara de gás, salvando o outro, ou irão ambos. Não sei se o caso é meramente ficcional, mas a maldade humana é muito capaz de o pôr em prática na vida real. Eis um dilema ético sério, pois implica uma escolha trágica. Há, por outro lado, dilemas éticos idiotas. Por exemplo, o seguinte: Um médico tem cinco pacientes que morrerão se não receberem transplantes de órgãos. Um sexto paciente saudável, sem família, aparece para um check-up. Se o médico retirar os órgãos desse paciente saudável, salvará os outros cinco, mas matará o sexto. A pergunta que o dilema coloca é se será moralmente aceitável matar o paciente saudável para salvar os outros cinco. Quando se acha que isto é um dilema, que esta situação coloca uma verdadeira situação trágica, então já se perdeu por completo a sensatez e o sentimento moral – já não digo o juízo moral – está completamente degradado. Quando se imagina que essa situação é problemática, então já se entrou no declive escorregadio que poerá conduzir à perversidade do oficial nazi.
terça-feira, 10 de dezembro de 2024
Necessidades
Os dias passam, agora, cada vez mais rapidamente, numa cavalgada sem freio. Por vezes, tento agarrar as horas, mas nunca se deixam prender. Quando parece que as tenho bem seguras nas mãos, elas escapam-se-me pelos dedos, incomodadas pelo aperto a que tento submetê-las. Nem sempre as horas foram assim. Lembro-me de um tempo muito antigo em que elas pareciam intérminas. No relógio, o ponteiro dos minutos deslocava-se com uma lentidão que me enlouquecia, enquanto o das horas parecia imobilizado na eternidade. Esse desejo imaturo de que o tempo passe mais depressa nunca devia ter sido desejado. O tempo, esse que então não passava, tratou de o realizar, dando-me horas feitas de minutos tomados pela febre da velocidade. Foi devido a isso que perdi hoje uma reunião. O tempo passou tão depressa que nem dei pela sua passagem. A reunião foi-se. Devia dizer não que perdi uma reunião, mas que a ganhei. Para quem nasceu com alma avessa a certo tipo de convivialidades, perder uma reunião é ganhá-la. As pessoas – refiro-me à generalidade e não a todas – amam reuniões, assembleias, congressos. Marcam presença e ficam convencidas de que existem. Nada pior do que pessoas que precisam de se convencer da sua existência. A minha existência, por exemplo, é coisa por provar. Se penso, se escrevo, se falo, não existo? Provavelmente. Se existisse realmente, que necessidade teria de pensar, de escrever, de falar?