As percepções mudam mais rapidamente do que pode imaginar, disse, depois de intróito formal dos cumprimentos, o padre Lodovico Settembrini. Está a falar por enigmas, respondi. Ah... tem razão, ultimamente tenho sido acusado com regularidade de estar a ficar enigmático. Se fosse misterioso, ainda compreendia, volvi. Estava a referir-me ao romance que estou a ler. Melhor, a reler mais uma vez, afirmou o padre Lodo. Perante o meu silêncio, continuou: trata-se do Ulisses, do Joyce. Não me parece uma leitura própria de um sacerdote jesuíta, disparei. Ele, porém, riu-se e informou-me, sentencioso: não há leitura que não seja própria de um jesuíta, já o devia saber. Saber, eu sabia. Era dele, do Ulisses, que eu estava a falar, das percepções que mudam. O livro foi publicado em 1922, em França; a sua importação foi proibida para o Reino Unido até ao início da década de trinta. Também os EUA o proibiram até 1933. Consideravam-no obsceno. As percepções de obscenidade, nesses países, demoraram cerca de uma década a mudar. Hoje, porém, ao ler-se o romance – continuou o padre –, nem se compreende a acusação. Muito me conta, respondi a rir. Pensava que aquilo que o poderia preocupar não era tanto o sexo, mas a heresia inicial de Buck Mulligan, o ritual blasfemo a parodiar, com a bacia de barbear, o sacrifício eucarístico. Já não tenho idade para me preocupar com essas coisas. Se vivesse naquela época – sublinhou, com vivacidade italiana, o meu amigo –, talvez me sentisse indignado, mas não passa de literatura. Ainda bem que o diz, respondi. Temos um jesuíta contra o Índex, alvitrei. Está atrasado no tempo, ouvi do outro lado. O Index Librorum Prohibitorum foi instituído por Paulo IV, em 1559, e abolido por Paulo VI, em 1966. Não me parece – disse eu – que, apesar do Índex ter passado à história, a leitura do Ulisses, com essa referência constante ao paganismo grego, seja a leitura natalícia mais adequada. Pelo menos, para um sacerdote. Não se preocupe, respondeu-me. Nós temos um mecanismo que trata de limpar as possíveis manchas trazidas pelas leituras ou pela vida. Uma espécie de tira-nódoas, concluí. Não obtive resposta à pequena blasfémia.
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